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Estado de Minas

Rep�rter do EM atravessa noites como sem teto e presencia gestos de solidariedade

Na rua, tudo � compartilhado, fortalecendo rede contra a viol�ncia e evitando confiscos


postado em 03/07/2016 11:00 / atualizado em 05/07/2016 11:56

Desde os 15 anos, Elisa Santos Soares conviveu com a viol�ncia sexual dentro de sua casa. Hoje, aos 42, a mulher, natural de Concei��o do Mato Dentro, na regi�o Central de Minas, recorda dos ataques que sofria de companheiros da m�e alco�latra, na cidade natal e, depois, quando vieram para Belo Horizonte. “Minha �nica op��o de fugir disso tudo foi ir para a rua. Sinto como se tivesse nascido e crescido na rua. Hoje, me d�i a solid�o. Nunca senti como � ter uma fam�lia, estar no meio de pessoas que gostam de voc� e n�o de pessoas estranhas de quem voc� tem medo”, desabafa. Elisa � uma das mais de 70 pessoas que se deitam numa linha compacta sob cobertores nas cal�adas da Rua dos Tamoios, no Centro de BH, uma das maiores aglomera��es de moradores de rua da capital mineira. Mas, em meio a essa trajet�ria violenta, a mulher ainda encontra na rua gestos de solidariedade. Enquanto perambulava procurando algum tecido para se aquecer na noite de quarta-feira, recebeu um cobertor novo, ainda fechado no pl�stico, de um senhor tamb�m em situa��o de rua. “Ganhei um (cobertor) ontem, est� sobrando, guardei, porque sempre aparece algu�m que est� precisando. E estou passando para ela”, disse Paulo Roberto Ribeiro Barbosa, de 47, natural de Ara�ua�, no Vale do Jequitinhonha.

A colabora��o e a solidariedade entre os dois � uma pol�tica comum �s col�nias de pessoas que pernoitam nas cal�adas e pra�as de Belo Horizonte. Um pilar de confian�a, que ajuda a manter a inseguran�a e o desconforto do cal�amento duro e frio em n�veis aceit�veis, para muitos condi��es melhores do que as encontradas nos abrigos p�blicos. Nas aglomera��es – ou malocas, como seus ocupantes as chamam – das ruas do eixo Bairro Funcion�rios (Centro-Sul) e regi�o hospitalar, cada doa��o que chega � compartilhada entre essas habita��es. Percorrendo os pontos pela Avenida Brasil como se tamb�m estivesse nas ruas, a reportagem do Estado de Minas acabou provando da hospitalidade mineira � moda da rua. Imposs�vel chegar numa das �reas ocupadas por lavadores de carros, flanelinhas e pedintes sem receber ofertas de potes de sopa, pacotes de panetone, sacos de p�es, pratos de marmita, garrafas d’�gua, cobertores, roupas entre outros. “A gente ajuda um ao outro porque estamos no mesmo barco”, resume Elisa, satisfeita com o cobertor que recebeu.

Solidário, Paulo Roberto Barbosa doou um cobertor que acabara de ganhar de presente para uma pessoa que precisava de agasalho(foto: Sydney Lopes/EM/D.A Press)
Solid�rio, Paulo Roberto Barbosa doou um cobertor que acabara de ganhar de presente para uma pessoa que precisava de agasalho (foto: Sydney Lopes/EM/D.A Press)

 

Confian�a As trocas, contudo, ocorrem numa rela��o de confian�a. “Se vacilar na pista (quebrar as regras), a gente bota para andar (manda ir embora). Na rua tem muita viol�ncia, mas muita gente que se ajuda. E tem de ser assim, porque tem muito skinhead que pia (aparece) no inverno, quando a gente se junta para se aquecer. Quase botaram fogo em mim”, conta a carioca Patr�cia, de 33, que vive na Rua Bernardo Monteiro com outras 12 pessoas em situa��o de rua. A doa��o acaba sendo tamb�m uma estrat�gia de manter os artigos em circula��o. “N�o adianta a gente guardar as coisas. A prefeitura diz que n�o, mas os guardas municipais tomam o que temos. A gente at� tenta esconder nos bueiros, mas depois que perde, fica dif�cil conseguir roupas, cobertores, panelas e outras coisas de novo”, relata C�lio Nascimento Santos, de 43, natural de Roraima.

Os sem teto que dormem na calçada da Avenida Brasil compartilham alimentos e trocam conversas antes de a madrugada chegar trazendo o frio intenso(foto: Jair Amaral /EM/D.A Press)
Os sem teto que dormem na cal�ada da Avenida Brasil compartilham alimentos e trocam conversas antes de a madrugada chegar trazendo o frio intenso (foto: Jair Amaral /EM/D.A Press)
Um espanhol de 51 anos que vive h� cinco anos nas ruas de BH, mas pede para n�o se identificar porque ainda tem esperan�a de se reerguer, afirma nunca ter sofrido como nas ruas da capital mineira. “Minha sorte foi entrar num grupo que me aceita e me protege. Nunca vi uma situa��o de rua t�o dram�tica como a de Belo Horizonte”, disse. Outro companheiro, do Vale do Jequitinhonha, de 48, diz que desde 2010 entra e sai das ruas. “Sem emprego fixo e moradia, voc� n�o consegue guardar dinheiro e acaba tendo para viver apenas a rua ou os lugares longes, cheios de bandidos e onde n�o h� trabalho”, afirma.

Prova de resist�ncia na madrugada

O castigo do vento frio sapecando a pele pela malha de algod�o serviu para ser aceito entre as pessoas que passam a noite na Pra�a Raul Soares, no Centro de BH, uma forma de ter uma experi�ncia pr�xima � de outras 40 que o fazem por falta de op��o. Foi assim, pedindo para compartilhar o calor de uma fogueira e entre garfadas numa panelada de mandioca e cebola fritas, que o casal de idosos S�nia e S�rgio me contou como as coisas funcionam na pra�a. “Aqui, todo mundo tem seu canto. Ningu�m bole (incomoda) com o outro, sen�o a gente manda ir embora”, afirmou Sandra. Mesmo alimentado, tinha de continuar comendo o que me ofereciam, pois mais do que gentileza isso era um conselho: “Para aguentar a madrugada fria, meu filho, a gente precisa comer coisa quente e de sal. � isso que sustenta, que te faz aguentar”, ensinou S�rgio.
Ganhei uma folha de papel�o para servir de isolante t�rmico sobre a grama, mas, sem um cobertor, o vento era insuport�vel, mesmo com quatro camadas de roupas. Por sorte, recebi um cobertor doado por religiosos – que mais tarde doei a outra pessoa. Inexperiente, descobri da pior forma que n�o se deita perto das �rvores, pois elas demarcam o banheiro das ruas. Por volta de 22h, o movimento cai muito. Observava a maioria dos moradores j� encolhidos em seus cobertores e defesas de caixas de papel�o.

Apenas um grupo ainda rodeava uma fogueira na parte alta. Mas o frio e o estado de alerta contra a viol�ncia me mantiveram acordado. Durante a madrugada, n�o suportei o ar g�lido e tive de perambular pela pra�a, o que me valeu uma mordida na perna de Le�o, o cachorro de uma das moradoras de rua, que depois se desculpou pelo ato do animal. Pelo menos as presas n�o perfuraram o cobertor e a cal�a jeans. O dia nasceu iluminando o Conjunto JK. O corpo do�do e frio era prova de que s� resist�ncia e solidariedade para se suportar a vida nas ruas de BH.


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