
Percorrer de bicicleta, ou mesmo de carro, �nibus ou caminh�o, os caminhos que levam a Montalv�nia � dar testemunho do pioneirismo do fundador da cidade, Ant�nio Montalv�o. N�o s� pelas ruas e avenidas planejadas e batizadas com nomes de grande pensadores da hist�ria da humanidade, mas at� mesmo pelas estradas, inclusive a que ganhou status de rodovia federal – hoje trecho da BR-030, que em toda a sua extens�o liga Bras�lia a Mara� (BA), cortando pelo caminho Goi�s e Minas. Aberta h� quase meio s�culo gra�as � iniciativa do fundador, sem qualquer apoio estatal, a via ligou o nascente munic�pio do Norte de Minas � capital federal, na esperan�a de alavancar o progresso regional atrav�s de um acesso direto � nova sede do poder nacional. D�cadas depois de cumprida a tarefa mais dif�cil, com a abertura de uma liga��o de quil�metros com trabalho predominantemente bra�al, comunidades ainda vivem hoje isoladas, esperando asfalto � beira da rodovia federal.
Pouco mais de um ano depois a estrada chegava ao destino, passando por Arinos, de onde j� havia rodovia aberta. “Conhecer a capital federal � uma necessidade do nosso povo”, vaticinava Montalv�o, que, entre 1967 e 1968, transportava semanalmente 11 pessoas numa picape adaptada. Ironizando a dist�ncia, mandou desenhar um sapo em uma das portas, onde se lia: “Montalv�nia-Bras�lia: um pulo de sapo”.
N�o era bem assim. Dono de um bar no distrito de Jana�na, Lino Ribeiro dos Santos, de 73, lembra com agonia uma de suas viagens de �nibus at� a capital. “Era entrevado, n�o dava nem pra mexer de t�o cheio.” Em condi��es normais, o percurso levava cerca de 10 horas, chegando a Taguatinga no fim do dia. Por�m, “quando chovia acabava a estrada”, continua Lino. “Tr�s dias no caminho, mo�o. Pedi pra me largarem pra on�a comer e me tirar daquele sofrimento”, exagera.
Hoje, �nibus prec�rios saem da rodovi�ria de Montalv�nia e percorrem a estrada aberta por Montalv�o h� 50 anos, um dos trechos ainda n�o asfaltados da BR-030. “N�s aqui vive esquecido do mundo, n�o tem direito de nada: hospital, saneamento, nada”, constata Manuel Corr�a Fran�a, enquanto segue para o assentamento Vaca Preta no �nibus escolar carregado de mantimentos, caixa d’�gua, bicicleta, botij�es de g�s e sacos de ra��o pelo corredor. “Carro baixo fica na estrada; � o meio de transporte que n�s temos”, explica, ao lado da esposa. “O pessoal da ro�a n�o tem valor”, comenta ela. “J� pensou se Montalv�o tivesse vivo? Tava um brinco, n�?”, diz, pondo f� no poder de administrador dessa esp�cie de Juscelino Kubitschek que n�o deu certo.

Jogada de mestre na Justi�a e na pol�tica
Vision�rio e pol�mico, Ant�nio Lopo Montalv�o nasceu em 1917, em Nhandutiba, zona rural de Manga. Ainda jovem, se mudou com a fam�lia para Goi�s, onde, em uma situa��o de leg�tima defesa que terminou em morte, se viu caindo no mundo para escapar da persegui��o que se seguiu. Percorreu o pa�s at� alcan�ar Porto Alegre. Tra�ou uma rota para o Oriente, com planos de chegar � �ndia via Londres, mas ficou pelo caminho, em Buenos Aires, onde viveu por dois anos. Autodidata, tendo estudado formalmente at� a 3ª s�rie, se ocupou da leitura de cl�ssicos, retornando ao Norte de Minas em 1949, decidido a desenvolver a regi�o no que considerava sua miss�o c�smica na Terra.
Para isso, se estabeleceu na vila de Piracueba, hoje S�o Sebasti�o dos Po��es, distrito de Montalv�nia. Uma das primeiras novidades providenciadas foi a energia el�trica. Com recursos pr�prios, instalou postes e fia��o. “Colocou um motorzinho a �leo, a� mostrou energia pro povo”, afirma o lavrador Francisco Gon�alves da Silva, de 76, ao lado da loja de material de constru��o que abrigou a primeira casa comercial do fundador. Segundo dizem, n�o foram poucos os que correram assombrados quando acesas as primeiras l�mpadas, chamadas pelos moradores de “cabacinhas de fogo”. “N�o tem outro com uma hist�ria dessas, n�o. Ant�nio Montalv�o foi um pioneiro”, afirma Joaquim Cardoso da Silva, do alto de seus 93 anos. “Dos que desbravou aqui tudo, s� existe eu. Sou o �ltimo fundador da cidade que existe vivo”, atesta.
No sert�o isolado do in�cio dos anos 50, a campanha pelo progresso come�ava a contrariar o poder local. “O neg�cio do telefone, n�s come�amos a linha pra Manga, e fomo muito homem. Chegou um oficial de Justi�a com mandado do juiz barrando o servi�o, pra n�s n�o cort� nem uma �rvore pra frente mais”, conta Joaquim. “A� foi quando come�ou a rixa, foi dureza, mo�o. Teve tiroteio aqui, teve um bocado de coisa”, testemunha o pioneiro.
Tendo censuradas suas iniciativas, Montalv�o viu como sa�da a cria��o da pr�pria cidade, o que a seu ver traria independ�ncia do mando dos coron�is. Usando como pretexto a agricultura, tomou empr�stimo no Banco do Brasil e comprou 724 hectares da Fazenda Inha�mas, na conflu�ncia dos rios Coch� e Po��es. “Quando barrou l�, ele veio e comprou aqui”, explica Joaquim. Segundo ele, havia uma parte menor de pasto e o restante era mata fechada, cuja primeira tarefa era derrubar. “Baseadamente uns 10 homens que n�s viemo. Vinha todo domingo � tarde e voltava todo s�bado, tudo a p�.” Aberta a primeira clareira no que hoje � a Pra�a Cristo Rei, a cidade foi fundada em 22 de abril de 1952, com uma faixa esticada entre duas �rvores. Mas ningu�m acreditava. “O pessoal chamava ele de louco”, conta Zelito Montalv�o.
'HOMEM-TOCO’
Montalv�o pai n�o fazia caso. Tanto que espalhou um jornal pr�prio pelo Nordeste, oferecendo lotes para quem quisesse morar ou trabalhar. “Ele n�o queria gente que tava junto dos coron�is”, conta Zelito. O povoado crescia e o cerco aumentava. “Era muita tocaia, jagun�o esperando em estrada para matar. Como ele continuava vivo, surgiu a lenda de que virava toco para escapar”, explica. Safando-se de emboscadas e calculando os votos de Po��es e da nascente Montalv�nia, se candidatou � Prefeitura de Manga, a sede do poder pol�tico local, sendo eleito na segunda tentativa, em 1958. Com uma oposi��o inconformada com a derrota e que impossibilitava qualquer ambiente administrativo em Manga, ap�s um atentado promovido por coron�is, em 1960, Montalv�o transfere a documenta��o da prefeitura em sigilo, passando a despachar a partir de “sua” Montalv�nia.
Descoberto o movimento, Manga � cercada por homens armados e a disputa pol�tica pega fogo, s� apagado com “um acordo com os coron�is e as autoridades, para devolver a prefeitura para Manga, em troca da emancipa��o de Montalv�nia”, lembra o herdeiro do fundador. Em uma manobra jur�dica, foi emancipado o distrito de S�o Sebasti�o dos Po��es, alterada a localiza��o da sede do munic�pio e simultaneamente mudado o nome para Montalv�nia. “Foi exce��o: Montalv�nia foi direto de povoado � condi��o de cidade”, conta Zelito.
Notas do pedal

S� Jesus
Passado meio s�culo da picada aberta pelo pioneiro Ant�nio Montalv�o que virou trecho de estrada federal, o isolamento e o arei�o em meio � caatinga fechada ainda dificultam o acesso � regi�o. “A BR-030 s� piora”, constata o motorista de caminh�o A�lton Antunes Cardoso, de 47 anos, 12 deles percorrendo a estrada. Rodando � noite, ele se queixa dos buracos, evitados como pode no caminh�o que carrega oito toneladas de feno. “� s� eu e ele”, aponta, indicando uma imagem de Jesus Cristo no para-brisa. O trecho de Chapada Ga�cha a Montalv�nia, com menos de 200 quil�metros, � percorrido em seis horas. “N�s precisamos de estrada, muita estrada. Se ligasse esse asfalto de Chapada Ga�cha at� Carinhanha, ligaria o Brasil todo”, conclui.

Olho Vivo no Sert�o
Com a contribui��o direta de moradores e dinheiro arrecadado em eventos, policiais militares de Montalv�nia deram in�cio a projeto de videomonitoramento in�dito no sert�o do Norte mineiro. Guardadas as propor��es, uma iniciativa digna do vision�rio Montalv�o. Convocando a popula��o com chamadas em uma r�dio local, em julho passado a Pol�cia Militar local passava a boina pedindo contribui��es para a instala��o de c�meras em pontos estrat�gicos. Cotas foram vendidas a R$ 550 cada, com pagamentos ao Conselho Comunit�rio de Seguran�a P�blica (Consep) e acompanhamento do Minist�rio P�blico. Renderam R$ 17 mil. Uma festa, o Forr� do Pelot�o, arrecadou R$ 6 mil. Outros R$ 11 mil vieram de um leil�o de animais doados, incluindo bezerros, bodes e at� galinhas. A soma pagou quatro c�meras e a central. Um primeiro flagrante das lentes j� ocorreu perto de um banco na �rea central, com a pris�o de um suspeito armado, conta um dos idealizadores do projeto, o sargento Tiago Lima, do 30º Batalh�o da PM.
A B�blia de Pedra
Nos estudos do que chamou de a B�blia de Pedra, por meio dos quais se debru�ou sobre as imagens rupestres gravadas em cavernas de Montalv�nia, Ant�nio Montalv�o “descobriu” uma nova Mesopot�mia no sert�o mineiro, onde os rios Coch� e Carinhanha seriam os correspondentes ao Tigre e ao Eufrates, que delineavam a antiga civiliza��o do Oriente M�dio. Descartando o Equador, ele afirmava que o centro da Terra seria uma linha curva, que passaria pelo Norte de Minas. Eleito o quarto prefeito de Montalv�nia em 1972, Montalv�o se ocupou de divulgar os achados e convidou arque�logos para a realiza��o de pesquisas. Ao longo da d�cada de 1970, escreveu e publicou suas teorias, editando dois livros e cinco volumes da Revista do Brasil Remoto. Doze livros contendo interpreta��es das gravuras rupestres locais permanecem in�ditos.
‘Malineza’ com o patriarca
“A inten��o foi fant�stica, uma cidade bem tra�ada, os nomes das pra�as, das ruas, e no que deu?”, questiona o artista de rua Tonic�o, que aos s�bados se apresenta na Pra�a Cristo Rei, no Centro de Montalv�nia, apontando problemas comuns a todas as cidades, como o desrespeito ao per�metro urbano e o surgimento de favelas. No repert�rio de composi��es tocadas na guitarra el�trica, o roqueiro improvisa com os versos finais do hino montalvanense: “Bradar o seu nome seu povo n�o cansa, Montalv�nia de Montalv�o, segunda Bras�lia da nossa esperan�a”. Ilhada na rotat�ria em frente, a est�tua do fundador segue vandalizada, com um dedo quebrado e nariz arrancado. O zelador Manuel Alves observa o estrago e comenta: “Essas malineza se faz � � noite”.