
A esperan�a � a �ltima que morre – mesmo n�o restando muito do Museu Nacional, do Rio de Janeiro (RJ), alvo de inc�ndio que ontem completou um m�s e cujas labaredas destru�ram achados arqueol�gicos e paleontol�gicos e outros tesouros da humanidade. Ontem, a diretoria do equipamento cultural vinculado � Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) informou que o cr�nio de Luzia, considerada “a primeira brasileira”, encontrado em 1974 na gruta da Lapa Vermelha, em Pedro Leopoldo, Grande Belo Horizonte, pode estar inteiro em meio aos escombros. O motivo � que o f�ssil de 11,4 mil anos, encontrado em Minas pela arque�loga francesa Annette Laming Emperaire (1917-1977), estava guardado dentro de uma caixa de metal, em um arm�rio do primeiro andar.
“N�o perdemos a esperan�a de encontrar Luzia, que est� numa �rea considerada de risco. Mas j� percebemos, pelas imagens captadas por drones, que no local h� muitas pe�as que podem ser resgatadas”, disse o diretor administrativo do Museu Nacional, Wagner Martins, que participou, de manh�, de um abra�o coletivo dos funcion�rios para marcar um m�s da trag�dia, ocorrida em 2 de setembro. Martins explicou que, por quest�o de seguran�a e tamb�m devido �s investiga��es da Pol�cia Federal e ao inqu�rito instaurado, n�o � poss�vel ainda entrar no pr�dio. Por�m, r�plicas em tr�s dimens�es do cr�nio e da reconstitui��o da face da primeira brasileira j� foram feitas com base em documenta��o digital do acervo.
Luzia, um dos s�mbolos da maior trag�dia do patrim�nio cultural do pa�s, traz � tona o nome de uma cientista fundamental nessa hist�ria, com uma vida extraordin�ria destacada por estudiosos. A trajet�ria da arque�loga Annette Laming Emperaire passa por momentos-chave do s�culo 20, como a Revolu��o Russa (1917) e a Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Filha de diplomatas franceses e nascida em S�o Petersburgo, na R�ssia, 15 dias antes de os bolcheviques tomarem Moscou ela seguiu com os pais para a Fran�a. J� adulta, quando estourou o conflito mundial, participou da resist�ncia francesa at� cair nas m�os dos alem�es. Com o fim da guerra, Annette se dedicou � paix�o pelas pesquisas e escava��es, que lhe trouxe ao Brasil e, na d�cada de 1970, a Lagoa Santa, na Grande BH. Como chefe de uma miss�o franco-brasileira, encontrou o f�ssil humano com data��o mais antiga do pa�s, que depois seria batizado como “Luzia”, e deu nova dimens�o aos achados do naturalista dinamarqu�s Peter Lund (1801-1880).
Um bom peda�o da passagem da pesquisadora francesa pela regi�o c�rstica de Lagoa Santa, que inclui, al�m de Lagoa Santa e Pedro Leopoldo, os munic�pios de Matozinhos, Capim Branco, Vespasiano, Confins, Funil�ndia e Prudente de Morais, est� no Centro de Arqueologia Annette Laming Emperaire (Caale), da Prefeitura de Lagoa Santa, em funcionamento h� 35 anos. Transtornada com o inc�ndio do Museu Nacional, a diretora do Caale, arque�loga Ros�ngela Albano, destaca a figura da francesa como “grande pesquisadora”, que criou um “s�tio (arqueol�gico)-escola” na regi�o, para forma��o de profissionais, al�m de ter feito estudos pioneiros sobre pinturas rupestre.
Na equipe de Annette estavam pesquisadores do Museu Nacional, para onde foram enviadas milhares de fragmentos cer�micos, l�ticos e ossos encontrados nas escava��es. Dessa forma, teve papel de relev�ncia na forma��o de toda uma gera��o de arque�logos, a exemplo do professor Andr� Prous, Ni�de Guidon, Maria Beltr�o e Paulo Junqueira. No Caale, � poss�vel aprender muito sobre a criadora de uma metodologia in�dita at� ent�o no pa�s, para o estudo das pinturas rupestres presentes nas cavernas e abrigos da regi�o, e sobre o seu pioneirismo nas primeiras data��es com o uso de carbono 14 no Brasil.

ESCAVA��ES A miss�o franco-brasileira em Lagoa Santa, sob a chancela da Organiza��o das Na��es Unidas para a Educa��o, a Ci�ncia e a Cultura (Unesco), permaneceu na regi�o entre 1974 e 1976 e concentrou as escava��es principalmente na Lapa Vermelha de Pedro Leopoldo. Foi nessa caverna que Annette encontrou “Luzia”. Em 1998, a “primeira brasileira”, como entrou para a hist�ria, ganhou um rosto. Ao fazer o levantamento de cole��es de f�sseis no museu, o antrop�logo Walter Neves, da Universidade de S�o Paulo (USP), fez estudos aprofundados sobre os ossos e providenciou a data��o, que � de 11,4 mil anos.
Um dos grandes m�ritos da miss�o franco-brasileira, conforme especialistas, foi resgatar no cen�rio cient�fico mundial a import�ncia de Lagoa Santa, onde doutor Lund, em mais de quatro d�cadas, coletou mais de 12 mil f�sseis, os quais foram enviados, em 1845, ao rei da Dinamarca. Depois de Lund, a regi�o, na �rea de Preserva��o Ambiental C�rstica de Lagoa Santa (APA C�rstica), s� atraiu novos olhares na d�cada de 1950, quando pesquisadores da Academia Mineira de Ci�ncias e do Museu Nacional retomaram as escava��es.
Houve um hiato de quase 100 anos nas pesquisas e a miss�o franco-brasileira, dizem especialistas, fez um bom trabalho, provocando um despertar nas pesquisas de maneira sistem�tica. A regi�o c�rstica � das mais importantes em termos arqueol�gicos, paleontol�gicos e espeleol�gicos do mundo, e o legado de Annette inclui a cria��o de um guia, refer�ncia at� hoje para estudos de material l�tico – ou instrumentos de pedra produzidos pelos primeiros habitantes da Am�rica do Sul. J� no Paran�, onde atuou nas d�cadas de 1950 e 1960, estudou sambaquis, os s�tios arqueol�gicos do litoral. Al�m de pesquisadora dedicada, ficou o registro de que Annette era “uma pessoa af�vel, simples e que conversava com todo mundo”.
EUROPEUS NOS TR�PICOS
1801
» Nasce na Dinamarca Peter W. Lund, que viveu 46 anos na regi�o de Lagoa Santa e � considerado o pai da paleontologia, arqueologia e espeleologia brasileiras
1832
» Lund (1801-1880) faz as primeiras descobertas de f�sseis em cavernas e abrigos de Lagoa Santa
1845
» Lund envia ao rei da Dinamarca a cole��o de f�sseis encontrados na regi�o de Lagoa Santa
D�cada de 1950
» Pesquisadores da Academia Mineira de Ci�ncias e do Museu Nacional do Rio de Janeiro retomam as escava��es na regi�o
1974
» Miss�o franco-brasileira, chefiada por Annette Laming Emperaire (1917-1977), faz escava��es at� 1976, em Lagoa Santa
1975
» Annette Laming encontra na Lapa Vermelha IV o cr�nio de Luzia, o f�ssil humano mais antigo com data��o do Brasil. Al�m de Luzia, milhares de vest�gios arqueol�gicos foram enviados ao Museu Nacional, no Rio de Janeiro
1998
» Antrop�logo Walter Neves, da Universidade de S�o Paulo, estuda e data (11,4 mil anos) o cr�nio de Luzia
Marco da arqueologia

Annette Laming-Emperaire se formou primeiro em filosofia para depois se especializar em arqueologia. Em Paris, estudou sob orienta��o do franc�s Leroi Gourhan, com enfoque na arte rupestre da Europa Ocidental e, nos anos seguintes, dedicou-se aos estudos sobre a pr�-hist�ria sul-americana, desenvolvendo, com o marido, J. Emperaire, pesquisas cient�ficas pioneiras sobre os sambaquis do litoral brasileiro. Nesse setor, os dois conseguiram as primeiras data��es radiocarb�nicas para s�tios arqueol�gicos do pa�s. Depois de estudar os pontos de ocupa��o humana mais antiga na Patag�nia chilena, Annette retornou ao Brasil e participou da expedi��o para estudar um dos �ltimos grupos ind�genas arredios do Brasil meridional – os xet�s, do Paran�. J� como diretora de pesquisas da �cole Pratique des Hautes Etudes, de Paris, Annette foi, nos anos 1970, coordenadora cient�fica da miss�o franco-brasileira de Lagoa Santa, que atuou no abrigo de Lapa Vermelha IV, em Pedro Leopoldo, na Grande BH. Nesse local, foi poss�vel, pela primeira vez, obter a data��o m�nima para pinturas rupestres brasileiras. Ela morreu aos 60 anos, em Curitiba (PR).
A��O COLABORATIVA A dire��o do Museu Nacional do Rio de Janeiro e a Associa��o Amigos do Museu Nacional lan�aram, ontem, uma a��o de financiamento coletivo para arrecadar fundos para atendimento a escolas do ensino fundamental e m�dio. Com o dinheiro, ser�o mantidos projetos e ter�o continuidade as atividades na comunidade escolar. J� foram arrecadados mais de R$ 15 mil. O objetivo inicial � chegar a R$ 50 mil. J� a segunda etapa pretende arrecadar R$ 300 mil. A campanha estar� dispon�vel at� 21 de novembro no site https://benfeitoria.com/museunacional. As doa��es variam de R$ 20 a R$ 10 mil. O museu recebia, por ano, 600 escolas, com atendimento a cerca de 17 mil alunos.