
Imagine, de um dia para outro, ficar sem pais, perder outros integrantes da fam�lia, amigos, n�o ter mais sua casa, seus bichos, o rio em que nadava e pescava, livros, o quintal para brincar... Ficar sem seu mundo, inesperadamente, � um trauma que afeta qualquer ser humano, mas fica ainda mais dif�cil quando � enfrentado por crian�as e adolescentes. Tudo o que os menores de Mariana viveram depois da trag�dia da Samarco, h� tr�s anos, os de Brumadinho tamb�m j� sofrem. O rompimento das barragens do Fund�o, em 2015, e a da Mina C�rrego do Feij�o, que completa um m�s amanh�, deixar�o marcas profundas, que ainda v�o repercutir por anos entre os que est�o apenas come�ando a vida.
Josefa Josenilda Evangelista Braga, de 38 anos, m�e de Francisco, de 7, Maria Vit�ria, de 12, e Paulo C�sar, de 14, moradora do Bairro C�rrego do Feij�o, que viu a lama de rejeitos parar na porta de casa, revela ter notado a mudan�a de comportamento dos pequenos. No dia da trag�dia, ela conta que todos escutaram os gritos de quem estava na barragem da Vale. “Subimos um morro, para nos proteger. Francisco, coitado, � gordinho e custou a subir correndo. Ele, ali�s, � o mais sens�vel. Chora muito, grita, em outra hora est� muito agressivo... Tamb�m custa a dormir”, conta. Preocupa��o que assola a m�e, que j� detectou mudan�as tamb�m na atitude dos mais velhos: “Os adolescentes est�o mais calados. Eles perderam duas amiguinhas com quem estudaram desde os 3 anos, n�o podemos nem falar o nome delas, porque choram”.
Certamente, os filhos de Josefa v�o precisar de ajuda, al�m do apoio da m�e: “Qualquer barulho eles se assustam, acham que � a barragem de novo. Outra noite, acordaram com o barulho do ventilador, dei um pulo da cama e tive de acalm�-los. Eles ainda n�o t�m acompanhamento psicol�gico. A Vale ofereceu, pegou o nome e disse que algu�m ia na minha casa. Mas ningu�m apareceu. Duas psic�logas volunt�rias foram {a minha casa, conversaram e disseram que v�o estar por aqui, se precisarmos”.
Como as rea��es s�o imprevis�veis, Atamaio Ferreira, de 48, seguran�a, est� impressionado com a postura da filha, Larissa Vit�ria, de 8: “Agrade�o a Deus pela for�a dela. Perdeu duas tias e n�o se deixou abater. Eu e a m�e temos conversado muito com ela, orientado. Est� dif�cil dormir e lidar com a ang�stia, j� que minha irm� est� desaparecida. Mas temos de ter for�a, esperan�a e f�. Se � para frente que se anda, vamos andar”.
A tend�ncia ao adoecimento de crian�as e adolescentes que convivem com trag�dias � comprovada por especialistas. Em 2017, a m�dica psiquiatra Maila de Castro, pesquisadora e professora da Universidade Federal de Minas Gerais, participou da pesquisa sobre a Realidade de Sa�de Mental em Mariana, e fez o diagn�stico das fam�lias atingidas pelo rompimento da barragem do Fund�o. O objetivo foi avaliar a situa��o de sa�de dos indiv�duos afetados.
Foram feitas 271 entrevistas completas, 225 entre pessoas com idade superior a 18 anos e 46 entre pacientes de 10 a 17 anos. O diagn�stico de depress�o foi fechado em 28,9% dos adultos avaliados. O transtorno de ansiedade generalizada foi diagnosticado em 32% dos entrevistados. O transtorno de estresse p�s-traum�tico, em 12% dos atingidos. J� entre os menores, 82,9% dos entrevistados foram rastreados positivamente para o estresse p�s-traum�tico.
Maila de Castro explica que o mal “se caracteriza por sintomas persistentes de lembran�as do evento traum�tico, comportamentos de fuga de tudo o que lembre o evento e excitabilidade aumentada, ap�s a exposi��o a um evento traum�tico. Os sintomas podem se apresentar imediatamente ap�s o epis�dio, ou tardiamente, depois de seis meses.” � uma das doen�as mentais p�s-desastre mais comuns. “A alta taxa de rastreio positivo encontrada no nosso estudo indica um impacto de magnitude cl�nica relevante, ao qual a popula��o infantojuvenil foi submetida frente � exposi��o ao evento traum�tico”, diz a psiquiatra. Ela alerta que todas as pessoas rastreadas positivamente precisam ser avaliadas por uma equipe de sa�de mental.
reflexoS Diante do que constatou em Mariana, Maila de Castro prev� que os atingidos de Brumadinho tamb�m enfrentar�o dificuldades. “Crian�as e adolescentes s�o muito diferentes de adultos, tanto de ponto de vista biol�gico quanto social. Os danos causados por traumas em c�rebros e personalidades em forma��o s�o diferentes e podem se apresentar como cicatrizes emocionais na vida adulta. De fato, traumas est�o associados ao desenvolvimento de doen�as psiqui�tricas, cardiovasculares e mortalidade na idade adulta, inclusive por suic�dio.”
No entanto, ao avaliar as duas trag�dias, Maila de Castro chama a aten��o para as particularidades de cada uma: “Acredito que existam diferen�as importantes. A primeira � o n�mero de mortos. Em Mariana, houve menos pessoas mortas e um n�mero muito grande de sobreviventes expostos ao trauma. Em Brumadinho, h� um n�mero muito maior de �bitos e menor de pessoas expostas diretamente. Isso implicar� perfis diferentes de transtornos mentais. O n�mero de pessoas vivendo o luto tamb�m � diferente nos dois desastres. H� ainda uma diferen�a importante no perfil sociodemogr�fico nas duas popula��es. No primeiro desastre temos uma popula��o mais rural e, no segundo, mais urbana. Isso muda os fatores de prote��o e de risco de cada atingido.”
Tr�s perguntas para...
Ana Christina Mageste, psiquiatra especializada em crian�as e adolescentes, secret�ria do Departamento de Psiquiatria Infantil da Associa��o Brasileira de Psiquiatria
Quais os principais traumas mentais que o rompimento da barragem em Brumadinho podem ocasionar em crian�as e adolescentes? A quais sinais � preciso estar atento?
O principal transtorno mental que ocorre nas crian�as ap�s um evento dessa magnitude � o transtorno de estresse p�s-traum�tico (TEPT). Cerca de 4% das pessoas com menos de 18 anos est�o expostas a algum tipo de trauma que leva a esse transtorno. Segundo o Instituto Nacional de Sa�de Mental (USA), dessas, 7% das meninas e 2% dos meninos s�o diagnosticados com TEPT. Podem apresentar dist�rbios do sono, sinais depressivos, sentir-se nervosas ou em alerta, sendo facilmente assustadas, al�m de perder interesse em coisas de que gostavam, ter dificuldade em expressar carinho, externar irritabilidade e agressividade, evitar lugares ou situa��es que tragam de volta mem�rias do acontecido, viv�ncias em forma de imagens, sons, cheiros ou sentimentos que levam � sensa��o de estar ocorrendo novamente, dificuldade de concentra��o, comportamentos regressivos e preocupa��o com morte prematura. Os sintomas f�sicos podem ser dores de cabe�a ou de est�mago. �s vezes, os efeitos dos eventos traum�ticos podem ser retardados por seis meses ou mais, mas quando o TEPT ocorre logo ap�s um evento, a condi��o geralmente melhora ap�s tr�s meses. TEPT em crian�as, geralmente, se torna um transtorno cr�nico.
Como os adultos podem ajud�-las? At� porque parte dessas pessoas tamb�m foram atingidas...
Podem ajudar principalmente escutando o que as crian�as t�m a dizer e percebendo comportamentos diferentes do habitual. Se a crian�a fizer perguntas, tentar respond�-las de uma maneira adequada � idade. N�o adianta mentir nem fingir que nada est� acontecendo e que tudo est� bem. As crian�as da atualidade valorizam o meio ambiente, os cuidados com a polui��o, com a �gua. Sabem que houve destrui��o, que o rio est� polu�do, que a rua onde elas passavam n�o existe mais. � preciso ser emp�tico, mostrar que entendemos o que a crian�a sente, e que tamb�m estamos tristes. Mas sempre mostrar, com exemplos, que amanh� pode ser melhor: a chuva para, o sol nasce, a plantinha brota. Nesse caso de Brumadinho, fico pensando nas crian�as que, al�m de perder alguma pessoa querida ou conhecida, convivem com os “�rf�os da Vale”, pois a cidade, e grande parte da popula��o, perdeu a “m�e Vale”, j� que � assim que a empresa muitas vezes funcionava no imagin�rio popular.
O estresse p�s-traum�tico � uma marca que crian�as e adolescentes v�o carregar para a vida?
No caso de Brumadinho, as possibilidades s�o grandes, pois as fam�lias das crian�as tamb�m est�o de luto, o meio ambiente foi devastado e a “m�e Vale” virou madrasta. Mas o TEPT pode ser tratado. A detec��o e interven��o precoces s�o importantes e podem reduzir a gravidade dos sintomas, melhorar o crescimento e desenvolvimento normal da crian�a, assim como a qualidade de vida. A recupera��o � altamente vari�vel e dependente de cada um, das for�as internas, habilidades de enfrentamento e resili�ncia. A recupera��o tamb�m � influenciada pelo suporte dispon�vel no ambiente familiar. Os pais desempenham papel vital em qualquer processo de tratamento. Mas acredito na capacidade de resili�ncia das crian�as e na ajuda que podemos proporcionar a elas.