
Brumadinho – O gosto pela limpeza pode ter salvado a vida de Silvana Lopes, de 55 anos, casada, m�e de quatro filhos, av� cinco vezes e moradora h� oito anos da comunidade de C�rrego do Feij�o. No dia da trag�dia, a enfermeira desempregada estava prestes a seguir para Vespasiano, na Grande BH, levando a filha Larissa e os netos Rafael, de 5, Davi, de 3, e Manuella, de um ano, quando, “do nada”, pegou a vassoura e come�ou a varrer a casa. “M�e, vamos logo! Onde est� a chave do carro?”, perguntava ansiosa a filha, recebendo o sil�ncio como resposta. Poucos minutos depois, Silvana ouviu um estouro que at� hoje retumba em sua cabe�a: era o an�ncio da trag�dia que matou quase 300 pessoas.
“Se estiv�ssemos na estrada, n�o estar�amos vivos. O pior � que a rota de fuga estava errada, indicando a lama, e n�o o ponto de encontro”, lamenta Silvana. Na frente da casa, ao lado do lava-jato do marido, e junto com Larissa e a netinha Manuella, Silvana conta que, em 25 de janeiro, abra�ou com empenho a situa��o de desespero da comunidade. “Inicialmente, fiquei est�tica. Mas logo peguei o carro e sa� avisando de casa em casa sobre o rompimento. Fiquei rouca dois meses.”
Munida das for�as que conseguiu reunir, Silvana passou a coordenar no sal�o comunit�rio (casa de adobe) a entrega de cestas b�sicas e alimentos. “Durante uns 15 dias, dormi, em m�dia, quatro horas por noite. De manh�, bem cedo, ouv�amos os helic�pteros”, recorda-se a enfermeira, dando o tom do clima da pra�a de guerra em que se transformou C�rrego do Feij�o depois que o tsunami de lama arrasou vidas, tocou o terror entre as fam�lias e contaminou a bacia do Rio Paraopeba.
TRABALHO AN�NIMO Silvana chama a aten��o para o envolvimento de muitas pessoas da comunidade, gente conhecida como S�lvia, da sorveteria, Martinha e outros que, anonimamente, desempenharam seu papel noite e dia. “Sou uma mission�ria, ent�o ajudo com amor”, afirma a evang�lica, que estava usando, durante a entrevista, uma camisa com a frase “Jesus, ontem, hoje e sempre”.
Com a filha Manuella no colo, Larissa, de 25, encontra, hoje, uma explica��o para o fato de a fam�lia n�o ter seguido viagem para Vespasiano a fim de visitar um beb� rec�m-nascido. E lan�a um olhar sobre o lava-jato do pai, Luciano, que � vice-presidente da associa��o de moradores. A associa��o � presidida por Eva L�cia. “Perdi um cunhado, Rodrigo Henrique, e um grande amigo, o Wilson Jos�. Neste lava-jato vinham 60 pessoas que traziam seus carros. Todos morreram.”
A vontade de ajudar continua cada vez mais viva – e a fam�lia sabe que h� muito para ser feito. “Se voc�s subirem este caminho”, indica Silvana, “voc�s v�o ver a barragem l� no alto”. E, com tens�o na voz, afirma que a popula��o do C�rrego do Feij�o ainda n�o est� completamente fora de perigo, “pois ainda tem lama para descer”.

S�o 14h de uma quarta-feira e Maria Aparecida Fernandes est� ocupad�ssima: dona de um sal�o de beleza no Bairro Parque da Cachoeira, ela atende uma cliente, ambas com hist�rias para contar e n�o esquecer sobre a trag�dia que assolou Brumadinho e atingiu as partes mais baixas da comunidade, deixando casas sob a lama. Conhecida por todos e chamada de L�cia, a baiana de 43 anos, casada, recorda o dia 25 de janeiro, pouco depois do meio-dia. “Est�vamos em casa, almo�ando, quando ouvi o barulho. Pensei que fosse uma tempestade.”
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De repente, conta L�cia, chegou a not�cia de que a barragem da mina do C�rrego do Feij�o tinha rompido. “Ficamos em p�nico, pois meu pai e minha m�e estavam do outro lado do Rio Paraopeba. Eu olhava para as pessoas na rua e s� via o pranto. Passamos tr�s dias vivendo num inferno”, desabafa a mulher, residente h� 27 anos no Parque da Cachoeira. A situa��o piorou na madrugada do domingo seguinte, quando a sirene foi acionada alertando sobre a possibilidade novo rompimento, o que n�o ocorreu. Emergindo do estado de choque, a baiana de cora��o mineiro encontrou um momento de lucidez e clamou aos c�us: “�, Deus! Me d� for�a para ajudar as pessoas!”
COZINHA IMPROVISADA Com a energia restaurada, L�cia reuniu a fam�lia a fim de que fossem recolhidos mantimentos, roupas, o que fosse poss�vel para ajudar os necessitados. “� dif�cil a gente encontrar quem n�o tenha perdido um parente, um vizinho, um amigo nessa cat�strofe. E as cenas eram terr�veis. Vimos um rapaz todo enlameado andando pela rua, a� o levamos para casa, onde ele tomou banho e trocou de roupa”. O passo seguinte, conta L�cia, foi pedir � dire��o da associa��o de moradores para abrir a sede. “N�o tinha nada l�, ent�o juntamos panelas a fim de cozinhar para os bombeiros, os volunt�rios e o povo sem casa”.
Num dia, com a tens�o ainda nas alturas, apareceram 14 bombeiros sem almo�o. Na panela, havia apenas um resto de arroz, at� a farofa tinha acabado. “Estava com um dinheiro na bolsa, fui ao supermercado e perguntei ao a�ougueiro o que era poss�vel comprar. E ele respondeu ‘tr�s frangos congelados’. Vim aqui em casa e peguei oito ovos para omelete. Foi o que salvou. Deu um pedacinho para cada um, mas todos ficaram satisfeitos.”
Lembrando que tudo brotou de forma espont�nea, sem v�nculos com a associa��o ou igrejas, L�cia lembra que abrigou muito gente em sua casa. “Meu marido e eu ficamos num quarto e, no outro, dormiram at� 10 pessoas. N�o me pergunte como. Sei que a for�a veio do abra�o de cada crian�a.”
O lema dos escoteiros – “Sempre alerta” – nunca abandonou Jo�o Marcos Moreira, de 22 anos, morador de Brumadinho. Estudante de engenharia civil e microempreendedor individual, ele foi “de um extremo a outro” em 25 de janeiro, uma sexta-feira, quando a cidade estremeceu sob o peso do rompimento da barragem do C�rrego do Feij�o. “Estava em casa, tranquilo, de f�rias da faculdade. Vi as pessoas informando pelo WhatsApp, a� passei da calma � preocupa��o sem limites, tentando entender a dimens�o do que ocorria. Minha m�e tinha sa�do para fazer compras, no Centro da cidade, as pessoas foram obrigadas a evacuar as lojas, enfim, tudo ao mesmo tempo.”

No dia seguinte, abalado pela cat�strofe, Jo�o Marcos, ca�ula de tr�s irm�os, n�o titubeou: “N�o adiantava nada ficar lamentando dentro do quarto. O melhor mesmo era ajudar”. Assim, foi espontaneamente � quadra de esportes, a dois quarteir�es de sua casa, e come�ou a colaborar como volunt�rio na organiza��o dos alimentos que chegavam de todo canto. “Al�m de ter sido escoteiro, o que valeu 50% nesse per�odo de um m�s, j� trabalhei em supermercado e conhe�o bem aqui, pois treinei com o Beto da Quadra”, conta o rapaz diante do espa�o agora vazio que acumulou montanhas de garrafas de �gua mineral.
Na �rea da quadra chamada de tatame, Jo�o acabou se tornando um coordenador informal de servi�o. “O tempo todo, o pessoal dizia assim: ‘Pergunta a� pro Jo�o’ ou ‘o Jo�o sabe o que �’. Com isso, fui compreendendo que, naquele momento, o fundamental mesmo era o esp�rito de solidariedade e uni�o”. Certamente, por isso, explica o jovem volunt�rio, “n�o sofri a ponto de chorar nos cinco vel�rios aos quais estive presente.” Ele revela que perdeu um primo de primeiro grau e um colega da faculdade “querido de todos.”
As duas primeiras semanas foram as mais dif�ceis para os volunt�rios, recorda Jo�o Marcos, mas depois o trabalho ganhou din�mica gra�as � roda da solidariedade. “Acho que minha forma��o cat�lica ajudou, mas o esp�rito de coopera��o falou alto em todos os momentos. Sempre penso que esses dias foram fagulhas que iluminaram nossas vidas. Por isso mesmo, acredito que a humanidade tem salva��o”.
Certo de que os volunt�rios se transformaram – “essa trag�dia mudou vidas” –, Jo�o Marcos lembra que ‘a ficha’ demorou muito para cair. “Estou tranquilo, mas com lembran�as”, resume, ao lan�ar o olhar para o lugar onde p�de ajudar quem sofreu tanto. Com um sorriso confiante, afirma que se sentiu “muito bem em ajudar”.