Brumadinho, 1 ano depois: natureza tenta resistir � trag�dia
Tomado pelo mar de lama provocado pelo rompimento da Barragem B1, da Vale, C�rrego do Feij�o ainda surge l�mpido em seu nascedouro, mas comunidade ao seu redor definha a passos largos
Vista a�rea da Fazenda �ndia, onde fica o nascedouro do C�rrego do Feij�o (foto: Mateus Parreiras/EM/D.A Press)
O nome C�rrego do Feij�o entrou para a hist�ria em 25 de janeiro de 2019 como a pior trag�dia miner�ria das �ltimas tr�s d�cadas, a segunda mais grave em estragos ambientais e socioecon�micos ap�s Mariana (2015). Mas, ao contr�rio da Mina C�rrego do Feij�o, onde estava instalada a Barragem B1, da Vale, em Brumadinho, que se rompeu e soterrou 270 pessoas (11 ainda desaparecidas), e do bairro de mesmo nome, que foi a primeira comunidade atingida pela lama e os rejeitos, o manancial que batiza todas as estruturas ainda surge l�mpido das entranhas da terra, a apenas dois dias de essa trag�dia completar um ano, no pr�ximo s�bado. Para mostrar esse s�mbolo que resiste, como a comunidade mutilada pela dor e a natureza dilacerada sob rejeitos, a reportagem do Estado de Minas foi at� o ber�o do singelo riacho do interior mineiro para contar a sua hist�ria.
O nascedouro do C�rrego do Feij�o se d� na Fazenda �ndia, uma propriedade rural tradicional da regi�o de Brumadinho que nos �ltimos 35 anos chegou a negociar 3.500 porcos por ano, al�m de outras culturas. A fazenda fica espremida entre a Mina do Feij�o e a Mina de Jangada, da Vale, e a Minera��o Ibirit�, tr�s grandes explora��es de min�rio de ferro. Mas nem o ber��rio do manancial escapou ileso aos reflexos da trag�dia miner�ria. A apenas dois quil�metros do Bairro C�rrego do Feij�o, as porteiras por onde caminh�es passavam diariamente repletos de animais est�o agora fechadas e assim estiveram desde o �ltimo Natal.
Duas placas colocadas pela administra��o explicam a situa��o: “Prezados clientes, informamos que a partir do dia 25/12/2019 n�o estaremos realizando venda de su�nos. Devido ao rompimento da Barragem da Vale, ficamos impossibilitados de dar continuidade em nossas produ��es. Desejamos a todos um feliz 2020 e agradecemos pelos 35 anos de dedica��o e prefer�ncia � Fazenda �ndia”.
(foto: Arte EM)
Somente dois funcion�rios dos 11 que chegaram a morar e a trabalhar na Fazenda �ndia, mantinham as coisas minimamente em ordem. Vagner de Jesus Silva, o Baiano, de 42 anos, trabalha l� h� tr�s anos e, ao lado do jovem Lucas Pereira dos Santos, de 25, que veio de BH, ro�am o mato, mant�m as poucas cria��es alimentadas, fazem reparos e manuten��es. “Nosso principal comprador era um frigor�fico em Betim. Mas os clientes sumiram. Depois que a barragem se rompeu, parou de ter clientes. N�o sei se t�m medo da �gua que os porcos bebem ou de os fregueses n�o quererem nada que venha do C�rrego do Feij�o”, afirma Vagner.
A decad�ncia, segundo eles, � a mesma que atingiu o Bairro C�rrego do Feij�o. “A comunidade tamb�m acabou. N�o tem mais supermercado, mercearia fechou, g�s, tudo precisa ser comprado em Brumadinho. Aqui ainda tem algum gado, mas a partir deste m�s j� vai vender. Parece que a Vale deve comprar a fazenda, foi o que eu ouvi falar”, disse Lucas. “N�o sei o que vai ser da gente. Estou esperando para ver se o patr�o vai me mandar embora, se vou ficar desempregado. Perdi um amigo na pousada, o Macuco, e uma colega que era terceirizada na cozinha do restaurante da mina da Vale. Tudo isso daqui foi muito triste e a gente sente essa tristeza”, desabafa Vagner, enquanto Lucas concorda em colocar uma bota e, mesmo de bermudas, enfrentar o matagal e a fama de cobras venenosas para chegar at� a nascente que d� nome a essa hist�ria.
Presente desolador
Placa anuncia fim da comercializa��o de su�nos. Baixa procura provocou a suspens�o das atividades (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
Depois da nascente, o C�rrego do Feij�o percorre dois quil�metros at� o bairro que leva seu nome e outros dois at� cair no Ribeir�o Ferro-Carv�o, soterrado pelos rejeitos. Antes disso, percorre a Fazenda �ndia, hoje abandonada, com galp�es fechados, ainda com rodas de tratores e pe�as empilhadas ao lado dos ve�culos. S�o v�rios setores utilizados na cria��o dos porcos que Vagner e outro funcion�rio, Lucas, tentam manter limpos, com as paredes caiadas e capinados. Os mais confort�veis e estruturados s�o as maternidades, onde at� 400 porcas ficavam em baias individuais, com anteparos met�licos para suspender os animais e propiciar que os leit�es chegassem at� as tetas para mamar. “Toda semana chegavam mais 10 matronas (porcas) para procriar”, conta Vagner.
Dois grandes c�modos funcionavam como creches para os leit�es. S�o espa�os bem-arejados, iluminados e com pisos emborrachados para receber os filhotes e permitir uma higieniza��o para um �ndice maior de sobreviv�ncia a doen�as. Dois galp�es compridos s�o usados para a reprodu��o das porcas e para separar aquelas j� prenhes das em per�odo f�rtil. Os �ltimos c�modos s�o a engorda e o encaminhamento para o abate, que n�o se dava na fazenda, mas dentro dos caminh�es especializados dos parceiros que compravam os porcos vivos. Dois porcos vendidos ainda est�o nas baias aguardando ser levados.
Dois porcos j� vendidos, que esperavam para ser levados, eram os raros ocupantes do local (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
A �gua usada para os porcos beberem e para o consumo da propriedade vem do C�rrego do Feij�o. Um sistema de recolhimento de dejetos concentra todos os excrementos num bosteiro. A parte s�lida � retirada por caminh�es apropriados para se tornar fertilizante e adubo, enquanto a �gua � escoada e passa por duas lagoas antes de ser encaminhada para um reservat�rio pr�prio, n�o tendo contato com a �gua do C�rrego do Feij�o.
Abaixo das pocilgas, o c�rrego desce claro. Bem no leito, perto de um pequeno barramento de pedras, uma conex�o tinha sido instalada para remover a �gua do c�rrego para as instala��es abandonadas. Agora, a �gua que chega na caixa j� � suficiente. Peixes pequenos ainda nadam pelas �guas e at� algumas til�pias, que escaparam de lagos pr�ximos quando as chuvas inundaram lagos vizinhos. Logo ali uma cerca divide a fazenda das mineradoras.
Obst�culos pelo caminho
Lucas Pereira mostra as �guas do c�rrego: '� dif�cil imaginar que essa �gua que desce daqui t�o limpa ficou debaixo da lama da mineradora' (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)
O caminho para a nascente do C�rrego do Feij�o segue deixando a fazenda mata adentro, por tr�s de tr�s moradias tomadas pelo matagal e de onde se identifica pela folhagem e porte diferentes alguns p�s de manga e de goiaba que deviam fazer parte de um pomar. Depois do mato, um remanescente de pasto alto de capim braque�ria numa �rea descampada atrapalha o avan�o. Quem n�o � de l� n�o v� sinal de trilha. Mas Lucas, que precisa da �gua para abastecer a propriedade, mostra o caminho � frente, at� a borda de uma mata protegida pelas maca�bas do cerrado mineiro. Al�m desse obst�culo, a floresta � densa e tomba sobre a trilha apagada, querendo fech�-la. O rapaz se esgueira, com facilidade se desvencilha dos obst�culos at� a chegada a um ponto onde o ru�do de queda d'�gua alerta para a proximidade da nascente.
O C�rrego do Feij�o brota de uma surg�ncia entre os capins, estruturada por pedras e sacos de areia, mas l�mpida e corrente, um al�vio para a caminhada �rdua sob o sol escaldante. Lucas bebe com vontade a �gua, que � a mesma que sempre consome. “� mesmo dif�cil imaginar que essa �gua que desce daqui t�o limpa ficou debaixo da lama da mineradora. Aqui, ela d� o nome da comunidade, mas quase ningu�m mais conhece a nascente, porque todos est�o indo embora”, desabafa.