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Estado de Minas FERIDAS DE CORPO E ALMA

'Meu namorado me deu o rem�dio e viajou'; relatos de mulheres que fizeram aborto clandestino em MG

A criminaliza��o n�o impede que 1 milh�o de abortos inseguros ocorram todos os anos no pa�s. Pesquisa aponta que uma em cada cinco mulheres j� recorreu � interrup��o clandestina


23/08/2020 04:00 - atualizado 23/08/2020 12:35

A criminalização não impede que 1 milhão de abortos induzidos ocorram todos os anos no país(foto: Arte/ Aissa Mac)
A criminaliza��o n�o impede que 1 milh�o de abortos induzidos ocorram todos os anos no pa�s (foto: Arte/ Aissa Mac)
Carolina (nome fict�cio), aos 21 anos, descobriu que estava gr�vida do namorado. Ao dar a not�cia ao companheiro, foi surpreendida com um brusco t�rmino de namoro e amea�a que mexia com traumas que ela ainda n�o havia superado. Ele disse que o filho cresceria sem pai, como ela cresceu. Rec�m-ingressada na Faculdade de Direito e com longo caminho de sonhos profissionais, ela n�o viu outra escolha. Ainda com cicatrizes de viol�ncia f�sica e psicol�gica desse relacionamento abusivo e sob press�o do ex-namorado, resolveu interromper a gravidez de forma insegura. “Eu estava 100% desesperada, n�o tinha contado pra ningu�m al�m dele. N�o tenho como responsabilizar somente ele pela decis�o de dar fim �quela gravidez, mas acredito que, se tivesse tido qualquer tipo de apoio dele, o desfecho teria sido diferente”, conta Carolina, que hoje tem uma menina que vai completar um ano.

O drama de Carolina � enredo de centenas de milhares de hist�rias de mulheres que decidem, por in�meros motivos, interromper a gravidez que n�o se enquadra no perfil da legisla��o brasileira. Mas a criminaliza��o n�o impede que 1 milh�o de abortos induzidos ocorram todos os anos no Brasil, segundo o Minist�rio da Sa�de, em dado relativo a 2018.

Considera-se aborto, de acordo com a Organiza��o Mundial Sa�de (OMS), a interrup��o, antes das 22 semanas de gesta��o, quando o feto retirado nessas condi��es � incapaz de sobreviver fora do �tero.  S�o tr�s as situa��es em que o aborto � legalizado no Brasil: gravidez decorrente de estupro, inexist�ncia de  outro meio de salvar a vida da gestante, ou feto anenc�falo. Fora isso, o ato � punido com deten��o de um a tr�s anos para a mulher e de um a quatro anos para a pessoa que fizer o procedimento. A �nica situa��o em que o homem, no caso o pai, pode ser punido � se ajudar no aborto.


Carolina estava com 12 semanas quando o ex-namorado comprou o medicamento abortivo. Ele deu a ela o rem�dio que provoca contra��es do �tero para expelir o feto. Mas a primeira tentativa n�o funcionou e ela precisou recorrer ao medicamento novamente. Sem conhecimento de familiares, foi para a casa do ex-namorado, onde esperou pelo resultado. O corpo passou a ter rea��es que ela n�o esperava. “Comecei a ter febre muito alta, de quase 40 graus. Ele me viu passando mal, com febre e foi viajar com os amigos e in�meras mulheres. Ele viajou e me deixou l� sozinha”, conta.

Desamparada, sem poder ir para a casa da m�e, ela procurou uma amiga quando o quadro j� era cr�tico. A busca por ajuda m�dica veio quando, por fim, a situa��o saiu de controle. “Comecei a desmaiar, tive convuls�o e febre. A�, fui parar no hospital, tive infec��o s�ria, perdi muito sangue e quase morri”, relembra.

Por pouco Carolina n�o entrou para as estat�sticas das mulheres que perdem a vida ao passar por uma interrup��o insegura da gravidez. Segundo o Minist�rio da Sa�de, uma mulher morre a cada dois dias por aborto sem supervis�o m�dica adequada. As que n�o morrem buscam atendimento de urg�ncia depois de fazer um aborto inseguro.

A ginecologista e obstetra Sara Paiva, coordenadora do Servi�o de Atendimento de Viol�ncia Sexual do Hospital das Cl�nicas (HC-UFMG), relata que � comum a chegada de mulheres com diversas complica��es com o processo. “J� tive caso de paciente que chegou com infec��o generalizada. Ela tentou fazer a interrup��o da gesta��o com agulha de tric�. Essa agulha levou bact�rias para a cavidade uterina, causando infec��o”, conta. A mulher perdeu o �tero. “Ent�o, as complica��es s�o muito s�rias dessa tentativa de interrup��o clandestina da gesta��o”, alerta.

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Uma em cada cinco mulheres j� abortou


Pesquisadora do Instituto de Bio�tica Direitos Humanos e G�nero (Anis), a antrop�loga D�bora Diniz conduziu uma das pesquisas que detalham o panorama e perfil das mulheres que abortam ilegalmente no Brasil. Ao discursar na audi�ncia p�blica sobre descriminaliza��o do aborto, em 2018, no Supremo Tribunal Federal, ela destacou que uma em cada cinco mulheres aos 40 anos j� fez ao menos um aborto na vida, a maioria entre 20 e 24 anos, e hoje j� t�m filhos.

Os dados do estudo indicam exatamente o que aconteceu com Jussara (nome fict�cio) , hoje com 40 anos. Aos 20, ela ficou gr�vida, quando a sua primeira filha tinha apenas dois anos, e ela tinha um relacionamento inst�vel com seu parceiro. A decis�o de interromper a gesta��o foi consenso do casal. “S� de falar me d� vontade de chorar. Esse assunto � uma coisa pesada para mim”, confessa. At� hoje, 20 anos depois, Jussara carrega sentimento de culpa. “� muito triste, o nen�m morreu e ficou na minha barriga. Tive que vir para BH porque isso � crime. Ficamos com medo de o hospital me denunciar”, conta a mulher, que na �poca morava em Governador Valadares, no Leste de Minas.

No caso de Jussara, a interrup��o ocorreu com 16 semanas. Ela precisou fazer acompanhamento m�dico por alguns meses ap�s o procedimento porque teve inflama��o no �tero. “Quem fez minha curetagem foi um m�dico amigo da fam�lia, que falou que se outro m�dico fizesse o procedimento, iria comunicar � pol�cia porque o rem�dio n�o saiu e grudou na bolsa gestacional”, acrescenta. No caso dos abortos autorizados pela lei, a comunidade m�dica recomenda que a interven��o seja feita at� 12 semanas de gesta��o, per�odo em que o risco de complica��es � quase nulo.

VERGONHA Depois desse momento, a vergonha e o sil�ncio passaram a conviver com a nova mulher que nasceu naquele procedimento. Jussara diz que n�o conseguiu conversar sobre o aborto ilegal com ningu�m al�m do parceiro. “No in�cio, senti muita vergonha. Ainda n�o consigo falar. Quando meus tios me buscaram no hospital, minha vontade era sumir, n�o sabia onde enfiar minha cara de vergonha. Mas minha fam�lia � de verdade, me apoiou. Mas meu pai at� hoje n�o sabe”, disse.

A psic�loga Let�cia Gon�alves, especialista em aten��o a pessoas v�timas de viol�ncia, explica que um sistema de cren�as da sociedade contribui para a estigmatiza��o do aborto, at� mesmo nos casos em que as mulheres t�m autoriza��o legal. Ela informa que, em seus estudos, identifica muitas mulheres que fizeram julgamento social e moral. “O sofrimento vai vir muito vinculado a esses aspectos de introjetar certa norma cultural e ter a percep��o de que n�o cumpriu com essas normas. Isso produz um sentimento de menos-valia e de n�o merecimento de partilhar de um certo pacto social de que, primeiro, um feto, j� � uma vida, logo, deve ser compreendido como uma crian�a”, avalia.


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A criminaliza��o do aborto


A Lei brasileira � mais restritiva do que a de todos os pa�ses do norte global (estados unidos, Europa) Mesmo no sul global (onde o Brasil � localizado) h� muitas legisla��es mais avan�adas incluindo China, India, �frica do Sul, Argentina e Col�mbia, segundo a advogada Juliana Alvim, coordenadora da Cl�nica de Direitos Humanos da UFMG. “Uma das exce��es b�sicas para realiza��o do aborto, mesmo em lugares em que � mais restrito,  � para proteger a sa�de da m�e. ''No nosso caso � a vida da gestante, que � muito mais restrito do que  a sa�de em geral”, explica a professora.

Ela destaca que um ponto question�vel na criminaliza��o � a desigualdade de responsabilidade do ato entre os envolvidos. “Uma cr�tica tradicional das autoras feministas � justamente esta: que a criminaliza��o do aborto � uma forma de reduzir a autonomia sexual e reprodutiva das mulheres, e s� das mulheres, e de instrumentaliz�-las a favor de um certo entendimento de qual seria o papel da mulher na sociedade”, aponta a advogada.

Nessa l�gica de n�o equidade, Juliana destaca que os homens, por sua vez, n�o est�o sujeitos nem �s consequ�ncias criminais, caso n�o participem diretamente do ato, nem aos julgamentos sociais.  “Esse tratamento desigual reflete uma vis�o da mulher como um ‘�tero a servi�o da sociedade’", comenta.

Carolina* sofre as consequ�ncias do aborto inseguro at� hoje. “Eu sou an�mica e meu psicol�gico ficou muito abalado”, relembra. Ela acredita que o procedimento teria sido diferente se estivesse em um pa�s em que o aborto fosse legalizado. “At� porque, ele encontrou o rem�dio com a maior facilidade do mundo, socou em mim sem nenhum tipo de precau��o ou cuidado m�dico e eu quase morri. Mas, gra�as a Deus, n�o aconteceu. Acredito que se fosse legalizado, n�s mulheres n�o precisar�amos arriscar nossa vida”, diz.

*Estagi�ria sob supervis�o do subeditor Paulo Nogueira


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