
Mariana –
Os sacrif�cios da jornada de trabalho que garantem o p�o em casa come�am na alta madrugada. A escurid�o protege Raul (nome fict�cio), de 64 anos, at� que chegue a uma �rea de Ouro Preto onde garimpa ilegalmente para sobreviver. Precisa atravessar a mata sem trilha definida, aos tombos, carregando material pesado, como bateia, enxada, carpetes, ferramentas e comida. Os acidentes s�o frequentes e deixaram cicatrizes pelo corpo. A doen�a tamb�m. Vem com a �gua ruim para beber e a precariedade sanit�ria. Como os primeiros que fundaram Minas Gerais, ele precisa processar cascalho e pedras na beira do rio para encontrar um pouco de ouro. Mas todo o cuidado � pouco, porque o �nico lugar em que tinha licen�a para isso era no rio Gualaxo do Norte, em
Mariana
, soterrado por rejeitos em 2015, ap�s o rompimento da Barragem do Fund�o.
Mas Raul insiste, n�o pode ver a fam�lia passar fome. Apesar de o rompimento ter devastado seu ganha-p�o a Funda��o Renova n�o o reconhece e por isso n�o fornece qualquer aux�lio. “A vida do
garimpeiro
sempre foi dif�cil mesmo, mas a gente hoje tem de arriscar a vida e a liberdade para ter um pouco para levar para casa. � incerteza, dor, perigos, medo, doen�a. Eu sinto mesmo que o jeito que me restou para esse trabalho � parecido com o que os escravos tinham que fazer aqui antigamente”, compara o garimpeiro.
Por causa da ilegalidade, foi detido e preso v�rias vezes, chegando a ficar quase um m�s em uma penitenci�ria da Grande BH. “Na cadeia, ficamos tr�s deitados no boi (banheiro comunit�rio constru�do no ch�o). A cela para quatro tinha 20 pessoas. Quando sa�, procurei outra coisa. Procurei meus direitos, me humilhei e � minha fam�lia. Voltei para fazer o que sei, que � garimpar”, afirma.
A situa��o de Raul chamou a aten��o da C�ritas, assist�ncia t�cnica que auxilia atingidos a buscar a plena restaura��o de seus direitos. Com a ajuda da assist�ncia e de outras ao longo dos 39 munic�pios impactados, a reportagem do Estado de Minas mostra como nos 5 anos que se passaram desde o rompimento, s�o cont�nuas as viola��es diretas e an�logas �s garantias da Declara��o Universal dos Direitos Humanos para v�timas da ruptura do reservat�rio. No caso de Raul e de tantos outros, foram-lhes arrancados o direito ao trabalho legal que exerciam, em condi��es justas, seguido por repouso e lazer. Outras comunidades tradicionais tamb�m se encontram nessa situa��o, pescando onde � proibido e coletando animais que podem estar contaminados para n�o passar necessidades.
Parte dos 42 programas de repara��o da Funda��o Renova poderiam ajudar a melhorar essas situa��es. A Renova foi constitu�da em 2016 em um acordo entre o poder p�blico, as mineradoras respons�veis pelo
rompimento
(Samarco, Vale e BHP Billiton) justamente para reparar os impactos.
Um dos programas � o de prote��o e recupera��o de povos e comunidades tradicionais (n�o-ind�genas), como os garimpeiros, � acompanhado pela consultoria Ramboll, que presta servi�o ao Minist�rio P�blico Federal (MPF). “At� o momento, s�o desenvolvidas a��es emergenciais de fornecimento de �gua e de Aux�lio Financeiro Emergencial para quilombolas de Degredo (ES), aos garimpeiros e faiscadores de Santa Cruz do Escalvado e Rio Doce. Vem sendo realizado, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), um mapeamento dos garimpeiros e demais povos e comunidades tradicionais em quatro munic�pios. Os demais necessitam de contrato com a Renova”, informa a consultoria.
Por meio do envio de seu �ltimo relat�rio de desempenho de atividades, a Renova informa que os prazos para v�rias a��es se encontram em revis�o devido �
pandemia
do novo coronav�rus. At� o momento recebem aux�lio financeiro, h�drico e alimentar 178 quilombolas e 209 garimpeiros (faiscadores). Outras 185 fam�lias quilombolas recebem �gua em Degredo. Boa parte do ano de 2020 ficou abaixo da expectativa de realiza��es, o que s� dever� ser retomado, segundo expectativa, em 2024.
Marcas na alma de povos ind�genas
O Rio Doce era um deus, a arte, a comunidade e o sustento dos �ndios ao longo de suas margens. Mas h� 5 anos, desde o rompimento da Barragem do Fund�o, as comunidades
ind�genas
v�m recebendo basicamente aux�lios emergenciais financeiros e h�dricos, sem uma repara��o efetiva. “Sem o rio Doce perdemos nossa ess�ncia. Ele (o rio) � a alma do povo krenak. Um dano irrepar�vel. Nossa cultura foi afetada em v�rios sentidos. N�o nadamos mais. N�o ensinamos nossos filhos a nadar e a pescar no rio Doce. N�o fazemos o batismo dos nossos filhos no rio Doce. Os jogos ind�genas tradicionais que faz�amos na nossa aldeia eram totalmente voltados ao
Rio Doce
e por isso n�o t�m mais continuidade”, afirma Kremb� Krenak, uma das lideran�as da tribo, que tem cerca de 500 membros em Resplendor, no Leste de Minas Gerais.
De acordo com Kremb�, os �ndios n�o enxergam qualquer avan�o nesses 5 anos. “Nada foi reparado. N�o temos estudos de impactos sobre o rio Doce. A Renova desrespeita totalmente nossa forma de organiza��o, a nossa hist�ria e os conhecimentos tradicionais do nosso povo com o rio”, critica. Observando as viola��es dos direitos humanos, os impactos ao rio Doce ferem a liberdade de religi�o dos �ndios e de manifestar essa cren�a por pr�tica e culto. E impedem que exer�am a vida cultural e os deveres com a sua comunidade para desenvolvimento de sua personalidade.
Para o procurador da Rep�blica no Esp�rito Santo, Paulo Henrique Camargos Trazzi, a repara��o pelo menos aos povos ind�genas deveria ser prioridade diante de sua fragilidade. “Os povos ind�genas t�m no rio Doce uma divindade. Sempre me pergunto se � poss�vel imaginar a dilacera��o na alma de um povo que pensa que seu Deus morreu e voc� n�o pode mais realizar as suas atividades. A repara��o do rio para os ind�genas era uma quest�o moral. Esse caso � �mpar”, afirma.
A consultoria Ramboll, que avalia os programas da Funda��o Renova para o MPF, informa que o pagamento de aux�lio financeiro emergencial vem sendo feito aos �ndios. “Mas sem atualiza��o autom�tica do n�mero de novas fam�lias formadas. A din�mica natural de crescimento das fam�lias n�o � considerada nos acordos, representando, a cada renova��o motivo de tens�o para povos”. Os monitoramentos de sa�de e da qualidade da �gua tamb�m n�o s�o realizados, como os sistemas de abastecimento de �gua ainda n�o est�o prontos.
Os povos ind�genas atingidos pelo desastre, segundo a Ramboll, somam 3.441 habitantes em Resplendor (MG) e Aracruz (ES). “A comunidade ind�gena em Areal, no munic�pio de Linhares (ES), que se autoidentifica como povo Botocudo, n�o � reconhecida pela Funda��o Renova”. J� a funda��o apresentou seu relat�rio de gest�o mensal em que diz que 1.586 titulares recebem aux�lio. Desde meados de 2020, o programa realiza pagamentos abaixo do previsto, com regulariza��o estimada para 2028.
Hist�ria amea�ada de desaparecer

A funda��o de Bento Rodrigues, em 1697, apenas dois anos depois de Mariana, faz daquele subdistrito parte da hist�ria colonial mineira, com a Estrada Real cortando exatamente o centro do povoado, que chegou a reunir 600 pessoas. In�meras rel�quias hist�ricas, como a capela de S�o Bento (s�culo 17), seu acervo, os muros seculares e tamb�m objetos particulares dos moradores foram encobertos pela lama e hoje se encontram amea�ados. Os alicerces e ru�nas da capela, que foi jogada ao ch�o pela lama, hoje deterioram sob uma cobertura artificial que funciona como uma estufa e degrada o material. A Funda��o Renova j� foi, inclusive, notificada e informou que proceder� a troca.
Uma das partes do muro est� submersa no dique S4, de conten��o da lama. Ainda que envelopado por material de conten��o, n�o se sabe se intacto. De acordo com o Minist�rio P�blico Federal, o muro e a igreja, bem como Bento Rodrigues, necessitam de decis�es do Comit� Interfederativo para saber qual o seu destino.
Segundo acompanhamento da Ramboll sobre as a��es de repara��o dos bens culturais e religiosos, h� 2.283 pe�as, objetos e fragmentos recolhidos ap�s o desastre sob a guarda da Funda��o Renova. “Apenas 46 foram restauradas. As a��es de valoriza��o da cultura das comunidades atingidas v�m sendo postergadas pela Funda��o Renova devido � falta dos planos de prote��o dos seus bens materiais e imateriais. Da mesma forma, as a��es de prote��o dos bens arqueol�gicos n�o foram iniciadas, pois sequer o levantamento foi conclu�do. Estudos desenvolvidos por especialistas da Ramboll e dos Institutos Lactec apontam a exist�ncia de bens arqueol�gicos atingidos ou amea�ados a serem protegidos ao longo de toda a bacia, n�o contemplados no programa.
A Funda��o renova informou, por meio da apresenta��o de seu relat�rio de gest�o mensal, que concluiu o diagn�stico de bens tombados em Mariana, Barra Longa, Rio Doce, Santa Cruz do Escalvado e Ponte Nova. A partir de maio, as atividades de restauro e de suporte a manifesta��es culturais foram suspensas em decorr�ncia da pandemia do novo coronav�rus. Desde 2019, esse programa realiza menos do que o previsto, algo que se projeta equilibrar entre 2022 e 2023.
Viola��es em s�rie
