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Estado de Minas Invis�veis da pandemia

''Ningu�m deveria passar pelo que passei' diz v�tima de abuso na inf�ncia

Relato de garota molestada pelo pr�prio pai mostra vulnerabilidade de menores frente a abusadores, condi��o agravada em tempos de portas fechadas pela COVID-19


16/08/2021 04:00


“N�o gosto de recordar, me deixa extremamente chateada. Quando parece que estou seguindo em frente, algo me para. � como se fosse uma pedra no meu caminho.” O desabafo � de uma adolescente de 16 anos, durante audi�ncia de julgamento do acusado de t�-la estuprado dos 6 aos 8 anos de idade – o pr�prio pai. Os traumas da inf�ncia criaram feridas dif�ceis de fechar. Por duas vezes ela perdeu o ano escolar. A luta para ter uma vida normal e sem mem�rias t�o doloridas se tornou obsess�o.  “� um assunto muito delicado para mim. Fa�o sess�es com psic�logo e psiquiatra ao longo de todos esses anos para tirar isso da minha mente. Ningu�m no mundo deveria passar pelo o que passei na minha inf�ncia”, lamenta Ana*. 

Por uma manobra legal da defesa do suspeito, o processo chegou a ser anulado e o calv�rio teve de ser reiniciado, o que a obriga a reviver o trauma repetidas vezes. O Estado de Minas acompanhou o caso durante audi�ncia na Vara Especializada em Crimes contra a Crian�a e o Adolescente, em Belo Horizonte.

Os abusos sexuais come�aram depois da separa��o dos pais, contou a jovem. “Lembro que ele encostava nas minhas partes �ntimas durante os banhos, que do�a muito. Eu n�o entendia a gravidade da situa��o e ficava chateada, porque ele chegou a falar que mataria minha m�e e minha fam�lia se eu contasse. Minha m�e � a pessoa que eu mais amo na vida, como viveria sem ela?”, descreveu a adolescente.  

Na escola, a garota passou a dar sinais de que algo estava errado. Professores notaram que ela arranhava o rosto com as m�os. Embora tenha come�ado tratamento psicol�gico na �poca, os abusos s� foram descobertos depois, quando Ana tomou coragem e contou para a ex-madrasta que, junto de Patr�cia, a m�e da menina, denunciou o crime.  

Patr�cia relatou que a filha tinha medo de ficar sozinha e voltava da casa do pai com a pele assada na regi�o da virilha. Ela a levava ao dermatologista, mas a suspeita de abuso era uma realidade long�nqua. “Eu n�o imaginava. Embora n�o tenha sido bom marido, at� ent�o, era um �timo pai”, diz. “Depois de conseguir que ela me relatasse o que acontecia, ela falou: ‘Agora que te contei, voc� vai morrer?’. Eu respondi: ‘Vou viver para te proteger, para que sua verdade seja dita, vou lutar para que isso ocorra’”, relatou a m�e, aos prantos. 


SEM PARAR A audi�ncia de Ana foi uma das centenas ocorridas na vara especializada nesta pandemia. Entre mar�o de 2020 e mar�o deste ano, houve 269, e 337 senten�as foram proferidas. Os julgamentos foram adaptados �s exig�ncias da pandemia para evitar aglomera��es. V�timas, testemunhas e acusados comparecem presencialmente ao endere�o do Centro de BH, mas as sess�es ocorrem pelo computador, em videoconfer�ncia – magistrados, promotores e advogados podem participar remotamente, de casa ou escrit�rio. Tamb�m se encontram nas depend�ncias psic�logos que acolhem as v�timas e assistentes dos ju�zes. Eles ocupam diferentes salas equipadas com cadeira, mesa e computador.  

Na sala de depoimento especial, a v�tima se encontra com psic�logo, �nica pessoa com quem conversa, capaz de abordar de forma sutil a viol�ncia sofrida. Todo o di�logo � transmitido aos representantes do Judici�rio, Minist�rio P�blico e advogados. No ambiente, h� duas poltronas confort�veis, um microfone, duas c�meras discretas e alguns objetos coloridos que tornam o lugar um pouco mais l�dico. Conclu�da a conversa, o profissional vai � sala de audi�ncia e confere com o juiz se restam d�vidas sobre o caso. Se alguma quest�o for levantada, retorna � sala e lan�a a pergunta de forma adaptada.  

S�o ouvidas ainda testemunhas de defesa e de acusa��o e o r�u. No fim, � feito um resumo do processo. O Minist�rio P�blico pode pedir a condena��o do acusado e o juiz estabelece prazo de cinco a 10 dias para alega��es finais da defesa, seguido de senten�a. 

* Os nomes citados nesta reportagem s�o fict�cios, pois o processo corre em segredo de Justi�a  
 

Sinais n�o podem ser subestimados 

 
O papel do agressor � intimidar. A v�tima de viol�ncia f�sica ou de abuso sexual em ambiente dom�stico sabe que, em tempos de pandemia, no dia seguinte estar� novamente perto do algoz. Fobia, pesadelo, dificuldade de aprendizagem, inibi��o intelectual s�o sinais “sem explica��o” e que t�m aumentado neste per�odo de pandemia entre crian�as e adolescentes atendidos pela psicopedagoga e mestre em educa��o Jane Patr�cia Haddad. “Converso com o pai, que precisou tirar da creche porque estava fechada, e descubro que o menino est� sob os cuidados de vizinho, um familiar ou outro”, relata. 

Jane lembra que, em muitos casos, a viol�ncia decorre da falta de op��o. “A escola e a creche est�o fechadas e, nesse sentido, cairemos na quest�o de pol�ticas p�blicas dos servi�os essenciais. Eu pude ficar isolada em casa, mas quem est� no caixa do supermercado ou da farm�cia, n�o. Essas pessoas tiveram que deixar seus filhos com terceiros, e a crian�a n�o pode reclamar. Se o faz, ela e a m�e n�o ter�o o que comer”, diz. “� uma rela��o perversa, lembrando que o perverso n�o pensa como n�s.” 

Al�m da sensa��o de abandono, a psicopedagoga diz perceber nas crian�as atualmente um estado de vulnerabilidade e desconfian�a grave em rela��o aos adultos. “� um abandono at� da palavra. ‘N�o vou falar, j� falei 10 vezes.’ Ou seja, quem est� querendo enxergar com os olhos de quem enxerga, v� o que est� acontecendo ao nosso lado”, relata.

Para Jane, apesar de a viol�ncia independer de classe econ�mica e social, abrir essa porta leva incontestavelmente � falta de equidade e toca uma quest�o estrutural. “N�o adianta falar que todos t�m a mesma oportunidade, porque n�o t�m. Em que momento os respons�veis pela educa��o da cidade lembraram que temos crian�as e adolescentes em situa��o de abuso e viol�ncia, j� que escola n�o � servi�o essencial?”.  
 

Palavra de specialista
 
Davi Castelo Branco Avelar
Psic�logo 
 
Consequ�ncias em um futuro pr�ximo

 
“A pandemia j� tem trazido consequ�ncias graves, como depress�o, humor irrit�vel, tentativas de suic�dio, agressividade, retraimento social, defasagem pedag�gica. Al�m disso, as desigualdades social e educacional em compara��o com grupos infantis n�o pertencentes �s situa��es de risco est�o cada vez maiores, com desvantagem gritante para as minorias. Dois grupos se destacam entre essas minorias: as crian�as v�timas de viol�ncia e abusos e as com defici�ncia. Para esses grupos, al�m de todos esses graves problemas que temos atendido na cl�nica, encontraremos, em futuro bem pr�ximo, adolescentes que ser�o discriminados pela personalidade moldada pelo isolamento e esquecidos pela mem�ria social desta �poca pand�mica. Temos o terr�vel costume de culpabilizar somente o indiv�duo e nos desobrigamos da responsabilidade de cuidar da sa�de social, a que cada um de n�s pertence.”  


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