O que antes era uma lagoa hoje � terra esturricada em Montes Claros: um dos efeitos do aquecimento global no Norte do estado
(foto: Fotos: Luiz Ribeiro/EM/D.A Press)
Muitos peixes, po�os e caudaloso o ano inteiro. Nos relatos do pequeno produtor Nilson Marques das Neves, de 65 anos, o Rio das Pedras fazia jus ao nome da comunidade de �gua Boa, onde mora, na zona rural do munic�pio norte-mineiro de Glaucil�ndia. O leito, que literalmente corta o seu quintal, no fundo da casa, hoje est� bem diferente da mem�ria fotogr�fica dele.
Da abund�ncia de cerca de 20 anos atr�s, s� restaram as pedras, com o leito seco, parecendo uma estrada. A �gua de outrora virou "coisa rara" e s� corre no rio na ef�mera e curta esta��o chuvosa do Norte de Minas. “Com o passar dos anos, a �gua foi diminuindo at� acabar de vez”, descreve Nilson.
O cen�rio desolador enfrentado pelo pequeno produtor se repete em outras dezenas de munic�pios da regi�o, onde os efeitos dr�sticos das mudan�as clim�ticas s�o cada vez mais vis�veis e permanentes, com a eleva��o da temperatura, o desaparecimento de nascentes, a diminui��o e o secamento de centenas de rios e c�rregos, intemp�ries que deterioram mais ainda a qualidade de vida na regi�o historicamente castigada pelas estiagens prolongadas. O drama que repete atualmente – 89 munic�pios norte-mineiros est�o em situa��o de emerg�ncia por causa da seca, segundo a Associa��o dos Munic�pios da �rea Mineira da Sudene (Amams).
De acordo com a Funda��o Estadual do Meio Ambiente (FEAM), dos 33 munic�pios mineiros mais cr�ticos na chamada "vulnerabilidade clim�tica", 13 est�o na regi�o Norte e um deles � Glaucil�ndia.
A dura realidade enfrentada pelo “seo” Nilson e por milhares de pequenos produtores � confirmada pelo estudo “Vulnerabilidade da Mesorregi�o Norte de Minas face �s mudan�as clim�ticas”, publicado pela PUC Minas e realizado por um grupo constitu�do pela ge�grafa Let�cia Freitas Oliveira e pelos meteorologistas Ruibran dos Reis (do Instituto de Meteorologista Climatempo) e Tom�s Calheiros, portugu�s vinculado � Universidade de Lisboa, parceira da PUC Minas na elabora��o da pesquisa.
O levantamento analisa as mudan�as clim�ticas projetadas a m�dio e longo prazos para a regi�o, por meio dos par�metros de temperatura m�dia e precipita��o, a partir de modelos regionais do IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudan�as Clim�ticas) da Organiza��o das Na��es Unidas (ONU), no per�odo de 2015 a 2017. “As mudan�as clim�ticas j� s�o realidade e seus efeitos cada vez mais catastr�ficos”, conclui o estudo.
“Os efeitos das mudan�as clim�ticas j� s�o realidade e se mostram cada vez mais frequentes e severos. No Norte de Minas s�o observados extremos clim�ticos como ondas de calor, secas ainda mais intensas e prolongadas e chuvas cada vez mais irregulares”, afirma a ge�grafa Let�cia Freitas Oliveira, que mergulhou no tema ao concluir o curso de mestrado na PUC Minas. “O norte do estado � ao mesmo tempo fr�gil e vulner�vel �s varia��es do clima, apresenta caracter�sticas semi�ridas e limitados recursos para se adaptar ao clima futuro”, assinala.
A especialista afirma que as mudan�as clim�ticas, com o aumento da temperatura e da aridez, afetam diretamente a disponibilidade de �gua e a qualidade de vida das popula��es. Como o clima mais quente e seco, observa, as pessoas tendem a enfrentar dificuldades no acesso � �gua para irriga��o, atividades agropecu�rias, abastecimento e dessedenta��o.
Deslocamentos
“As consequ�ncias podem afetar a seguran�a alimentar, a biodiversidade e a sa�de humana. As restri��es de ocupa��o impostas pelo clima podem impulsionar disputas pela �gua e deslocamentos populacionais para �reas onde se tenha maior disponibilidade h�drica e/ou menor depend�ncia das atividades agr�rias, por exemplo”, afirma Let�cia Oliveira.
Os estudos projetam a evolu��o das vari�veis clim�ticas com base em cen�rios otimistas e pessimistas de emiss�es de GEE (gases de efeito-estufa). “A m�dio prazo (2041-2070) e longo prazo (2071-2100), estimam-se cen�rios mais quentes, secos e intensifica��o da irregularidade das chuvas.”
Um dos projetos � o "C�rculo de Bananeira", sistema de reuso da �gua para umedecer o terreno e fazer o cultivo da banana (foto: Cleisson Carpegiane/Divulga��o)
Economia impactada
O estudo da PUC Minas e da Universidade de Lisboa tamb�m aponta os preju�zos das mudan�as clim�ticas para a economia. “Os impactos negativos nos setores agropecu�rio e industrial afetam diretamente a economia da mesorregi�o e, principalmente, das popula��es menos desenvolvidas. O fato que agrava a situa��o � o perfil socioecon�mico limitado da maioria dos munic�pios do Norte de Minas. S�o popula��es com poucas condi��es de investir em medidas de mitiga��o e adapta��o ao clima”, diz o levantamento.
A ge�grafa Let�cia Oliveira ressalta que os efeitos clim�ticos v�o atingir diretamente a produ��o agr�cola e a gera��o de energia em �reas vulner�veis como o Norte de Minas.
“As altera��es no clima da regi�o podem reduzir as �reas com aptid�o agr�cola, os ambientes favor�veis � cria��o de animais e os reservat�rios. Os efeitos s�o de queda da produtividade agropecu�ria, limita��es na irriga��o, comprometimento da capacidade das usinas hidrel�tricas, entre outros”, avalia.
A especialista chama aten��o para os investimentos que devem ser feitos pelo Poder P�blico para amenizar os efeitos das mudan�as clim�ticas na economia. “As medidas devem envolver preserva��o e prote��o das �reas verdes, redu��o do desmatamento, diversifica��o das matrizes energ�ticas, considerando que o clima do norte do estado favorece o uso de energias renov�veis como e�lica e solar.”
A ge�grafa ressalta que os povos e comunidades tradicionais do Norte de Minas devem ser vistos como estrat�gicos no enfrentamento da situa��o, pois convivem em estreita rela��o com os recursos naturais e det�m conhecimentos e pr�ticas agr�colas que respeitam os limites da natureza.
O produtor Nilson das Neves se apega � f� e diz acreditar que as mudan�as clim�ticas, com o secamento dos rios e “o fim das �guas”, s�o consequ�ncias da pr�pria a��o do homem. “O mundo est� doente porque o homem acha que o dinheiro dele � que vale mais”, afirma.
Nilson guarda na mem�ria um fato ligado � religiosidade e aos costumes da regi�o que prova que o Rio das Pedras, at� 20 anos atr�s, realmente corria o ano inteiro: “Na festa da fogueira de s�o-jo�o, em junho, o pessoal tomava banho no rio com a cren�a de que se fizesse n�o iria envelhecer”.
O agricultor acredita que ser� poss�vel o Rio das Pedras e outros cursos d’�gua voltarem a correr cheios como no passado. “A primeira coisa que as pessoas t�m que fazer � respeitar a natureza.”
O produtor Nilson Marques das Neves, de 65 anos, dentro do que j� foi o Rio das Pedras, na comunidade de �gua Boa
(foto: Cleisson Carpegiane/Divulga��o)
A��es tentam reparar preju�zos
A pequena Glaucil�ndia, de 3,2 mil habitantes, vive um paradoxo: est� entre os 13 munic�pios do Norte de Minas inclu�dos na lista das 33 cidades em grau cr�tico de vulnerabilidade clim�tica. Ao mesmo tempo, destaca-se pelas a��es conservacionistas, que asseguraram ao munic�pio o recebimento de v�rias premia��es estaduais e nacionais.
De acordo com o �ltimo IPCC (Painel Intergovernamental sobre Mudan�as Clim�ticas da ONU), de 9 de agosto, a temperatura m�dia anual de Glaucil�ndia � de 22,2ºC e tem tend�ncia para aumentar 0,8ºC, podendo chegar � m�dia de 23ºC em 2100.
A previs�o � que, em uma situa��o mais dram�tica, o munic�pio pode ter aumento de 3,6ºC, com a m�dia anual podendo alcan�ar 25,8ºC. Outros munic�pios vizinhos vivem situa��o semelhante, por terem o mesmo clima. Um deles � Montes Claros, cidade-polo da regi�o, distante 30 quil�metros de Glaucil�ndia.
Na �ltima quarta-feira (17/8), sob o sol forte, a reportagem do Estado de Minas percorreu a zona rural de Glaucil�ndia, deparando-se com sequid�o e a escassez h�drica por onde passou. Como prova que a regi�o j� sofre os duros efeitos das mudan�as clim�ticas, o Rio Verde Grande, um dos principais afluentes da margem direita do Rio S�o Francisco, est� vazio em praticamente sua extens�o que corta o munic�pio – apenas alguns po�os ainda resistentes em pontos isolados do leito seco e assoreado. Em quadro semelhante ao Rio das Pedras (que faz parte da bacia do Verde Grande), todos os c�rregos do munic�pio est�o esturricados: Cai�ara, Tabocal, Gameleiras, “Casa de Curral”, Teixeiras e Barro Vermelho.
Consequ�ncias
O prefeito de Glaucil�ndia, Herivelton Alves Luiz (PSD), afirma que os efeitos das altera��es clim�ticas s�o uma realidade no munic�pio, afetando os pequenos produtores. “Os nossos rios que eram perenes, hoje s�o todos intermitentes. Isso � um reflexo das mudan�as clim�ticas, cujas consequ�ncias s�o catastr�ficas para o homem do campo”, diz.
Herivelton relata que praticamente todos os pequenos produtores de Glaucil�ndia lidam com a agricultura de subsist�ncia. Com os danos provocados pela escassez dos recursos h�dricos, ocorreu uma invers�o: fam�lias que antes produziam e vendiam alimentos, hoje, precisam ser socorridas com a doa��o de cestas b�sicas por parte da municipalidade, que tamb�m se viu obrigada a abrir po�os tubulares e pagar as despesas de manuten��o deles para garantir �gua para as comunidades rurais.
Al�m da ajuda �s fam�lias, a Prefeitura de Glaucil�ndia combate os efeitos das mudan�as clim�ticas com outra estrat�gia: o investimento em projetos de conserva��o ambiental, que j� garantiram v�rias premia��es ao munic�pio. Entre as a��es est�o o cercamento de nascentes e a constru��o de barraginhas de capta��o de �gua da chuva e a distribui��o de mudas para recomposi��o de matas ciliares.
Uma das iniciativas ambientais premiadas de Glaucil�ndia � o Projeto Reciclar, “Reciclar: Menos Lixo, Mais Seguran�a Alimentar", desenvolvido em parceria com a Empresa de Assist�ncia T�cnica e Extens�o Rural de Minas Gerais (Emater-MG). O projeto estimula os moradores rurais a coletar e juntar res�duos recicl�veis e trocar por mudas frut�feras certificadas, sementes de hortali�as e pintinhos.
Outra a��o de destaque � o projeto “C�rculo de Bananeira”, que cuida do reuso da �gua. Pelo sistema, o efluente de esgoto de pia � jogado em um buraco no ch�o, onde ocorre a decanta��o natural, umedecendo o terreno para cultivo da banana.
Morador da comunidade de Curral Queimado, Gilmar de Andrade � um dos pequenos agricultores do munic�pio de Glaucil�ndia beneficiados com a t�cnica do reuso da �gua para manter as planta��es no seu quintal. Com tristeza, ele conta que o c�rrego do fundo de sua casa secou h� anos, assim como os minadouros da regi�o. “A �gua s� vai voltar se plantarem �rvores nas cabeceiras dos rios e c�rregos.”
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