
Uma diarista de 34 anos est� h� pouco mais de cem dias presa em uma penitenci�ria de Minas Gerais, sob acusa��o de ter furtado �gua. Ap�s duas negativas de inst�ncias inferiores, um pedido de habeas corpus chegou ao Supremo Tribunal Federal (STF) na semana passada.
Maria (nome fict�cio*) foi presa na frente do filho de 5 anos, em julho, em uma casa de uma cidade no interior de Minas. Segundo a pol�cia, ela e o marido violaram o lacre da instala��o de �gua do local onde a fam�lia vivia de favor.
A defensora Alessa Veiga soube do caso em outubro ao visitar a ala feminina de um pres�dio de Minas. "Ela me entregou um bilhete, dizendo que estava presa h� tr�s meses por furto de �gua e que seu filho tinha ficado com a irm� mais nova, que � adolescente e vive em outra cidade. A Justi�a prendeu o pai e a m�e e n�o se preocupou com que aconteceria com o filho", conta.
Para a defensora p�blica, que entrou com um pedido de habeas corpus no STF, o caso de Maria se enquadra no princ�pio de insignific�ncia (quando o valor do objeto furtado � t�o irris�rio que n�o causa preju�zos � v�tima, como no furto de comida, �gua, sucata e produtos de higiene pessoal)."� um absurdo uma m�e ficar cem dias presa por furto de �gua, um crime n�o violento. Ela me disse que queria pagar a conta, mas n�o tinha dinheiro. � uma fam�lia muito pobre, usava a �gua para cozinhar para o filho, para beber, tomar banho... eles viviam de favor, em uma casa min�scula. Ser� que a pris�o era a melhor solu��o para esse caso?", diz a defensora.
J� o Tribunal de Justi�a de Minas Gerais e o Tribunal Regional Federal da 1ª Regi�o (TRF-1), em Bras�lia, consideraram que Maria deve ser mantida presa por ser reincidente, por supostamente ter desacatado o policial no momento da pris�o pelo furto de �gua, "cuspindo em seu rosto", e porque n�o conseguiu provar ser a m�e da crian�a que carregava durante o epis�dio (leia mais abaixo).
"Os fatos j� apurados e as circunst�ncias dos crimes demonstram tanto a inaplicabilidade das medidas cautelares diversas da pris�o, quanto o risco concreto � ordem p�blica, caso a autuada seja de pronto colocada em liberdade", escreveu o desembargador Olindo Menezes, do TRF-1.
'Rea��o � pris�o'
Segundo o Boletim de Ocorr�ncia, por um m�s a fam�lia usou a �gua disponibilizada pela Companhia de Saneamento de Minas Gerais (Copasa) sem pagar pelo consumo. Questionada pela BBC News Brasil, a Copasa n�o informou o total do preju�zo sofrido pela empresa nem qual seria o valor da conta que a fam�lia teria de pagar pelo m�s que utilizou o servi�o. O Boletim de Ocorr�ncia tamb�m n�o informa esses dados.
Fotos da resid�ncia e da "gambiarra", inclu�das no processo, mostram que a �gua era retirada de um cano e redistribu�da pela casa. Segundo o IBGE, em m�dia, cada membro de uma fam�lia brasileira consome 116 litros de �gua por dia.
Em junho, dois agentes da Copasa visitaram a casa e constataram que a fam�lia tinha violado o hidr�metro da resid�ncia. Os funcion�rios lacraram a instala��o novamente, interrompendo o fornecimento de �gua. Um m�s depois, os fiscais retornaram e, segundo eles, o lacre havia sido rompido de novo. Eles contam que chamaram a Pol�cia Militar depois de terem sido xingados por Jo�o (nome fict�cio), servente de pedreiro e companheiro de Maria.

Em depoimento, Maria disse que voltava com o filho para casa quando encontrou uma viatura no local. Ela tentou fugir com a crian�a no colo quando soube que seria levada � delegacia por furto de �gua.
No BO, o funcion�rio da Copasa relatou a rea��o da diarista: "Exaltou-se, esbo�ou agressividade, proferiu palavras de baixo cal�o: 'seus policiais de merda, seus vagabundos, v�o procurar bandido'". Ela teria tentado agredir e cuspir em um policial — acabou algemada e "colocada no xadrez" (compartimento traseiro da viatura). O filho assistiu � cena, ao lado.
Depois, na delegacia, Maria negou ter cuspido no policial ou tentado agredi-lo. Tamb�m afirmou que foi seu companheiro, Jo�o, quem rompeu o lacre no cano de �gua, porque a fam�lia n�o tinha como pagar a conta no momento. "Usava a �gua para cozinhar para meu filho", disse.
"Foi uma rea��o espont�nea e justific�vel de uma m�e muito pobre, que ficou desesperada ao ser presa por furto de �gua. Presa na frente do filho", diz a defensora Alessa Veiga.
A diarista contou ter parado de estudar na quarta s�rie do ensino fundamental. Ela diz ganhar entre R$ 50 e R$ 70 quando faz uma faxina.
O BO relata a vers�o dela: "Esclarece que s� agiu assim pois o propriet�rio da casa, que tinha (anteriormente) deixado eles ficarem no im�vel, mandou cortar a �gua com eles no local. Al�m disso, esclarece que n�o poderiam ficar sem �gua, visto que t�m uma crian�a de cinco anos".
O servente de pedreiro Jo�o tamb�m foi preso em flagrante.
Em nota, a Copasa afirmou que a pris�o do casal "n�o ocorreu por furto de �gua, mas sim devido ao comportamento agressivo dos moradores contra os empregados da companhia."
"A companhia repudia qualquer ato de viol�ncia e orienta seus empregados que acionem a PM se ocorrer algum tipo de agress�o, verbal ou f�sica, durante realiza��o de seus servi�os", diz a Copasa.
Princ�pio da insignific�ncia
O Minist�rio P�blico de Minas Gerais pediu o relaxamento da pris�o de Jo�o, alegando que o crime n�o era violento. Ele foi solto logo depois.
J� para a diarista o MP solicitou "pris�o preventiva", citando como agravantes o suposto desacato aos policiais, a "resist�ncia � pris�o" e reincid�ncia.

A defensora p�blica entrou com um pedido de habeas corpus no Tribunal de Justi�a de Minas Gerais. Um dos argumentos � que o caso se encaixa no princ�pio de insignific�ncia. A Justi�a, por�m, negou a soltura da diarista.
Desde 2004 existe um entendimento do STF que orienta ju�zes a desconsiderar processos em que o valor do furto � t�o pequeno que n�o causa preju�zo � v�tima do crime. Comida, �gua, sucata, produtos de higiene pessoal e �nfimas quantias em dinheiro, por exemplo, s�o considerados insignificantes. No entanto, o entendimento n�o � obrigat�rio e nem sempre � seguido pelos ju�zes.
Defensores ouvidos pela BBC News Brasil dizem que, nos �ltimos meses, tem aumentado o n�mero de casos de furto fam�lico e de quantias �nfimas que chegam �s inst�ncias superiores, como STJ e STF. O volume seria um reflexo do aumento da fome no pa�s e do desemprego.
Em 2020, cerca de 19 milh�es de pessoas passavam fome no Brasil, segundo o Inqu�rito Nacional sobre Inseguran�a Alimentar no Contexto da Pandemia da covid-19. Em 2018, eram 10,3 milh�es. Ou seja, em dois anos houve uma alta de 84,4% (ou quase 9 milh�es de pessoas a mais).
Em junho, o ministro Sebasti�o Reis J�nior, do STJ, reclamou publicamente que inst�ncias inferiores n�o est�o seguindo entendimentos jur�dicos j� pacificados pelo STF e pelo STJ, aumentando exponencialmente o volume de processos que chegam aos tribunais superiores.
A cr�tica foi feita durante o julgamento do habeas corpus de um homem acusado de furtar dois steaks de frango que valiam R$ 4.
"� um absurdo n�s termos de julgar a insignific�ncia de um furto de R$ 4. N�o s�o s� o Minist�rio P�blico e a advocacia que insistem em teses superadas, mas tamb�m os tribunais, que se recusam a aplicar nossos entendimentos. N�o tem l�gica isso. � uma brincadeira dizer que a pol�tica que estamos adotando no pa�s e o comportamento de todos n�s, os chamados atores do processo, est�o diminuindo a criminalidade", disse.
Em casos de insignific�ncia, o juiz pode simplesmente arquivar o processo e n�o determinar nenhuma medida de puni��o. Ou ele pode impor medidas mais brandas a serem cumpridas em liberdade, como servi�os comunit�rios, reeduca��o profissional ou tratamento e acompanhamento no SUS, caso a pessoa tenha problemas com drogas.
O ministro mostrou um levantamento com o n�mero de a��es criminais distribu�das ao STJ nos �ltimos anos.
Segundo ele, em 2017 foram 84.256 processos e, no ano passado, 124.276 — alta de 47%. Para este ano, ele projeta que ser�o 131.997 casos. O STJ tem duas turmas de cinco ministros para a �rea criminal — ou seja, cada um deles recebeu 12,4 mil a��es s� em 2020, em m�dia.
Certid�o de nascimento

No caso de Maria, o pedido de habeas corpus tamb�m mencionava o fato da diarista ter um filho de cinco anos. Em 2018, o STF decidiu que ju�zes podem substituir a pris�o preventiva por domiciliar em processos envolvendo m�es de crian�as de at� 12 anos.
Por�m, tanto o Tribunal de Justi�a de Minas Gerais quanto o TRF-1 consideraram que n�o ficou provado que Maria � m�e de uma crian�a, pois a certid�o de nascimento do filho n�o estava anexada ao processo. "N�o h� nos autos comprova��o id�nea de que a acusada � m�e de uma crian�a menor de cinco anos, a n�o ser a palavra desta proferida", escreveu o desembargador Orlindo Menezes, do TRF-1, ao negar o habeas corpus.
"Eles n�o consideraram que no pr�prio BO h� o nome e os dados da crian�a, e os relatos das testemunhas e dos policiais citam que ela estava com o filho. Interessante notar que a Justi�a s� considerou o depoimento dos policiais quando eles disseram que ela os desacatou, mas n�o agiu da mesma forma quando eles mencionam o filho de cinco anos", diz Alessa.
No novo pedido de habeas corpus, dessa vez ao STF, a defensora incluiu a certid�o de nascimento da crian�a, documento ao qual ela s� conseguiu ter acesso neste m�s.
Reincid�ncia
Outro argumento da Justi�a para manter a pris�o foi o fato de Maria ser reincidente. "E a de se frisar, ainda, a periculosidade concreta da flagranteada [...] Tal reitera��o il�cita � mais do que suficiente para evidenciar o risco � ordem p�blica. Logo, a pris�o preventiva na esp�cie tem a essencial fun��o de resguardar a ordem p�blica e a conveni�ncia da regular instru��o processual", escreveu o desembargador Orlindo Menezes, do TRF-1.
Maria j� foi condenada por roubo dez anos atr�s, e cumpriu integralmente sua pena de cinco anos de pris�o. Ou seja, embora n�o seja prim�ria, n�o devia mais nada � Justi�a.
Segundo defensores, a reincid�ncia do r�u � o principal argumento usado pelos magistrados para n�o aplicar o princ�pio da insignific�ncia. Ou seja, para parte do Judici�rio que acredita em endurecimento das penas como solu��o para o problema da criminalidade, a reincid�ncia agrava a condi��o do r�u e, por isso, a cust�dia normalmente � mantida.
No entanto, defensores p�blicos e alguns ministros do STJ e do STF, como Rosa Weber e Gilmar Mendes, costumam defender que a reincid�ncia do r�u n�o muda o fato de que o valor do furto � insignificante. Nos �ltimos meses, eles e tamb�m outros ministros t�m usado esse argumento para soltar acusados de furtos de comida, al�m de pedir o arquivamento dos processos.
O pedido de habeas corpus de Maria ser� analisado pelo ministro Alexandre de Moraes. Ainda n�o h� data para que isso aconte�a.
*Os nomes das pessoas envolvidas nesta reportagem, al�m da localiza��o dos acontecimentos, foram trocados a pedido da diarista.
Sabia que a BBC est� tamb�m no Telegram? Inscreva-se no canal.
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!