Est� na Constitui��o: alimenta��o � um direito social do brasileiro. Essa previs�o, que pode parecer �bvia � primeira vista, foi inclu�da pelo Congresso Nacional em 2010.
E de �bvia n�o tem nada. De l� para c�, ao mesmo tempo em que exporta��es do agroneg�cio brasileiro ganharam for�a, o direito � alimenta��o tem sido realidade para menos brasileiros.
A partir de 2020, o aumento da fome no Brasil foi impactado pela pandemia, como em outros pa�ses. Mas n�o � s� o efeito da covid que explica a piora no n�vel de seguran�a alimentar dos brasileiros, que j� vinha piorando antes do coronav�rus.
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O alastramento da fome no Brasil � reflexo tamb�m do fim ou esvaziamento de programas voltados para estimular a agricultura familiar e combater a fome, al�m de defasagem na cobertura e nos valores do Bolsa Fam�lia, segundo especialistas em seguran�a alimentar, pol�ticas p�blicas e desigualdade ouvidos pela BBC News Brasil.
S�o 19 milh�es de brasileiros em situa��o de fome no Brasil, segundo dados de 2020 da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Seguran�a Alimentar e Nutricional (Penssan). A compara��o com 2018 (10,3 milh�es) revela que s�o 9 milh�es de pessoas a mais nessa condi��o.
Olhando dados mais antigos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estat�stica (IBGE), � poss�vel ver que em 2013 o Brasil teve o melhor n�vel de seguran�a alimentar da s�rie hist�rica (Pnad), com mais de 77% dos domic�lios nessa condi��o.
Em 2014, o Brasil inclusive deixou o chamado Mapa da Fome da ONU.
Cerca de quatro anos depois, no entanto, a Pesquisa de Or�amento Familiar (2017/2018) do IBGE mostrou que a situa��o de seguran�a alimentar era vivenciada por apenas 63,3% dos domic�lios pesquisados.
Nesse intervalo, houve aumento na quantidade de domic�lios em todos os n�veis de inseguran�a alimentar leve (preocupa��o com quantidade e qualidade dos alimentos dispon�veis), moderada (restri��o quantitativa de alimento) e grave (identificada como fome).
"A fome � consequ�ncia de uma s�rie de erros de pol�ticas p�blicas e de destrui��o de pol�ticas p�blicas", diz Kiko Afonso, diretor executivo da ONG A��o da Cidadania, fundada por Betinho.
A soci�loga Let�cia Bartholo afirma que "a desestrutura��o das pol�ticas p�blicas voltadas aos mais vulner�veis foi agravada com a pandemia, mas ela ocorre desde antes".
Antes e al�m da pandemia, quais fatores levaram o Brasil, segundo maior exportador de alimentos do mundo, a ver crescer a quantidade de fam�lias em situa��o de fome?
Transfer�ncia de renda defasada

Parte da explica��o est� na cobertura e nos valores do maior programa de transfer�ncia de renda, o Bolsa Fam�lia, segundo a soci�loga Let�cia Bartholo, que estuda pol�ticas p�blicas de combate � pobreza e � desigualdade e foi secret�ria nacional adjunta de renda e cidadania (2012-2016).
O primeiro problema, diz ela, � a defasagem da chamada linha de pobreza (ou seja, o corte que define quais fam�lias t�m direito ao benef�cio). Hoje t�m direito ao benef�cio fam�lias com renda familiar per capita de at� R$ 178.
No come�o do programa, esse valor era de R$ 100. Se estivesse atualizado, segundo os c�lculos de Bartholo, o valor deveria estar hoje em torno de R$ 250.
"Essa desatualiza��o � preocupante porque cria duas filas no Bolsa Fam�lia: j� temos um problema da fila por falta de or�amento, das fam�lias que cumprem os crit�rios e n�o s�o atendidas, e a� tem uma outra fila de pessoas que s�o pobres, passam fome, mas n�o s�o consideradas pobres administrativamente", explica.
E o aux�lio emergencial? Bartholo diz que parte dessas fam�lias contam com o aux�lio criado durante a pandemia, mas lembra que 400 mil fam�lias que est�o na fila de espera do Bolsa Fam�lia tamb�m n�o recebem o aux�lio emergencial, como mostrou reportagem da Folha de S.Paulo.
"A desatualiza��o da linha de pobreza do programa cria um achatamento fict�cio da pobreza. O n�mero de pobres, na realidade, � muito maior do que o n�mero de pobres considerados do ponto de vista administrativo", diz Bartholo.
Outro ponto que vem sendo discutido em Bras�lia � a falta de reajuste nos valores do benef�cio, que varia em fun��o da renda, do n�mero de pessoas na fam�lia e idade delas.
O presidente Jair Bolsonaro disse que pretende ampliar de R$ 190 para R$ 250 o valor m�dio pago a benefici�rios do Bolsa Fam�lia. Outros valores, inclusive mais altos, j� foram levantados, mas o governo ainda n�o apresentou uma proposta.
O Minist�rio da Cidadania disse � reportagem que trabalha na reformula��o do programa "para ampliar o n�mero de fam�lias contempladas, al�m de reajustar os valores dos benef�cios pagos atualmente, com maior efici�ncia no gasto do dinheiro p�blico".
Disse, ainda, que o programa "tem alcan�ado os mais vulner�veis" e que o n�mero de fam�lias atendidas segue acima de 14 milh�es. De janeiro a abril deste ano, segundo o governo, mais de 600 mil novas fam�lias ingressaram no programa.
E o aux�lio emergencial?
O benef�cio criado durante a pandemia tem sido reconhecido como importante ferramenta para combater fome e pobreza (ainda que insuficiente e apesar do per�odo, no in�cio de 2021, em que n�o foi pago).
No entanto, Bartholo lembra que ele ter� um fim e que � necess�rio, finalmente, desenhar esta transi��o.
"O aux�lio vai findar. A gente n�o pode mais empurrar o problema com a barriga. Desde o ano passado estamos pensando: e quando o aux�lio acabar? Vamos continuar tendo fila no Bolsa Fam�lia? Vamos continuar com linhas de pobreza absolutamente defasadas? O aux�lio � emergencial, portanto n�o corrige falhas estruturais das pol�ticas p�blicas", diz Bartholo.
Fim ou enfraquecimento de pol�ticas de combate � fome

Assim que assumiu o Pal�cio do Planalto, o presidente Jair Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Seguran�a Alimentar e Nutricional (Consea), que tinha atribui��o de propor ao governo federal diretrizes e prioridades da pol�tica de seguran�a alimentar e nutricional.
O �rg�o de assessoramento imediato ao Presidente da Rep�blica havia sido criado no governo do PT.
Para Kiko Afonso, da ONG A��o da Cidadania, essa foi a "carta de entrada do governo".
"J� entra dizendo o seguinte: n�o queremos participa��o da sociedade civil e especialistas de fora do governo na pol�tica de seguran�a alimentar. Ent�o, quando voc� extingue o Consea, extingue a ponte que havia com a sociedade civil n�o s� no sentido de dar opini�es, mas de monitorar o que o governo estava fazendo. Virou uma caixa preta."
A professora do Departamento de Nutri��o da Universidade de Bras�lia (UnB) Elisabetta Recine, que foi a �ltima presidente do Consea, diz que esse modelo � importante como uma fonte direta de informa��o para o governo e de "contato com a realidade" para ajustes de planejamento e de prioridade.
"A extin��o do Consea tem um um significado muito objetivo, que � o desmantelamento da proposta do Sistema Nacional de Seguran�a Alimentar e Nutricional, mas ela tem um valor simb�lico tamb�m."
Procurado pela reportagem, o Minist�rio da Cidadania disse que as compet�ncias do Consea foram distribu�das entre diversas �reas do governo e que "com essa forma de organiza��o administrativa, as a��es governamentais tornam-se mais c�leres e eficientes".
Para Recine, a justificativa n�o faz sentido. "� um argumento absolutamente falso, � s� voc� olhar a lentid�o com o que o governo respondeu a situa��o da pandemia, em todos os aspectos", opina.

Um estudo de pesquisadores vinculados a universidades na Alemanha e no Brasil, que mostrou que a maioria (59%) dos domic�lios entrevistados no fim de 2020 estavam em situa��o de inseguran�a alimentar durante a pandemia, tamb�m citou o fim do Consea como um dos "retrocessos institucionais e or�ament�rios na agenda da seguran�a alimentar e nutricional".
O estudo destaca que o Brasil passa por uma combina��o de crises pol�tica, econ�mica, de seguridade social e sanit�ria.
"A crise pol�tica tamb�m afetou a agenda da alimenta��o por meio do enfraquecimento da estrutura institucional e de importantes pol�ticas e programas de promo��o da produ��o da agricultura familiar", afirma.
Os pesquisadores destacam o fim do Minist�rio do Desenvolvimento Agr�rio (2016) e o baixo investimento no Programa de Aquisi��o de Alimentos (PAA) e no Programa Nacional de Alimenta��o Escolar (PNAE).
"O enfraquecimento destas pol�ticas, reconhecidas mundialmente como a��es exitosas que contribuem para a meta de erradica��o da fome, sendo importantes impulsionadoras da sa�da do Brasil do Mapa da Fome da FAO, em 2014, dificulta que os indiv�duos mais pobres tenham acesso a alimentos."
Para Recine, a mudan�a de orienta��o come�ou durante o governo do ex-presidente Michel Temer.
"As pol�ticas p�blicas de seguran�a alimentar come�aram a sofrer mudan�as muito profundas. Logo que o Temer assumiu a presid�ncia, ele j� teve atitudes muito importantes em rela��o a isso, que mostravam j� o caminho do retrocesso. Ele, por exemplo, extinguiu o Minist�rio da do Desenvolvimento Agr�rio, cortou radicalmente e, com isso, come�ou a desmantelar todas as pol�ticas de apoio � agricultura familiar", diz a professora da UnB.
Os gastos federais com pol�ticas de desenvolvimento agr�rio ca�ram 55% de 2013 (R$ 1,13 bilh�o) at� 2019 (R$ 510 milh�es), conforme aponta artigo sobre gasto federal com pol�ticas sociais elaborado pela pesquisadora do Ipea Fabiola Vieira.
Na mesma base de compara��o, tamb�m houve perda de recursos em pol�ticas nas �reas de cultura (-30,2%), educa��o (-11,1%), habita��o (-74,6%), saneamento (-53,2%), trabalho e renda (-6,1%) e urbanismo (-3,0%).
Aumentos s� foram verificados em pol�ticas de assist�ncia social (9,3%), previd�ncia (16,5%) e sa�de (16,5%), que envolvem muitas das chamadas despesas obrigat�rias.

Bartholo aponta que tamb�m "houve uma desestrutura��o de toda uma rede de pol�ticas p�blicas que se articulava em torno do Cadastro �nico para apoiar o desenvolvimento das fam�lias mais vulner�veis".
"O desenvolvimento dessa rede foi tomado, nos �ltimos anos, pela dimens�o do controle, de evitar fraudes. � claro que a dimens�o do controle � muito importante nas pol�ticas p�blicas, mas � uma delas. Quando o controle consome as demais dimens�es das pol�ticas p�blicas, elas v�o se enfraquecendo, perdendo capacidade de melhoria, inclusive."
A assessoria de imprensa do Minist�rio da Cidadania respondeu que o governo trabalha para aprimorar programas sociais como o Programa de Aquisi��o de Alimentos (PAA). "A reestrutura��o dos programas do Governo Federal visa, acima de tudo, ao fortalecimento do Sistema �nico de Assist�ncia Social (SUAS), com foco na emancipa��o do cidad�o", diz a nota.
A assessoria de imprensa da pasta disse ainda que "tem trabalhado sistematicamente para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de prote��o para a popula��o em situa��o de vulnerabilidade" e que "� compromisso desta gest�o ampliar o alcance das pol�ticas sociais e atingir, com maior efic�cia, a miss�o de superar a pobreza e minimizar os efeitos da desigualdade socioecon�mica".

'Solu��o para fome n�o � distribuir cesta b�sica'
Kiko Afonso, da A��o da Cidadania, diz que � preciso combater a ideia de que a solu��o para a fome est� na distribui��o de cestas b�sicas, que � uma a��o de emergencial.
"A gente n�o pode achar que a solu��o da fome � distribuir cesta b�sica, que a solu��o � pegar alimentos vencidos e distribuir pras pessoas ou pegar sobras de restaurantes ou de comidas de pessoas da classe m�dia para distribuir pra popula��o", diz.
"Isso � uma atua��o de emerg�ncia, mas a solu��o n�o � essa. O governo, ao longo dos �ltimos anos, criou parte desse problema que a gente est� hoje."
Depois de dez anos sem distribuir cestas b�sicas, a ONG identificou a necessidade de retomar essa distribui��o em 2017. Neste ano, arrecadou mais de R$ 146 milh�es e distribuiu alimentos em todos os estados e no DF.
"A gente n�o quer fazer isso, a gente quer que o governo assuma o seu papel e que a pol�tica p�blica volte a assumir o seu papel", diz Afonso.

Como uma das a��es de combate � fome, o Minist�rio da Cidadania citou, em resposta � BBC News Brasil, que estruturou a iniciativa Brasil Fraterno, "que incorporou todas as a��es sob a responsabilidade da pasta voltadas para aquisi��o e distribui��o de cestas de alimentos a quem mais precisa". Segundo a pasta, trata-se de uma rede de solidariedade, com participa��o de setores da iniciativa privada como o Sistema S e o agroneg�cio.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, fez uma declara��o, em junho, na qual comparou o prato dos europeus ("pratos relativamente pequenos") e dos brasileiros e falou em direcionar alimentos desperdi�ados a programas sociais.
Procurada depois da fala do ministro para responder �s cr�ticas feitas por especialistas em rela��o ao enfraquecimento de pol�ticas de combate � fome no Brasil, a assessoria de imprensa respondeu � BBC News Brasil que o Minist�rio da Economia n�o comentaria o assunto.
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