Homem mais velho de Inconfidentes contou sua hist�ria antes de morrer
Jos� Domiciano foi o 1� vacinado contra COVID na cidade e faleceu de causas naturais, aos 103 anos; ele chegou a se preparar para combater na 2� Guerra Mundial
Jos� Domiciano nasceu em 27 de novembro de 1918, em Bueno Brand�o (foto: Arquivo Pessoal)
Considerado o homem mais velho de Inconfidentes, no Sul de Minas, Jos� Domiciano Vicente morreu de causas naturais, aos 103 anos, no �ltimo dia 10 de fevereiro.
Jos� Domiciano nasceu em 27 de novembro de 1918, no bairro Boa Vista dos Vicentes, em Bueno Brand�o. Atualmente, o agricultor morava no Bairro Pinhalzinho dos G�es, em Inconfidentes. “Parece que nem tenho esta idade”, brincava o centen�rio, especialmente quando era convidado a contar a hist�ria de sua vida, lembrou o neto, o jornalista Jos� Valmei Bueno.
Em setembro de 2021, Jos� Valmei teve a oportunidade de fazer uma entrevista com o av�, em que ele, com toda a lucidez, contou momentos marcantes da sua vida.
Jos� Domiciano acompanhou importantes fatos da hist�ria. Aos 25 anos, em 1943, foi chamado para integrar a For�a Expedicion�ria Brasileira (FEB), como integrante do 16º Regimento de Infantaria, de Natal, no Rio Grande do Norte. L�, deu in�cio � prepara��o para os combates da 2ª Guerra Mundial, especialmente para a batalha de Monte Castelo, na It�lia.
“Quando sa�mos de trem da Esta��o Ferrovi�ria de Ouro Fino, as m�es ficaram olhando os filhos partir, desesperadas”, contou o av� na entrevista ao neto.
Depois de passar um tempo em Juiz de Fora (MG), Jos� Domiciano e os companheiros combatentes embarcaram no navio cargueiro “Raul Soares”, no Rio de Janeiro, rumo a Natal. No meio das sacarias de arroz, de feij�o e de milho iam os soldados. O assoalho do navio servia de cama. “Para dormir, esticava a coberta no ch�o. Esta era nossa cama”, contou.
“Por 11 dias, o navio rasgou o mar, rumo ao Extremo Leste do Brasil. A embarca��o parava em algumas cidades na beira do mar. Em Salvador, descemos do navio, subimos o elevador Lacerda e fomos conhecer a cidade”, recordou, enfatizando a precariedade dos poucos momentos de lazer que viveram.
“Ficamos em casas muito sujas”, comentou. “Mas valeu a pena conhecer algumas das 310 igrejas hist�ricas da capital baiana”, comemorou, com mem�ria clara dos fatos ocorridos h� quase 78 anos.
Na rotina da viagem pela costa brasileira, os soldados passavam o dia dormindo. “N�o tinha o que fazer. A gente s� via �gua”, completou. Por essa informa��o, se interpreta o quanto improvisada foi a prepara��o da FEB para a batalha que se avizinhava. “A comida n�o era boa”, relatou dizendo o card�pio: carne seca, arroz, batata e feij�o sem ser 'catado'.
Dias antes do embargue para a guerra, quando j� estava no litoral do Rio Grande do Norte, foi liberado pelo Ex�rcito Brasileiro por ser “arrimo de fam�lia”.
Imagem de quando foi e voltou � p� ao Santu�rio Nacional de Aparecida-SP (Jos� Domiciano � o segundo da esquerda para a direita) (foto: Arquivo Pessoal)
Devo��o � Nossa Senhora
Como homem religioso, a libera��o do Ex�rcito foi interpretada por ele como um grande milagre de Nossa Senhora. “Foi ela que me livrou da guerra”, disse.
Viagens de navio e de trem marcaram o retorno dos destacamentos militares a Bueno Brand�o. Ao desembarcar na antiga esta��o ferrovi�ria de Ouro Fino, sua f� na Virgem Maria o fez ir at� a igreja de Nossa Senhora da Piedade, em Cris�lia, a p�.
“Sa� de Natal com a decis�o de ir primeiro visitar Nossa Senhora da Piedade, antes de voltar para a casa de meu pai”, disse Jos� Domiciano. Fez suas ora��es na igreja do distrito e retornou para pernoitar em Ouro Fino.
Quando amanheceu, era hora de dar a boa not�cia para os pais. Partiu, novamente a p�, em dire��o � casa do “Dinho” e da “Dinha”, como ele chamava seus pais. Era entardecer quando avistou a casinha da fam�lia.
“Bati na porta! Quando meu pai abriu, caiu no choro”, disse, emocionado. “� o Jos� quem est� voltando”, contou ter ouvido sua m�e dizer ao longe, antes de cobri-lo de abra�os.
Ida e volta a p� a Aparecida
Um outro momento importante de sua vida foi uma grande fa�anha de f�. Em gratid�o pelo retorno dos treinamentos para a guerra, ele decidiu ir e voltar a p� a Aparecida.
“Quando l� cheguei, contornei a Bas�lica Velha ajoelhado no ch�o em agradecimento por essa grande gra�a”, relatou com voz firme. Ele foi acompanhado por amigos e parentes. Os cavalos levaram as malas.“Eu via meus companheiros indo a cavalo. Cansado, dava vontade de montar. Mas me mantive fiel ao cumprimento de minha promessa. Fui e voltei a p�”, relembrou.
Uma paix�o
Um de seus maiores desejos, enquanto estava no Ex�rcito, era reencontrar a namorada, Isolina Veronez, moradora de um s�tio entre os bairros Pinhalzinho dos G�es e Cambuizinho.
Isolina era filha dos imigrantes italianos Angelo Veronez e Bernite Braj�o. Com a mulher de sua vida, ele se comunicava por meios de cartas. As express�es “contrariado por estar um pouquinho longe” e “de longe tamb�m se ama” podem ser lidas no papel envelhecido que ele guardava at� ent�o, em um antigo ba� de madeira.
Com ela se casou em 1945 e formou fam�lia. Isolina deixou de morar no antigo casar�o constru�do pelo pai e foi residir com o esposo no bairro Boa Vista dos Vicentes e, mais tarde, na Boa Vista dos Pedros.
L�, os dois viveram por cerca de 17 anos e, com o falecimento do senhor Angelo Veronez, o casal foi morar perto da “nona”, nas proximidades do antigo casar�o. At� a sua morte Jos� Domiciano viveu nesta casa, sob os p�s de uma colina, onde corre uma refrescante nascente d’�gua, sob a sombra de um exuberante bambuzeiro.
Jos� Domiciano tinha 103 anos e morreu de causas naturais (foto: Arquivo Pessoal)
Ele recebia o cuidado das filhas, filho e netos e nunca estava sozinho. A fam�lia organizou um sistema de revezamento para garantir companhia a ele. As filhas cozinhavam, limpavam a casa e davam medica��o. O filho e netos davam banho e cuidavam da higiene. “A gente pode cuidar, ent�o vamos cuidar”, comentou a filha mais velha, Terezinha Domiciano, na �poca da enrevista.
L�cido e zeloso pela ci�ncia dos fatos ao seu redor, Jos� Domiciano cultivava o senso de realidade e sabia se posicionar sobre os diferentes assuntos da sociedade e de sua vida pessoal. A rotina de ora��es, de conversas com a fam�lia e de busca de informa��es pela TV preenchia seu tempo, o mesmo tempo que lhe permitiu superar a barreira de um s�culo de hist�ria.
Prefeitura lamentou a perda
Em nota publicada nas redes sociais, a Prefeitura Municipal prestou homenagem a Jos� Domiciano e lamentou a perda.
“A prefeitura municipal de Inconfidentes presta homenagem � mem�ria do senhor Jos� Domiciano Vicente. Homem mais idoso do munic�pio, participou de importantes fatos da hist�ria, como a integra��o � For�a Expedicion�ria Brasileira (FEB), em prepara��o para a Segunda Guerra Mundial. Tendo sido dispensado da Batalha de Monte Carmelo, sua f� o levou a ir e voltar a p� at� a Bas�lica de Aparecida (SP). Na Par�quia de S�o Geraldo Magela, ele participou por mais de 40 anos da tradicional Irmandade do Sant�ssimo Sacramento. Jos� Domiciano deixa um legado de lucidez e de f�. � fam�lia e amigos, manifestamos nossa solidariedade”, escreveu a Prefeitura.
O idoso foi sepultado no dia 11, no cemit�rio Municipal de Inconfidentes.
(Iago Almeida / especial ao EM, com entrevista concedida por Jos� Domiciano a Jos� Valmei)