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Estado de Minas A BATALHA DA PSIQUIATRIA

Psiquiatria: pol�mica da hospitaliza��o divide at� usu�rios da sa�de mental

Polariza��o entre defensores da interna��o para crises graves e linha antimanicomial se repete entre pessoas em tratamento e suas fam�lias


02/03/2022 06:00 - atualizado 02/03/2022 07:19

Nicolai Lacerda
Nicolai Lacerda, que j� foi atendido pelo Galba Veloso, hoje comemora o trabalho fixo, o hobby de compor m�sicas e cultiva o sonho de ser juiz de futebol: reintegra��o social (foto: Leandro Couri/EM/D.A Press)

Usu�rio da rede de sa�de mental de Belo Horizonte, Nicolai Assis Lacerda, de 36 anos, tem o sonho de ser �rbitro de futebol. Na mesma condi��o dele, Laura Fusaro Camey, de 25, tem como principal objetivo garantir a autonomia das pessoas em sofrimento mental no Brasil a longo prazo. Em entrevista  sobre a pol�mica em torno da possibilidade de hospitaliza��o para quadros psiqui�tricos severos, tema de s�rie iniciada na edi��o de segundda-feira do Estado de Minas, eles concordam com a efici�ncia dos Centros de Aten��o � Sa�de Mental (Cersams) da capital, mas se op�em quando a quest�o � a efetividade dos hospitais psiqui�tricos. Ele � favor�vel, sobretudo em momentos em que passa por crises graves. Ela, como representante da Associa��o dos Usu�rios dos Servi�os de Sa�de Mental (Assussam), � completamente contra, comparando esses espa�os a manic�mios que n�o respeitam direitos de pacientes.

Quando a equipe do EM chegou � casa de Nicolai para entrevistar o usu�rio da rede de sa�de mental em BH, o rel�gio marcava 10h. O sol da quarta-feira parecia muito intenso para o hor�rio, com luminosidade marcante. O dia radiante soava como boas-novas na vida do morador do Santa Efig�nia (Leste de BH): pela primeira vez, Nicolai trabalha com carteira assinada, em uma rede de drogarias da capital mineira.

“Eu era totalmente dependente da minha m�e. Estou muito feliz, porque minha carteira s� havia sido assinada por tr�s meses como call center, por experi�ncia. � a primeira vez que tenho registro como trabalhador. Se n�o fosse o trabalho, voc�s n�o estariam aqui. Quem somos n�s sem o trabalho?”, disse Nicolai, enquanto observava as atividades dos jornalistas presentes ao local.

''Sou desesperadamente a favor de voltar a abrir o Galba VelLoso. Voc� tem que ver a quantidade de paciente como meu filho na rua. Fico doente com ele''

Telma Solange, sobre a necessidade de hospitaliza��o durante as crises que enfrenta com o filho



Al�m do sonho de apitar jogos de futebol, Nicolai tem rela��o �ntima com a m�sica. Quem entra em seu quarto n�o pode deixar de perceber uma pilha de pap�is. S�o letras de can��es compostas por ele enquanto esteve em uma penitenci�ria da Grande BH. “A minha rela��o com a m�sica � muito grande. Eu ficava compondo na pris�o e em casa agora, tamb�m. N�o tive ainda uma grande oportunidade para que algu�m gravasse essa letra e tentasse vender. Porque eu n�o sou muito bom pra cantar”, afirmou, enquanto ria de sua anunciada inaptid�o para os microfones.

Ainda assim, na presen�a dos rep�rteres de texto e imagem, Nicolai n�o teve vergonha e arriscou alguns versos. Ao terminar a can��o que comp�s, que trata sobre uma volta por cima a partir da f�, Nicolai emocionou a m�e, Concei��o Maria Lacerda, de 68. “Eu passei maus momentos com ele. V�-lo bem me d� uma alegria imensa”, disse, entre l�grimas, na sacada da casa onde vive com o filho com transtorno mental.

Nicolai Assis Lacerda recebe medica��o di�ria no Centro Mineiro de Toxicomania (CMT), administrado pela Funda��o Hospitalar de Minas Gerais (Fhemig) e pela prefeitura na Alameda Ezequiel Dias, no Centro da capital. Apesar de n�o ter reclama��es do servi�o, ele garante que o Galba Velloso, hospital psiqui�trico hoje fechado pela Fhemig, o ajudava durante as crises. “Era importante para me estabilizar. Infelizmente, quando estou em crise, eu perco o controle. N�o consigo conviver em sociedade e fa�o mal para as pessoas”, disse.

Engajamento


Tamb�m usu�ria da Rede de Aten��o Psicossocial, Laura Camey � estudante e engajada em movimentos populares. Como vice-presidente da Associa��o dos Usu�rios dos Servi�os de Sa�de Mental, ela acha que a maior efetividade da abordagem antimanicomial – em oposi��o aos hospitais psiqui�tricos – � “t�o clara como o dia” para quem depende desses servi�os para conviver em sociedade.

“Esse processo de trabalho do Cersam � o mesmo desde 2006. A prefeitura n�o fez nenhuma mudan�a. N�o faz sentido o CRM (Conselho Regional de Medicina, que quis interditar as unidades em BH, ao apontar fatores que considera irregulares) tirar da cartola que o servi�o n�o funciona. A gente n�o v� as alega��es do conselho como problemas”, aponta Laura.

Ela � usu�ria do Cersam desde 2017. E frequenta confer�ncias de sa�de em BH, nas quais, afirma, nunca houve queixas sobre os Cersams, com exce��o da necessidade de amplia��o dos recursos humanos. “Mas esse n�o � um problema exclusivo da sa�de mental, � do do SUS inteiro. Ent�o, vamos interditar o SUS inteiro? Essa interrup��o do servi�o ajudaria a quem?”, questiona.

Hospitais: solu��o ou parte do problema?

Hospital Galba Velloso
Hospital Galba Velloso teve leitos da psiquiatria fechados para dar suporte a outros atendimentos durante a pandemia (foto: Jair Amaral/EM/D.A Press)
Irm� de Nicolai Assis Lacerda, a escritora Carolina Lacerda, de 38 anos, afirma que seu irm�o foi marginalizado pela sociedade desde a adolesc�ncia, quando passou a ser dependente qu�mico. Ap�s tentar tratamento em cl�nicas privadas, a fam�lia entrou na Justi�a para garantir sua interna��o psiqui�trica no Hospital Galba Velloso, hoje fechado, na Regi�o Oeste de BH. L�, ele recebeu o diagn�stico de tr�s transtornos mentais.

“Come�amos essa luta para um tratamento adequado a partir daquele momento. Come�amos a v�-lo como doente, n�o como um criminoso, algu�m que dever�amos afastar. Pelo contr�rio, dever�amos acolher e tratar com dignidade, para que tivesse maior qualidade de vida”, diz Carolina.

''(Hospital) � um assunto em que meus irm�os n�o gostam de tocar. Com minha irm� j� � o contr�rio: � normal falar do Cersam. Ela passou a ser militante da luta antimanicomial''

Leida de Oliveira Uematu, irm� de usu�ria da rede de sa�de mental de BH, contr�ria � hospitaliza��o



Para ela, a contribui��o do Galba Velloso para a qualidade de vida do irm�o foi fundamental. “Somos muito gratas ao Galba Velloso, porque antes Nicolai n�o tomava medica��o nem tinha tratamento para ter uma vida mais digna. Quando fechou (o hospital), ele estava l�, em crise, muito debilitado. Chegamos l� e negaram o atendimento a um paciente que estava em crise. Tivemos que chamar a pol�cia. Como n�o tinha documentos da Fhemig, n�s conseguimos intern�-lo nesse per�odo de fechamento”, explica Carolina Lacerda.

Segundo Carolina, a fam�lia n�o quis tentar interna��o no Raul Soares, unidade para onde os pacientes do Galba Velloso foram encaminhados ap�s o fechamento. Isso porque, de acordo com ela, o hospital tamb�m localizado em BH, na Avenida do Contorno, n�o tem equipe m�dica nem leitos suficientes para dar conta da demanda.

Paix�o

Irm� de uma usu�ria da rede de sa�de mental de BH, a aposentada Leida Maria de Oliveira Uematu se diz “apaixonada” pela reforma psiqui�trica que tem sido feita na rede p�blica da capital e de Minas Gerais. Ela tem outros irm�os que j� foram internados no Raul Soares e no Galba Velloso, entretanto o assunto sequer entra na pauta da fam�lia.

“� um assunto em que meus irm�os n�o gostam de tocar. Com minha irm� j� � o contr�rio: � normal falar do Cersam. Ela passou a ser militante da luta antimanicomial. Foi ela quem me colocou no movimento. Hoje, sou familiar da sa�de mental por meio do Cersam Venda Nova", diz.

Para Leida, as diverg�ncias, que v�o desde o poder p�blico, passam pelas organiza��es representativas e chegam at� mesmo nas fam�lias, atrapalham o desenvolvimento da sa�de mental como pol�tica p�blica. “Atrapalha e muito. A possibilidade de interdi��o (dos Cersams) foi desesperadora. De madrugada, eu recebi mensagens de usu�rios perguntando o que dever�amos fazer. Foi tenso. O CRM, tanto o federal quanto o estadual, n�o est� em um momento digno de falar alguma coisa. O que eles defendem � a morte. � um descaso com o ser humano”, opina a aposentada.

Leida � firme ao dizer que “n�o romantiza os transtornos mentais”. Mas afirma que a conviv�ncia com a irm� evoluiu consideravelmente a partir do momento em que decidiu se informar sobre o transtorno dela e entender a necessidade de acolhimento. “Quando a fam�lia n�o � pr�xima, n�o tem o acolhimento que precisa ter. Procure isso no seu Cersam. Voc� tem esse direito. Fica muito mais f�cil quando voc� aprende a respeitar essa pessoa com sofrimento mental. � uma nova vida”, diz.

M�e pede socorro: “� uma covardia com as fam�lias”


Telma Solange tem 57 anos e convive com uma pessoa com transtorno mental. O filho, de 27, passa por crises frequentes. Dona de uma loja de materiais para festas, Telma n�o sabe se dedica o tempo ao com�rcio ou a olhar o jovem Talles Felipe, que atenta contra a pr�pria integridade frequentemente. Na �ltima vez, colocou fogo na pr�pria m�o. Crises tiram o sono da m�e.

“O Cersam n�o � adequado para o tratamento do Thalles. Ele foi internado uma vez porque eu briguei na ouvidoria da Secretaria Municipal de Sa�de. Fica agressivo, se joga na frente dos carros e amea�a outras pessoas. O problema dele � muito grave, e o Cersam n�o consegue resolver”, afirma.

Telma conta que os problemas de Talles come�aram h� cinco anos, quando ele tentava estudar em uma faculdade privada de BH. A fam�lia mora no Bairro Santa Efig�nia (Leste) e sente falta do servi�o que era prestado pelo Galba Velloso, onde o jovem ficou internado por um m�s.

“Eu sou desesperadamente a favor de voltar a abrir o Galba Velloso. Voc� tem que ver a quantidade de paciente como o Thalles na rua. � uma covardia sem tamanho que fazem com as fam�lias. Eu fico doente junto com ele, porque tem dias que n�o durmo”, relata. “J� fui ao Cersam e eles me perguntam o que eu acho. Eu acho que ele precisa de um tratamento adequado para se estabilizar. Ele n�o responde por ele quando est� assim. Quando est� em estado normal, me ajuda, dorme cedo e fica bem. Mas eu n�o tenho um pingo de paz no momento de crise”, lamenta.


Pedidos de interna��o compuls�ria disparam


Em meio ao fechamento de leitos e � pol�mica sobre a hospitaliza��o, dados obtidos pela reportagem do EM com a OAB, por meio do Tribunal de Justi�a de Minas Gerais (TJMG), mostram que os pedidos de interna��o compuls�ria no estado est�o em disparada. Em 2015, o TJMG registrou 268 pedidos. J� em 2020, o ano fechou com 1.254 solicita��es, aumento de 367%. De janeiro de 2021 at� janeiro deste ano, foram 477. Ao menos desde 2015 o tribunal n�o atesta diminui��o desses pedidos de interna��o compuls�ria.

Debate em s�rie


Desde segunda-feira, a s�ria de reportagens “A batalha da psiquiatria” enfoca a pol�mica em torno do modelo de sa�de mental adotado no estado e em Belo Horizonte. Na primeira reportagem, o Estado de Minas mostrou argumentos de dois lados: profissionais e entidades que consideram os hospitais psiqui�tricos essenciais para atendimentos de pessoas em crises graves e grav�ssimas em contraposi��o aos que se alinham com a luta antimanicomial e defendem que servi�os prestados na Rede de Aten��o Psicossocial s�o suficientes para apoiar e tratar pacientes em todos os momentos relativos ao sofrimento mental. Ontem, o EM apontou os esfor�os que v�m sendo realizados para ampliar o di�logo e encontrar sa�das para pontos de fragilidade admitidos pelos dois lados, entre eles a falta de psiquiatras em plant�es noturnos dos Centros de Refer�ncia em Sa�de Mental (Cersams) de BH. 


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