
Preconceito, omiss�o de atendimento, ass�dio moral no trabalho e autoritarismo est�o entre as principais den�ncias apuradas pelo jornal Estado de Minas contra Renata Helo�sa Cerqueira, supervisora de uma Unidade B�sica de Sa�de (UBS) em Juiz de Fora, na Zona da Mata mineira. A reportagem obteve depoimentos de funcion�rios e moradores durante visitas � comunidade realizadas entre janeiro e mar�o. Por receio de repres�lias, alguns dos relatos foram fornecidos sob condi��o de anonimato.
Entre as den�ncias que vieram � tona, dois dos entrevistados deram a mesma vers�o: que Renata "persegue pessoas negras", sendo uma delas a atual respons�vel pela faxina da unidade. A reportagem teve acesso � c�pia de um e-mail no qual a supervisora pede que a colaboradora seja remanejada por ser moradora da comunidade. Um epis�dio semelhante teria acontecido com um ex-funcion�rio da recep��o, que tamb�m � negro (confira abaixo).
Al�m da insatisfa��o de trabalhadores da Sa�de com o tratamento recebido no ambiente de trabalho, a respons�vel geral pela administra��o da UBS – localizada no Bairro Alto Graja�, na Zona Leste da cidade – � alvo de um abaixo-assinado, com 190 assinaturas, que pede sua sa�da do cargo. Todos os entrevistados, inclusive, atribuem � supervisora a alcunha de “dona do posto”, em decorr�ncia de uma postura supostamente autorit�ria.
O Estado de Minas entrou em contato com a Secretaria de Sa�de e a denunciada Renata Helo�sa Cerqueira, que, em resposta, questionou a autenticidade do abaixo-assinado e negou todas as acusa��es (leia os posicionamentos completos no fim da reportagem).
"(...). Ocorre que a servidora tem agido em desacordo com o c�digo de conduta de nossa primorosa institui��o de sa�de, fugindo das suas responsabilidades, mantendo postura �tica profissional duvidosa, sendo agressiva, prepotente, r�spida e arredia [com os usu�rios] (...)", destaca trecho do documento subscrito pelos moradores.
Ainda conforme o texto, a m� qualidade do atendimento fornecido pela supervisora tem acarretado “traumas emocionais e ps�quicos” � popula��o.
'Ela persegue pessoas negras'
Sob condi��o de sigilo, uma agente comunit�ria, que atua na UBS h� mais de 10 anos, afirma que, em 2020, "a supervisora disse para a mo�a da limpeza que ela n�o estaria trabalhando no posto caso soubesse que ela era moradora da comunidade". "A Renata insinuou que a funcion�ria poderia vazar informa��es sigilosas de pacientes. A quest�o, aqui, � que ela persegue pessoas negras l� dentro. Isso repercutiu muito mal entre os funcion�rios e at� hoje as pessoas comentam sobre esse caso", complementa.
Respons�vel por protocolar o abaixo-assinado junto � Secretaria de Sa�de em 17 de fevereiro, o ex-recepcionista da UBS, Francisco de Assis Beato, de 62 anos, relata que passou por epis�dio semelhante e acredita que foi demitido, no in�cio de 2021, por ser negro. "Ela diz que aquela � a unidade de sa�de dela e realmente age como se fosse a dona. A mo�a da faxina continua l�, mas eu n�o tive a mesma sorte. Ela falou que eu n�o teria nem entrado l� caso ela soubesse que sou morador do bairro", conta.
"Fiquei empregado por apenas 45 dias. Ela alegou que eu poderia vazar informa��es para os pacientes do bairro, pois eu tinha acesso aos fich�rios deles. Ela n�o sossegou enquanto n�o me tirou de l�", acrescenta o ex-funcion�rio, que foi eleito conselheiro local de sa�de na semana passada.
Em rela��o ao epis�dio envolvendo a colaboradora da faxina, outro funcion�rio do posto, que tamb�m optou por n�o se identificar, cedeu � reportagem a c�pia de um e-mail, enviado em 27 de maio de 2020, no qual Renata Helo�sa Cerqueira pede que a funcion�ria respons�vel pelos servi�os gerais, entre eles o de limpeza, seja remanejada. � �poca, servidores flagraram a correspond�ncia eletr�nica aberta em um dos computadores do posto.
No texto, embora os servi�os prestados pela profissional sejam elogiados, a supervisora alega que a unidade trabalha com dados pessoais e sigilosos de pacientes. Logo, "pelo fato de ser moradora do bairro", a gestora insinua que a presen�a da colaboradora na UBS seria um risco � seguran�a de tais informa��es.
Leia o e-mail na �ntegra:

Ainda segundo a mesma agente comunit�ria ouvida sob condi��o de sigilo, Renata tomou conhecimento do vazamento da correspond�ncia. "Depois disso, ela restringiu o acesso ao e-mail – que era p�blico – para um seleto grupo aliado de funcion�rios. A situa��o l� j� est� insustent�vel devido � postura muito autorit�ria com funcion�rios rec�m-chegados e � persegui��o com pessoas negras", inicia.
"�s vezes, at� a conduta m�dica ela questiona. N�o � atoa que a apelidaram de ‘dona do posto’. Como ela n�o lida bem com opini�es contr�rias, as reuni�es internas n�o surtem muito efeito, pois ela n�o segue o que ficou acordado e acaba fazendo o que quer", afirma.
A restri��o ao servi�o de e-mail, inclusive, foi confirmada por outra agente, que tamb�m n�o quis se identificar. "Eu sou branca e trabalho h� muitos anos no posto, lidando direto com informa��es de pacientes. � curioso que a Renata nunca disse que eu n�o poderia trabalhar aqui por tamb�m morar no bairro", pondera.
Ass�dio moral, autoritarismo e desvio de fun��o
Al�m de questionar a real motiva��o da supervisora para retirar funcion�rios espec�ficos do posto, esta segunda agente ouvida pela reportagem conta que Renata "n�o mede as palavras com os servidores na frente dos usu�rios".
"Muitas vezes, ela nos trata em tom de deboche e conversa com a gente com se fossemos uma crian�a. � o tipo da pessoa que n�o sabe o significado da palavra respeito", avalia.
"Teve um caso que a funcion�ria questionou, com educa��o, uma ordem da Renata. Na frente de todos os usu�rios que aguardavam atendimento, e em tom muito r�spido, ela respondeu: ‘eu estou mandando’. N�o h� espa�o para di�logo. As coisas t�m que ser do jeito dela. Ela sempre fala assim com muita ignor�ncia: ‘vai, anda, passa!’. N�o � desta forma que se trata as pessoas. H� dias que a gente sai de l� chorando", desabafa.
Conforme os relatos das duas profissionais, a insatisfa��o � praticamente un�nime. Conforme uma delas, durante uma reuni�o na UBS com a presen�a da ger�ncia de Aten��o Prim�ria � Sa�de, em 3 de fevereiro, e que durou cerca de cinco horas, m�dicos, t�cnicos de enfermagem, agentes comunit�rios e os respectivos residentes "demonstraram insatisfa��o com as condutas e o autoritarismo da supervisora".
"Como, nesse dia, ela n�o estava presente, as pessoas se sentiram � vontade para reclamar", conta a agente, destacando que n�o aconteceram avan�os significativos desde ent�o.
Conforme define o Tribunal Superior do Trabalho (TST), "o ass�dio moral � a exposi��o de pessoas a situa��es humilhantes e constrangedoras no ambiente de trabalho, de forma repetitiva e prolongada, no exerc�cio de suas atividades. � uma conduta que traz danos � dignidade e � integridade do indiv�duo, colocando a sa�de em risco e prejudicando o ambiente de trabalho".
Ambas as agentes comunit�rias entrevistadas destacam que o servi�o delas � essencialmente externo, mas os desvios de fun��o frequentes atrapalham todo o cronograma de trabalho. "N�o nos compete fazer servi�o administrativo, mas a Renata, de certa forma, nos ‘obriga’. Ela diz que � volunt�rio, mas, caso o agente se negue a fazer, ela anota o nome dele em ata, alegando que � apenas um controle interno", diz uma das agentes.
No entanto, conforme a funcion�ria, a manobra da supervisora � uma "press�o psicol�gica". "� como dizer: ‘ok, voc� n�o vai, mas est� aqui registrado que voc� n�o colaborou’. Ent�o, o funcion�rio fica inseguro, com receio de ser perseguido, e acaba fazendo o que ela quer", finaliza.
Usu�rios reclamam do atendimento
A dona de casa e conselheira de sa�de local Ros�ngela Berion, de 53 anos, conta que a primeira experi�ncia ruim de atendimento aconteceu em 2019. "Fui levar minha filha Maria Clara l� no posto, que atualmente tem 18 anos, e ela me tratou muito mal. Ent�o, eu falei: ‘t� parecendo uma rainha, n�?’ A� ela retrucou: ‘para mim s� falta a coroa’", lembra.
"No ano passado, minha filha passou mal na academia e mediram a press�o dela. Estava 19 por 11. O instrutor trouxe ela para casa, e a levei imediatamente ao posto. A Renata me atendeu e disse que n�o teria como fazer nada porque faltavam apenas cinco minutos para as 11h. ‘Mas a minha filha t� mal. A press�o dela t� alta, e ela precisa de atendimento’, respondi. A�, ela pediu um momento, entrou em uma sala e pouco depois voltou dizendo que realmente n�o teria como atender e que eu deveria lev�-la a um psiquiatra. O problema dela comigo come�ou a�", conta.
Ainda conforme a conselheira de sa�de, rec�m-eleita na semana passada, a supervisora, em repres�lia, n�o atendeu Maria Clara da forma devida em outra ocasi�o. "No fim do ano, minha filha voltou ao posto bem cedo e foi a primeira a chegar. No entanto, a Renata, de prop�sito, atendeu a fila de tr�s para frente s� pra ela ser a �ltima. Quando a Maria Clara perguntou se podia entrar no posto, ela disse que n�o", explica.
Um aposentado, de 83 anos, que pediu para n�o ter o nome divulgado, conta que tamb�m j� foi muito mal atendido. “Ela [Renata] falou que meu prontu�rio n�o estava na unidade e que, se eu quisesse ser atendido, teria que buscar a pasta na UBS de outro bairro", inicia.
Conforme o relato, o idoso foi at� a unidade de sa�de indicada, mas n�o conseguiu ter acesso aos documentos, pois apenas funcion�rios podem realizar o tr�nsito da documenta��o. "Perdi tempo, pois fui a um lugar muito longe da minha casa e ainda fiquei sem ser atendido. S� que � muito dif�cil questionar algo l�. Ela � autorit�ria demais e trata mal a gente", finaliza.
O outro lado
A supervisora da UBS Alto Graja�, Renata Helo�sa Cerqueira, nega todas as acusa��es apresentadas na reportagem contra ela e diz que "sempre presou pela melhor t�cnica". "Atendo a todos sem privilegiar ningu�m, seguindo as medidas administrativas e normativas, al�m de protocolos assistenciais adotados pela Secretaria de Sa�de".
A gestora da unidade afirma tamb�m que, em rela��o �s reclama��es dos moradores que frequentam o posto, "o que pode ter ocorrido � alguma manifesta��o de usu�rio por n�o ter desfrutado de qualquer privil�gio pol�tico, social ou econ�mico".
"Quanto ao abaixo-assinado, h� ind�cios de irregularidades, uma vez que os assinantes n�o t�m identifica��o e uma mesma pessoa assina por v�rias. O conselho local de Sa�de, que fiscaliza e acompanha diariamente o trabalho da UBS, n�o tem queixas ou qualquer reclama��o a respeito", finaliza.
Em breve nota, a Secretaria de Sa�de da Prefeitura de Juiz de Fora confirma que recebeu o abaixo-assinado e "est� realizando a apura��o dos fatos, onde todas as partes ser�o ouvidas, na tentativa de apurar a veracidade das den�ncias e tomar as medidas cab�veis e necess�rias".
Por outro lado, a pasta destaca que "a profissional citada pertence ao quadro de servidores efetivos da prefeitura h� mais de dez anos e sempre se mostrou competente e respons�vel em suas atividades".
Vice-presidente do conselho local de sa�de se manifesta
Para o novo vice-presidente do conselho local de sa�de, Kennedy Vasconcelos Junior, eleito durante convoca��o p�blica da Secretaria de Sa�de na quarta-feira (9/3), "as den�ncias s�o muito graves e aparentam consist�ncia".
"No entanto, � preciso apurar caso a caso. Tamb�m � importante que os usu�rios n�o se calem diante dos abusos no atendimento ou qualquer tipo de discrimina��o. H� relatos de moradores que trazem � tona a suspeita de racismo na unidade de sa�de, o que, se provado, � inadmiss�vel. Vou lutar para que epis�dios como esse n�o fiquem impunes", enfatiza.