Casar�o em Venda Nova guarda mem�rias do nascimento de um Belo Horizonte
Constru��o de 1834 em Venda Nova, mais antiga que a pr�pria capital, assim como a regi�o, � preservada por fam�lia que conta parte das origens da cidade
Quatro gera��es de mulheres mant�m vivo um peda�o da hist�ria de Belo Horizonte, fortalecendo tamb�m as mem�rias familiares, e, quase com devo��o, cuidando de um casar�o do s�culo 19 remanescente dos tempos de Curral del-Rei, arraial sobre o qual foi constru�da a capital. Localizado no Bairro Let�cia, na Regi�o de Venda Nova, o im�vel ilumina as lembran�as de Gracina Pereira do Vale, de 88 anos, solteira, nascida e criada na edifica��o coberta pelas telhas que hoje carregam a cor do tempo, de piso atabuado t�pico de fazendas do interior mineiro e imerso numa atmosfera convidativa �s boas conversas.
“Esta casa guarda muito da nossa fam�lia. Abaixo de Deus, s� ela, que � mais antiga do que a capital. Sempre fiquei de olho para nenhuma crian�a rabiscar as paredes. Escrever, s� no caderno”, conta a belo-horizontina Gracina, ao lado da sobrinha Rita de C�ssia Pinto Gomes, de 52, da filha de Rita, Isabella de C�ssia Gomes, de 27, e da neta, Giovanna, de 5. De uma fam�lia de oito irm�os, dos quais seis mulheres, Gracina era filha de Raimundo Pereira do Vale, “que foi morar na casa quando tinha apenas 1 ano”, ap�s seus pais adquirirem o im�vel de um homem chamado Pacheco. “Foi assim que este lugar recebeu o nome de ‘Pacheco’”, revela Gracina.
Ver galeria . 7 FotosPintura mostra como era o casar�o da antiga fazenda em Venda Nova, no in�cio do s�culo 19
(foto: Alexandre Guzanshe/Em/D.A Press )
Aqui, vale uma explica��o do historiador e professor universit�rio Bruno Viveiros Martins, tamb�m nascido e criado na regi�o, sobre o porqu� de Venda Nova ser anterior a BH. “Em 1787, os moradores do Arraial de Venda Nova, ent�o ligado � Vila de Sabar�, enviaram uma carta � rainha de Portugal, Dona Maria I (1734-1816), pedindo autoriza��o para erguer uma capela dedicada a Santo Ant�nio. Dezesseis anos depois, foi doada, para edifica��o do templo, uma �rea (entre 30 e 40 alqueires) da fazenda de Ant�nio de Castro Porto.” Autor do livro “Venda Nova”, da cole��o “BH – Cidade de cada um”, Bruno afirma que Venda Nova pertenceu a Sabar� e Santa Luzia antes de ser, em 1948, anexada � capital.
Gracina Pereira do Vale, de 88 anos, que cresceu no im�vel, ao lado de gera��es de mulheres da fam�lia que preservam o legado: lembran�as dos tempos em que Venda Nova era um povoado rural (foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)
“No auge da coloniza��o, o ent�o lugarejo desempenhou importante papel comercial, pol�tico e religioso. Al�m de fazendas de gado, a regi�o abrigava emp�rios e vendas de comerciantes portugueses, vindo da� o nome pelo qual se tornou conhecida. A atual Rua Padre Pedro Pinto fazia parte dos Caminhos dos Currais do Rio S�o Francisco, uma rota de tropeiros.”
AMBIENTE ORIGINAL
As palavras do professor Bruno Viveiros ecoam na casa de linhas simples, preservadas como nos prim�rdios. Conservar esse patrim�nio hoje � miss�o de Isabella, atual propriet�ria e que vive no im�vel com os tr�s filhos (Miguel, de 8, Giovanna, de 5, e Matheus, de 3) e um irm�o, Guilherme de C�ssio Gomes. H� alguns anos, Gracina foi morar com a sobrinha Rita de C�ssia e sua fam�lia na casa do outro lado da Rua Gentil Murce Ferreira.
“Viver aqui � uma maravilha, parece que entramos mesmo na hist�ria. N�o modificamos nada do original, a n�o ser fazendo um reparo ou outro. Algumas t�buas do piso, por exemplo, precisaram ser trocadas, pois apodreceram e abriram caminho para ratos”, diz Isabella.
Acompanhando a equipe do Estado de Minas, Rita de C�ssia explica que, na sala, o forro de taquara, tamb�m conhecido como esteira, precisou ser retirado, dando lugar ao de madeira. “Mas o banheiro continua do mesmo jeito, com poucas altera��es”, diz, apontando o c�modo em um plano mais baixo do que a sala e os quartos. Atenta, Giovanna observa todos os detalhes, certa de que a conserva��o do im�vel, permeado de acontecimentos e mem�rias, passar� pelas suas m�os.
BA�S
O retrato na parede, em preto e branco, de Raimundo Pereira do Vale, os marcos de portas e janelas aparentes sob a parede caiada de branco, as madeiras centen�rias pintadas de marrom e dois ba�s de couro, num dos quartos, s�o novos convites a descobertas. “Meu pai criava porcos, galinhas e outros animais, todos soltos, enquanto minha m�e fazia doce e lavava roupa. No quintal, tinha engenho para fazer farinha de mandioca e o moinho, para o fub�. Mais acima, havia um a�ude”, recorda-se Gracina, que, curiosamente, diz n�o ter saudade daquela �poca: “Eu me sinto bem no tempo em que estou”.
Nas d�cadas de 1940 e 1950, n�o era tarefa das mais f�ceis chegar ao Centro de Belo Horizonte. “T�nhamos que ir a p�, pois n�o havia �nibus. E como dinheiro era curto, o jeito era caminhar”, lembra Gracina. As festas nas cidades vizinhas tamb�m requeriam esfor�o redobrado. “�amos a Santa Luzia no dia da padroeira, 13 de dezembro, mas tamb�m a p�. Como esta regi�o era formada por fazendas, a gente encontrava sempre uma vaca pelo caminho. A�, a gente tinha de correr”, diverte-se a simp�tica senhora, que nunca trabalhou fora nem quis se casar. Por sorte, acrescenta, �s vezes passava uma carona, um caminh�o, e a turma subia na carroceria.
Na sede da fazenda de Raimundo, o Natal era muito celebrado, e a fam�lia fazia um pres�pio ocupando grande espa�o da sala. Em outras �pocas do ano, Gracina gostava especialmente das festas juninas, com destaque para Santo Ant�nio, que � o padroeiro de Venda Nova.
O NOME DO PADRE
Imposs�vel falar sobre Venda Nova sem citar o padre Pedro Pinto Fernandes (1890-1953), titular da Par�quia Santo Ant�nio entre 1924 e 1953. Na mesa da sala, Gracina conta que o conheceu, e ressalta sua participa��o na vida comunit�ria. Conforme registro da par�quia, o religioso foi essencial na evangeliza��o na Arquidiocese de Belo Horizonte, criada em 1921. Padre Pedro Pinto foi um dos primeiros a obter a carteira de habilita��o e dirigir, a partir de 1928, pelas ruas da regi�o.
Cercada de muros, a casa centen�ria que � testemunha de parte dessa hist�ria fica entre as duas principais vias p�blicas de Venda Nova: a Avenida Vilarinho, famosa pelos hist�ricos transbordamentos do c�rrego de mesmo nome, nas esta��es de chuva, e a Rua Padre Pedro Pinto. “Felizmente, a enchente nunca veio aqui, porque a constru��o est� numa parte mais alta. S� alaga mesmo l� embaixo”, diz, com al�vio, Rita de C�ssia.
O professor universit�rio Bruno Viveiros Martins na Casa Azul, hoje Emei de Venda Nova: hist�ria da regi�o gravada em livro e nas constru��es (foto: ALEXANDRE GUZANSHE/EM/D.A PRESS)
Educa��o e mem�ria no mesmo endere�o..
Regi�o mais antiga de BH, com mais de tr�s s�culos, Venda Nova tem outra constru��o que joga mais luz sobre sua hist�ria. Trata-se do casar�o da Rua Boa Vista, hoje sede da Escola Municipal de Educa��o Infantil (Emei) de Venda Nova, da Prefeitura de BH, e o Centro de Refer�ncia da Mem�ria de Venda Nova.
Destru�do pelo fogo em 2007, o sobrado apelidado de Casar�o, Casa Grande ou Casa Azul foi reinaugurado em 2013. A trajet�ria dele come�a em 1884, ao ser constru�do pelo mestre Luiz Daniel Corn�lio de Cerqueira, pol�tico, professor e delegado de Curral del-Rei.
Em 1916, com a morte do mestre Luiz Daniel, o casar�o teria ficado em poder de suas duas sobrinhas. Depois vendido, teve ao longo do s�culo 20 v�rias serventias. A import�ncia foi destacada em 2003, com o tombamento pelo Conselho Deliberativo do Patrim�nio Cultural do Munic�pio de Belo Horizonte.
Inspira��o para o batismo de BH
O mestre Luiz Daniel Corn�lio de Cerqueira, respons�vel pela constru��o do Casar�o de Venda Nova, era integrante do Clube Republicano. Assim que chegaram as primeiras not�cias da Proclama��o da Rep�blica (15 de novembro de 1889), os integrantes do clube se apressaram em mudar o nome do povoado onde depois se ergueria a nova capital de Minas, relata o historiador e professor Bruno Viveiros Martins, “pois, segundo eles, n�o pegava nada bem um Curral del-Rei na nova conjuntura republicana”. Durante as reuni�es do clube, apareceram v�rias sugest�es: Novo Horizonte, Terra Nova, Santa Cruz, Cruzeiro do Sul, Nova Floresta. “At� o mestre Daniel Corn�lio pedir a palavra. Argumentou que todas as op��es eram insignificantes diante da beleza do lugar e do futuro que lhe aguardava”.
Em seguida, Daniel Corn�lio sugeriu aquele que, em sua opini�o, era o nome mais condizente com a realidade � sua volta: Belo Horizonte. Em 12 de abril de 1890, o presidente do estado (na �poca, n�o se usava a palavra governador), Jo�o Pinheiro, ap�s ouvir as alternativas apresentadas pelo Clube Republicano, assinou a lei que alterava o nome do antigo Curral del-Rei para Belo Horizonte. Foi assim que o personagem entrou para a hist�ria de BH, e a cena foi narrada por Henriqueta Lisboa em 1972 no livro “Belo Horizonte bem querer”.
O professor Bruno Viveiros explica que, ao ser inaugurada em 12 de dezembro de 1897, a capital recebe o nome de Cidade de Minas. No entanto, em 1901, volta a ser denominada Belo Horizonte.