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Estado de Minas LENDAS URBANAS

Fantasmas em BH? Eles nos assombram desde a funda��o. At� Drummond sabia

Assombra��es descritas pelo poeta t�m origens ligadas � funda��o da nova capital, onde a tradi��o popular deu � luz outros seres sombrios longo da hist�ria


25/06/2023 04:00 - atualizado 25/06/2023 07:27
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H� 130 anos, o Curral del Rei tinha seu destino selado: em 1893, por for�a da lei, o arraial seria destru�do, para, em seu lugar, ser erguida a nova capital de Minas. Inaugurada quatro anos mais tarde, ainda com servi�os p�blicos totalmente deficit�rios, Belo Horizonte foi juntando � hist�ria, nas primeiras d�cadas, lendas de fantasmas inconformados com a destrui��o do povoado ou revoltados com o fim da sede governamental em Ouro Preto.
 
Atento ao cen�rio urbano e fiel �s mem�rias, o poeta Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu, na d�cada de 1960, “Dois fantasmas” – um da Lagoinha, que assustava a popula��o e tirava at� os bondes dos trilhos, e outro da regi�o da Serra.
 
BH, MG. Magna Cristina de Oliveira, contadora de histórias que fala sobre os relatos de fantasmas em Belo Horizonte
(foto: CHICA REIS/DIVULGA��O )

"Relatamos o que vivemos, e posso garantir que a Lagoinha � o ber�o de muitas narrativas de BH

Magna Cristina de Oliveira, contadora de hist�rias


Esse a�, coitado, foi perdendo o status de assombra��o e j� n�o importunava mais ningu�m. Em suas apari��es, em junho, ele surgia no meio do nevoeiro, com certeza anunciando o inverno, que, neste ano de 2023, come�ou no dia 21, �s 11h58.
 
Natural de Ouro Preto, antiga capital de Minas, o espectro da Serra “surgia � meia-noite e trinta, ponderado, no nevoeiro de junho”. Mas, nos idos de 1968, Drummond j� lamentava, em tom de nostalgia: “ningu�m mais fala nele”.
 
Bem distante das ch�caras ent�o localizadas aos p�s da Serra do Curral, outra criatura assombrava parte da Regi�o Noroeste da capital. “Chega a vez do avantesma da popular Lagoinha, noutro extremo da vida. Sinal de coisas novas. � exc�ntrico, forja diabruras cru�is”, escreveu tamb�m Drummond em “Dois fantasmas”, poema da colet�nea “Boitempo II – Esquecer para lembrar”, rec�m-lan�ado pela Editora Record.
 
“Drummond � um not�vel contador de hist�rias. O enredo de um poema pode, por vezes, trazer personagens j� esquecidos da vida de Belo Horizonte. Alguns, famosos: Madame Ol�mpia e seu cabar�; o conde D’Eu; os reis da B�lgica; Juliette Brille, a paraquedista; Hel�ne Antipoff, a grande educadora; Mietta Santiago, que conquistou o direito de votar e ser votada; os escritores Pedro Nava e Cyro dos Anjos”, destaca a professora de hist�ria das ideias da Universidade Federal de Minas Gerais e coordenadora do projeto Rep�blica, Heloisa Starling, que assina o posf�cio do livro.
 
J� os fantasmas, observa a professora, d�o conta das particularidades do moderno que fundou a capital de Minas. “A progressiva mutila��o e retra��o dos lugares p�blicos aliada � instala��o, desde sua origem, de um processo t�o rotineiro de transforma��o, degenera��o e mudan�a do espa�o urbano, que, no limite, impede a cidade de acumular mem�ria. S�o tra�os de mem�ria da pr�pria cidade, conservam e transmitem aquilo que o tempo n�o pode apagar na lembran�a da cidade moderna.”
 
O fantasma da Serra, se h� muito j� n�o assusta ningu�m, conserva, na mem�ria da cidade, a lembran�a dos funcion�rios p�blicos an�nimos, egressos de Ouro Preto e dos milhares de oper�rios e artes�os que constru�ram Belo Horizonte e ficaram por aqui, vagando, depois, sem trabalho. J� o avantesma da Lagoinha “traz � lembran�a a margem que separava a cidade que se imaginava modernista, de sua gente, insalubre e extraviada”.

TOQUES DO IMAGIN�RIO

BH, MG. Bárbara Amaral, professora de arte e narradora de histórias que fala sobre os relatos de fantasmas em Belo Horizonte
(foto: IGOR CERQUEIRA/DIVULGA��O )

Curral del Rei foi queimado, dizimado, para dar lugar � nova capital. Esses fantasmas representam lamentos de quem perdeu essa mem�ria

B�rbara Amaral, professora de arte e narradora de hist�rias


Ap�s ler os versos de Drummond, � bom saber, caro leitor, que Belo Horizonte guarda hist�rias nos livros e nas pesquisas de estudiosos, e na criatividade dos “contadores e narradores” que d�o a elas toques do imagin�rio. Os dois fantasmas s�o, portanto, criaturas do outro mundo e deste, pois desnudam lados da cidade com seus altos e baixos, contrastes, camadas sociais, diferen�as culturais, tradi��es, pesadelos.
 
“O in�cio da nossa hist�ria foi de viol�ncia. O antigo povoado de Curral del Rei desapareceu, foi queimado, dizimado, para dar lugar � nova capital. Esses fantasmas representam lamentos de quem perdeu essa mem�ria”, diz a narradora de hist�rias e professora de arte B�rbara Amaral, que mora no Conjunto IAPI, na regi�o da Lagoinha.
 
O diretor do Arquivo P�blico da Cidade de Belo Horizonte, Yuri Mello Mesquita, joga luz sobre a quest�o, com base em suas pesquisas. Em 7 de julho de 1893, o Congresso (ent�o composto pelo Senado Mineiro e pela C�mara dos Deputados) recebeu o relat�rio da Comiss�o de Estudos das Localidades Indicadas para Nova Capital (Celinc). Quase seis meses depois, em 17 de dezembro, foi publicada a Lei Adicional nº 3, que estabeleceu as regras para a constru��o da cidade sobre o que ent�o era o arraial. Estava decretado o fim de Curral del Rei.
 
Mello Mesquita encontra nas origens da cidade inaugurada em 12 de dezembro de 1897 algumas explica��es para o “aparecimento” de “Dois fantasmas”, conforme o poema de Drummond. “A regi�o da Serra era pouco habitada nas primeiras d�cadas do s�culo 20. Havia ainda muitas ch�caras, �reas bem espa�adas, e, em v�rias regi�es da capital, a popula��o de baixa renda vivia � beira dos c�rregos, devido ao fornecimento de �gua prec�rio. Era uma cidade que come�ava, crescendo de dentro para fora, e n�o de fora para dentro, como queria o engenheiro e urbanista Aar�o Reis (1853-1936), chefe da comiss�o construtora de BH.”
 
A partir dos anos 1970, a cidade cresce rapidamente, embora muitos dos “mitos urbanos” tenham sobrevido ao processo abrigados no imagin�rio popular. Yuri descreve o cen�rio: “Nos meses secos, como no per�odo de inverno, havia muita poeira nas ruas, assim como assovios dos ventos, tal o grande n�mero de terrenos vazios. Esses sons pavimentavam os ‘caminhos da imagina��o’, a partir da diversidade cultural vivida pela cidade com a chegada de pessoas do interior de Minas e outros imigrantes”.
 
A Lagoinha teve uma ocupa��o diferente, pois sofria um certo isolamento, por ficar fora da Avenida do Contorno e longe da �rea central. “Era uma regi�o com os imigrantes, em especial os italianos, pessoas vindas do interior mineiro e a grande massa de trabalhadores. Cat�licos e pessoas de religi�es de matriz africana conviviam numa �rea de BH com forte voca��o para o samba. Desse ‘caldeir�o’, nasceram muitas hist�rias”, destaca Mello Mesquita.

LENDAS URBANAS Pesquisadora de lendas urbanas, B�rbara Amaral se declara “apaixonada” pelos fantasmas de BH, que v�o al�m dos da Serra e Lagoinha: ao longo do tempo, passaram a assombrar os belo-horizontinos outros espectros, como a Maria Papuda, origin�ria dos �ltimos casebres do antigo arraial e que amaldi�oava a nova capital; ou a Loira do Bonfim, sa�da de entre as tumbas do antigo cemit�rio de mesmo nome.
 
Talvez o mais “jovem” dessas assombra��es seja o Capeta do Vilarinho – esse, um homem misterioso, que no in�cio da d�cada de 1980 aparecia nos bail�es da Avenida Vilarinho, em Venda Nova, escondendo sob o chap�u um lustroso par de chifres. “Muda o tempo, mas os personagens continuam firmes. J� ouvi, numa escola, um menino dizer assim: 'Olha, ele existe, sim. S� que agora vai no baile funk’”, conta B�rbara.

BER�O DE NARRATIVAS Contadora de hist�rias e est�rias, Magna Cristina de Oliveira morou 12 anos na Pedreira Prado Lopes, onde ainda tem uma casa, e vem de l� muito da sua riqueza cultural. “Relatamos o que vivemos, e posso garantir que a Lagoinha � o ber�o de muitas narrativas de BH”, diz Magna, certa de que “as viv�ncias no ir e vir e na fam�lia comp�em nossa trajet�ria”.
 
A for�a dos personagens, das lendas e mitos urbanos tem uma “forma personalizada”, o que se traduz por um fundo de verdade. “Nascem da imagina��o das pessoas, mas tamb�m do que elas veem. Quando eu era crian�a, ouvia dizerem: ‘L� vem o homem do saco’. Depois, vamos saber que era um catador de lixo, dignificado mais tarde como catador de material recicl�vel”, recorda-se Magna, em refer�ncia a um personagem das ruas do qual a crian�ada tinha medo.
 
Com o passar do tempo, a contadora acredita que a tradi��o est� mais forte no interior mineiro. “H� �pocas em que fica mais forte, como o per�odo de quaresma. Na cidade grande, nossos fantasmas s�o outros... Essa correria danada nem nos permite pensar nesses assuntos.”

DOIS LADOS O poema “Dois fantasmas”, hoje, pode ser lido como uma cr�nica de outros tempos, de duas regi�es do que hoje � a metr�pole com mais de 2 milh�es de habitantes e fantasmas que assombram muito mais: tr�nsito infernal, enchentes tenebrosas, empreendimentos miner�rios amea�ando a Serra do Curral, correria o dia inteiro, entre outros.
 
Curiosamente, enquanto na Serra, na Regi�o Centro-Sul de BH, o fantasma “a ningu�m assustava”, deixando-se “ficar junto a port�es de ch�caras” e a lembrar “sem gesto, a convivial presen�a das almas-do-outro-mundo”, na Lagoinha era bem diferente. L� o esp�rito tocava o terror no caminho dos bondes. “Espanta motorneiros, sentando-se entre os trilhos, sem mover uma palha se o bonde tilintante desce a rampa”. J� os “raros passageiros dessa hora glacial, aos gritos se levantam...”

N�O SE ASSUSTE! No posf�cio da nova edi��o de “Boitempo II”, a professora Helo�sa Starling avisa: “Mas o leitor n�o se assuste. Caminhar pelas cidades que a mem�ria do poeta de ‘Boitempo’ transformou em versos � efetivamente um modo de contar a hist�ria e um convite � aventura. Acende a imagina��o, despoja o cotidiano do seu peso, escava nossas lembran�as em busca de um motivo – ou de um sinal de mist�rio – para modular o pensamento e, por vezes, sonhar.
 
Se s�o fantasmas, s�o tamb�m dois lados da cidade. “O fantasma da Serra, natural de Ouro Preto, surge � meia- noite e trinta do nevoeiro de junho, nos port�es da Rua do Ouro, no Bairro da Serra. Grave, pontual, registra a �ltima lembran�a que a cidade guarda dos funcion�rios p�blicos an�nimos, egressos da Ouro Preto destronada”.
 
Heloisa Starling assinala ainda que “o lugar de sua apari��o marca tamb�m uma das margens originais de onde principiava a zona suburbana de Belo Horizonte, com suas ruas estreitas e quarteir�es irregulares”. Para essa regi�o, acrescenta, “refugiaram-se despossu�dos de toda esp�cie, parcela significativa dos milhares de oper�rios da constru��o civil a servi�o do sonho da moderniza��o de Minas, vagando, depois, sem trabalho. Seu destino, semelhante aos burocratas, foi o esquecimento, a escurid�o da noite, o vazio, o ilimitado do espa�o urbano”.
 
Por sua vez, “o avantesma da Lagoinha, exc�ntrico, cruel, quase disforme, � um senhor todo de preto, sem rosto, que exala vago cheiro de enxofre e chora um choro convulsivo”. A historiadora, no posf�cio “Poesia, Mem�ria, Hist�ria: Modos de Contar”, exp�e os contrastes: “Ao inverso da Serra, a Lagoinha era o lugar do jogo, da prostitui��o, da boemia – a margem que separava a cidade que se imaginava modernista, de sua gente, insalubre e extraviada. Hoje em dia, a face mais vis�vel do bairro foi inteiramente demolida. O que sobrou vem sendo sugado pelo complexo de viadutos que se derrama em dire��o � Pampulha”.

OUTROS VERSOS Na palavras de Heloisa Starling, “outros versos trazem fragmentos do cotidiano da cidade e permitem ver a hist�ria tamb�m de diferentes perspectivas: as mo�as de chap�u e sombrinha; o farmac�utico Artur Viana; as professorinhas que invadem a desprevenida Bel�, como ele diz; Batista Santiago, revisor de jornal e trovador noturno; Eduardinho, o gerente que nunca tem dinheiro”.
 
Heloisa ressalta ainda que “os versos trazem lugares que se tornam personagens: o crep�sculo na Serra do Curral; a Pra�a da Liberdade e o Parque Municipal; o bairro da Floresta; as confeitarias de Clara Weiss, Estrela e Pingo de Ouro; o cinema Odeon; o pres�pio do Pipiripau; o Clube das Violetas.”
 
Na cidade que sucedeu Curral del Rei e se tornou metr�pole, h� outros espectros. “N�o faz parte de ‘Boitempo’, mas Drummond conta, em outro poema, a hist�ria de um terceiro fantasma. A Mo�a Fantasma que desce a Serra do Curral, em calmo desespero, para recolher, nas ruas do bairro dos Funcion�rios, os amores nascidos da certeza de que os amantes jamais voltar�o a se encontrar. E deixa, em seu rastro, um cheiro doce de jasmim, de dama-da-noite, de magn�lia, que se prolonga at� a Rua Cear�, nos limites do bairro dos Funcion�rios – o perfume das flores dos antigos quintais das casas do bairro Funcion�rios. E seu contraponto � a solid�o: uma nuvem gelada que escapou da serra do Curral.”

Apari��o no Bairro da Serra

Cumpre seu destino, pontualmente, � meia-noite e trinta do m�s de junho, na Rua do Ouro, quase na esquina da Avenida do Contorno. Um cavalheiro de terno preto e guarda-chuva, im�vel, na rua. Talvez um dos funcion�rios p�blicos an�nimos do come�o da hist�ria de Belo Horizonte. O lugar da apari��o marca tamb�m uma das margens originais de onde principiava a zona suburbana da capital. No Bairro da Serra, se refugiaram despossu�dos de toda esp�cie, parte significativa dos milhares de oper�rios da constru��o civil vagando, depois de erguida a capital, sem trabalho – destino semelhante ao dos burocratas foi o esquecimento, a escurid�o da noite, vazio, o ilimitado do espa�o urbano.

Avantesma da Lagoinha

Um senhor vestido todo de preto, mas sem tra�o de rosto ou fei��o. Ao contr�rio de seu similar da Serra, o Avantesma da Lagoinha � uma apari��o disforme, exc�ntrica, cruel, que exala vago cheiro de enxofre e chora um choro convulsivo. Antigamente, costumava descarrilar bondes sentando-se, im�vel, entre os trilhos. Talvez porque lhe pare�a necess�rio revelar os rastros e a presen�a de uma gente submetida por muito tempo ao princ�pio de segrega��o f�sica e espacial que orientou o projeto original de constru��o da nova capital. O Bairro da Lagoinha serviu de primeiro ref�gio para boa parte da popula��o pobre de Belo Horizonte construir suas cafuas e barracos. Hoje, o Avantesma da Lagoinha ainda se pendura pelas bordas do complexo de viadutos que se esparrama em dire��o � Pampulha.


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