
D�cadas de conquistas, opera��es especiais integradas por v�rias institui��es, apreens�o de obras de arte – especialmente pe�as sacras e documentos hist�ricos –, com entrega a comunidades do interior, em clima de emo��o. A campanha pelo resgate de bens culturais desaparecidos ao longo de s�culos de igrejas, capelas, museus e outros monumentos em Minas Gerais tem encontrado no Minist�rio P�blico (MPMG) um sustent�culo fundamental.
Nesta entrevista, o coordenador das Promotorias de Justi�a de Defesa do Patrim�nio Cultural e Tur�stico de Minas Gerais (CPPC/MPMG), Marcelo Azevedo Maffra, fala sobre a evolu��o do trabalho em 20 anos, a solidifica��o de parcerias e a conscientiza��o da comunidade, que �, afinal, a maior guardi� de seu patrim�nio.
A melhor not�cia nesses 20 anos de trabalho, acredita Maffra, � dizer que o caminho est� certo. Confira abaixo os principais trechos da entrevista.
Como o senhor avalia as duas d�cadas de campanhas institucionais e lutas das comunidades pelo resgate do patrim�nio desaparecido de igrejas, capelas, museus e outros monumentos de Minas?
As �ltimas duas d�cadas foram marcadas por avan�os e constru��o de pol�ticas p�blicas para combate a furtos, desmonte de quadrilhas especializadas na pr�tica de crimes contra o patrim�nio cultural, especialmente em Minas Gerais, e constru��o de parcerias com as comunidades, organiza��es n�o governamentais, �rg�os p�blicos e privados que atuam na pauta do patrim�nio cultural. Durante esse per�odo, o MPMG assumiu protagonismo nacional com atua��o especializada na defesa e prote��o do patrim�nio cultural e por ter se destacado como o �nico no pa�s a possuir uma coordenadoria espec�fica para a pauta patrimonial, com atribui��o nos 853 munic�pios mineiros.
De que forma isso se reflete na pr�tica?
Nos �ltimos anos, foram propostas diversas a��es judiciais para a busca e apreens�o de bens culturais que foram indevidamente subtra�dos dos seus locais de origem. Tamb�m foram realizadas in�meras campanhas de conscientiza��o da prote��o dos bens culturais mineiros, tais como “Patrim�nio Perdido”, a exposi��o “Elos do Patrim�nio”, a Campanha Boa F�, de devolu��o espont�nea de bens, e a cria��o de uma ferramenta digital de cataloga��o e recebimento de den�ncias sobre os bens mineiros, que � o Somdar.
A sociedade tem papel fundamental no processo cont�nuo de vigil�ncia
Marcelo Azevedo Maffra
Como funciona o Somdar?
O aplicativo conseguiu alinhar a tecnologia com a amplia��o da participa��o social no resgate do patrim�nio cultural desaparecido. A comunidade, por sua vez, se mostrou parceira ativa do MPMG nesse caminhar, e, ao longo do tempo, as den�ncias come�aram a chegar de maneira mais qualificada. Isso porque s�o aqueles que vivem e convivem com os bens que conhecem seus detalhes e pormenoriza��es. E auxiliam sobremaneira os trabalhos do MPMG, mostrando-se como verdadeiros guardi�es do patrim�nio cultural mineiro. O Somdar foi pensado para centralizar e sistematizar informa��es que se encontram dispersas, favorecendo a gest�o de dados e interferindo na elabora��o de estrat�gias de atua��o. Podemos afirmar que a sociedade recebeu uma ferramenta de vanguarda, in�dita em todo o pa�s.
Nesse per�odo, houve in�meras opera��es, unindo v�rias institui��es p�blicas, para recuperar bens desaparecidos. As iniciativas inibiram os crimes?
� poss�vel afirmar que as iniciativas do MP reduziram a pr�tica de crimes contra o patrim�nio. Isso porque, para al�m do dever funcional, a a��o do MPMG tem um car�ter pedag�gico na medida em que conscientiza a sociedade em rela��o � prote��o do patrim�nio cultural. As a��es e opera��es dos �rg�os p�blicos no combate � criminalidade contra o patrim�nio cultural acabam ganhando as p�ginas de jornais e espa�os nos telejornais, o que proporciona sua ampla divulga��o. Desse modo, h� um efeito que, no direito penal, se denomina como preven��o geral: a a��o de investigar e combater as a��es tidas como crimes acabam por gerar uma intimida��o geral naqueles que tamb�m praticam atos atentat�rios contra os bens culturais.
Quais s�o os resultados, em dados estat�sticos, que mostram os avan�os das campanhas em Minas?
A Coordenadoria de Patrim�nio Cultural, desde sua cria��o, vem se empenhando na recupera��o e restitui��o de bens culturais m�veis e integrados. Nesse contexto, j� foram movidas e apoiadas a��es de busca e apreens�o que permitiram a recupera��o de cerca de 700 itens, bem como a restitui��o de boa parte dos bens culturais dissociados de seus locais de origem e proced�ncia. A fim de dar publicidade dessas iniciativas � sociedade, os resultados das dilig�ncias frequentemente s�o noticiados. Dessa forma, os cidad�os podem acompanhar o trabalho que o Minist�rio P�blico vem desempenhando.
O senhor pode dar exemplos da participa��o da sociedade?
Um caso interessante foi a devolu��o espont�nea da Nossa Senhora do Ros�rio. Certo dia, um indiv�duo que fez quest�o de se identificar compareceu � sede da Coordenadoria de Patrim�nio Cultural com um grande embrulho de jornal e disse que gostaria de entreg�-lo. Tratava-se da imagem de Nossa Senhora do Ros�rio. Ela j� estava em avan�ado estado de deteriora��o e passou por um processo delicado de restauro pela equipe da CPPC e de �rg�os parceiros. Segundo o indiv�duo, seu pai havia falecido e, no manuseio com os pertences pessoais, foi localizado o embrulho. Atualmente, a imagem est� exposta no Museu Mineiro. Outro caso muito comemorado foi o resgate da Cabe�a de Anjo de Fita Falante, pertencente � antiga Fazenda da Jaguara, em Matozinhos (Grande BH). Trata-se de uma obra de autoria do mestre Aleijadinho (1738-1814) que estava na posse de uma colecionadora. Depois do lan�amento do aplicativo Somdar, foi feito um acordo para a devolu��o espont�nea do bem, que hoje se encontra no Museu da Inconfid�ncia, em Ouro Preto.
Minas j� perdeu muito do seu patrim�nio, e, com certeza, h� muito a ser feito. Em que dire��o atua o MP para recuperar esses bens?
Estima-se que mais da metade do patrim�nio cultural mineiro tenha sido extraviado ao longo da nossa hist�ria. Atualmente, h� milhares de bens culturais m�veis desaparecidos no estado. A Coordenadoria de Patrim�nio Cultural verificou, ao longo de sua atua��o, que quanto antes o extravio for comunicado aos �rg�os de prote��o, maiores s�o as chances de recupera��o. A maior parte das den�ncias que recebemos vem de pessoas afetadas pelo extravio de bens sacros e documentos hist�ricos. A Coordenadoria est� sempre em contato com a sociedade, estabelecendo parcerias, desenvolvendo projetos, participando de eventos. O mesmo ocorre com as institui��es de prote��o: Iphan, Iepha e Arquivo P�blico Mineiro.
Sobre a mais recente campanha do MPMG, “Boa F� – Ao patrim�nio o que � do patrim�nio”, como tem sido o retorno?
A Campanha foi institu�da em maio de 2023 com a finalidade de estimular a devolu��o volunt�ria de bens que integram o patrim�nio cultural de Minas Gerais. � mais um espa�o no qual a sociedade civil pode se mostrar parceira na promo��o do patrim�nio cultural mineiro. A a��o busca incentivar os detentores de boa-f�, principalmente colecionadores, negociantes e herdeiros a procederem a restitui��o dos bens culturais de proced�ncia incerta aos seus locais de origem. Assim, eles passam ser tratados n�o exatamente como r�us ou investigados, mas como parceiros do MPMG na medida em que decidem devolver � sociedade aquilo que jamais deveria ter sa�do de seus locais de origem.
Pe�as importantes j� foram devolvidas como parte da campanha?
Recentemente, o MPMG recebeu, de maneira volunt�ria, quatro casti�ais possivelmente pertencentes a igrejas mineiras, os quais aguardam per�cia t�cnica para a conclus�o dos trabalhos. J� foram devolvidos espontaneamente, importantes imagens sacras, como a Nossa Senhora do Ros�rio de Itaguara, que, inclusive, j� foi restitu�da � comunidade em uma solenidade de muita festa e grande devo��o, e um crucifixo e uma Nossa Senhora das Dores, que se encontram dispon�veis para a frui��o coletiva na cidade de Itaguara, na Regi�o Central.
Mais do que receber as pe�as, � importante devolv�-las aos locais de origem. O que vem sendo feito para apressar esse retorno �s cidades?
Com o decorrer do tempo, muitos dados sobre os furtos se perdem e, naturalmente, se torna mais dif�cil obter informa��es sobre o paradeiro dos bens, encontrar e punir os culpados. Mas n�o significa que essa � uma tarefa imposs�vel. Muito pelo contr�rio: a Coordenadoria tem obtido �xito em encontrar pe�as que estavam h� muito tempo desaparecidas. O caminho pode ser longo, mas sempre valer� a pena lutar por justi�a. O sucesso desse trabalho depende da integra��o de todos os �rg�os p�blicos que atuam na prote��o do patrim�nio cultural, e da sociedade, que tem papel fundamental nesse processo. N�o se pode recuperar aquilo que n�o se conhece. Assim, importante iniciativa da Coordenadoria foi dar publicidade e acesso virtual aos bens recuperados, por interm�dio do Somdar. Quanto mais pessoas souberem da recupera��o desses bens, maiores as chances de serem reconhecidos e restitu�dos.
A comercializa��o il�cita de bens culturais ainda est� entre os maiores tr�ficos no mundo ao lado do de drogas e armas?
Segundo dados da Unesco (Organiza��o das Na��es Unidas para a Educa��o, a Ci�ncia e Cultura), depois do tr�fico de drogas e armas, o com�rcio ilegal de bens culturais � o mercado il�cito que mais movimenta recursos financeiros no mundo. A falta de regulamenta��o e de legisla��es em diversos pa�ses e o grande retorno financeiro s�o fatores que contribuem. Grandes furtos e roubos a museus, igrejas monumentos, s�tios arqueol�gicos, escava��es il�citas, incluindo subaqu�ticas, al�m de diversas subtra��es de artefatos durante conflitos armados s�o apenas algumas das pr�ticas dessa engrenagem muito bem articulada ao redor do mundo. Para se ter no��o da grandiosidade do movimento financeiro desse tipo de tr�fico, segundo dados da FBI (Pol�cia Federal dos Estados Unidos), Interpol (Organiza��o Internacional de Pol�cia Criminal) e Unesco, estima-se que mais de US$ 6 bilh�es tenham sido movimentados nos �ltimos anos pelo tr�fico de bens culturais.
Qual a mensagem do senhor a quem tem bens culturais que n�o s�o de sua propriedade?
Embora diversos bens culturais tenham sido clandestinamente subtra�dos e ilegalmente comercializados, existem situa��es em que os detentores adquiriram ou receberam esses objetos sem conhecer sua origem il�cita. Em outros casos, obras de arte e antiguidades de proced�ncia incerta s�o transmitidas por heran�a e, n�o raramente, permanecem por d�cadas em poder de detentores de boa-f�. Nesses casos, � poss�vel interpretar tais neg�cios jur�dicos de acordo com a boa-f� do detentor, quando ignora o v�cio ou o obst�culo que impede a aquisi��o da coisa. Para tanto, � imprescind�vel que os detentores de bens de frui��o coletiva, que por qualquer motivo tenham sido retirados do seu local de origem, ao tomarem conhecimento de que o objeto integra o patrim�nio cultural de Minas, manifestem a op��o de devolu��o espont�nea.
Com base em tantas hist�rias, qual seria, hoje, a melhor not�cia, para o senhor, sobre o resgate de bens culturais em Minas?
A de que estamos no caminho certo. A integra��o dos �rg�os p�blicos com a sociedade civil tem gerado frutos consistentes no resgate e na prote��o do patrim�nio cultural mineiro. Com tantas hist�rias de sucesso institucional e social, posso afirmar que o trabalho tem um progn�stico superpositivo para os pr�ximos anos. Ainda temos muito a fazer e com certeza a amplia��o da participa��o social, associada ao emprego das novas tecnologias, trar� grandes benef�cios para a conserva��o, restaura��o e valoriza��o dos bens mais representativos da nossa hist�ria e identidade.