Em 1973, ladr�es levaram 17 pe�as sacras de Bas�lica de Nossa Senhora do Pilar. Nenhuma delas foi encontrada at� hoje, mas moradores ainda t�m esperan�a
Templo barroco � um dos �cones de ouro preto, a primeira cidade brasileira reconhecida pela unesco como patrim�nio mundial (foto: ED�SIO FERREIRA/EM/D.A PRESS)
Meio s�culo de lembran�as permeadas pelo sentimento de dor, embora, em meio � perda, haja sempre um rasgo de esperan�a. H� 50 anos, a Bas�lica Nossa Senhora do Pilar, no Centro Hist�rico de Ouro Preto, na Regi�o Central de Minas, tornava-se alvo de um dos maiores atentados contra os bens culturais do pa�s. Na madrugada de 2 de setembro de 1973, ladr�es levaram 17 pe�as sacras do museu localizado no subsolo do templo barroco, um dos �cones da primeira cidade brasileira reconhecida como Patrim�nio Mundial.
“O tempo passou, mas nunca perdemos a esperan�a de ter o acervo recuperado. At� hoje, n�o h� pistas das pe�as levadas pelos ladr�es. Tudo indica que foi um roubo encomendado”, afirma Carlos Jos� Aparecido de Oliveira, diretor do Museu de Arte Sacra de Ouro Preto, vinculado � Par�quia Nossa Senhora do Pilar, e membro da Comiss�o de Bens Culturais da Arquidiocese de Mariana. A cada 2 de setembro, o sino da bas�lica toca ao meio-dia, marcando a data para ningu�m se esquecer do triste epis�dio ocorrido na tricenten�ria ex-capital de Minas.
Entre os objetos furtados, segundo o diretor do museu, havia uma cole��o formada por cust�dia e tr�s c�lices de prata folheados a ouro, de origem portuguesa, usados no Triunfo Eucar�stico, em 1733, a maior festa religiosa do Brasil colonial. Os objetos de f� continuam sendo procurados pelo Minist�rio P�blico de Minas Gerais (MPMG), e se encontram entre os bens cadastrados na plataforma virtual Somdar ([email protected]), com 2,5 mil bens culturais entre desaparecidos e resgatados, informa o titular da Coordenadoria das Promotorias de Justi�a de Defesa do Patrim�nio Cultural e Tur�stico de Minas Gerais (CPPC/MPMG), Marcelo Azevedo Maffra.
Meio s�culo ap�s o furto dos bens de valor inestim�vel, Maffra explica que “n�o prescreve a obriga��o de se repararem os danos ao patrim�nio cultural (natureza c�vel)”. Conforme o MPMG, tr�s das pe�as furtadas no Pilar foram cadastradas na lista da Interpol. “Infelizmente, naqueles tempos, n�o havia um invent�rio do acervo, boas fotos, ao contr�rio de hoje, quando temos ficha de tudo”, explica Carlos Jos�. As fotos das pe�as do Triunfo Eucar�stico constam do livro “Rel�quia da terra do ouro”, de Edgard de Cerqueira Falc�o, publicado em 1946.
Interior da Bas�lica de Nossa Senhora do Pilar, em Ouro Preto, que foi alvo de furto de pe�as sacras h� 50 anos (foto: ED�SIO FERREIRA/EM/D.A PRESS)
MIST�RIOS E SIL�NCIOS
Nesta primavera, turistas lotam as ruas de Ouro Preto e grupos de brasileiros e estrangeiros chegam a todo momento para visitar a Bas�lica Nossa Senhora do Pilar. Depois de contemplar o esplendor do barroco e fazer suas ora��es, muitos se dirigem ao subsolo, onde ocorreu o furto e o in�cio de uma hist�ria cheia de mist�rios, sil�ncios, indefini��es. Na porta do templo, a reportagem do Estado de Minas conversa com a moradora Geralda da Purifica��o Gomes, aposentada, de 78 anos, que diz, confiante: “N�o perco a esperan�a de ter tudo de volta”.
Filha de Jo�o Evangelista Gomes, falecido em 1984, aos 76 anos, e um dos zeladores da igreja em 1973, Geralda da Purifica��o, volunt�ria em trabalhos pastorais, recorda-se bem do dia do furto e das pe�as desaparecidas: os c�lices, a urna (cofre da irmandade do Sant�ssimo Sacramento de Ouro Preto usado na cerim�nia da quinta-feira santa), a cust�dia (objeto para expor a h�stia consagrada) e os demais bens roubados. “Minha irm� ca�ula, Judith, foi a �ltima a coroar Nossa Senhora do Pilar”, conta.
Os dias seguintes ao roubo deixaram a cidade atordoada. “Meu pai sofreu muito, passou tempos sem sair de casa. No dia do roubo, chegou � matriz por volta das 5h30, a fim de arrumar o templo para a primeira missa, celebrada �s 7h”, lembra-se Geralda. Sobre a madrugada de 2 de setembro de 1973, conta que os ladr�es dormiram dentro da igreja, tanto que foram encontradas “fezes humanas”, no espa�o chamado “consist�rio dos Passos”.
Muitos dos personagens-chave – o p�roco Jos� Feliciano da Costa Sim�es, o padre Sim�es (1931-2009), os ent�o zeladores da igreja, os acusados do furto e outros – morreram, mas parentes e moradores n�o se esquecem dos dias de pesadelo. O inqu�rito ficou desaparecido por 13 anos, sumiu o boletim de ocorr�ncia, enfim, documentos fundamentais para esclarecimento sa�ram de cena. No auge da ditadura militar, policiais tomaram conta da cidade e tr�s delegados apuravam o caso, enquanto agentes do Departamento de Ordem Pol�tica e Social (Dops) faziam interrogat�rios. � boca pequena, o povo criava vers�es diversas sobre a invas�o do Pilar.
Padre Sim�es (1931–2009) foi um dos alvos de interrogat�rios. “Ficou um m�s em pris�o domiciliar, sofreu tortura psicol�gica. Nunca se conformou com o ataque. Na d�cada de 1980, enviou carta ao presidente Jo�o Figueiredo e procurou o diretor-geral da Pol�cia Federal, Romeu Tuma”, recorda-se o diretor do museu, que guarda muitos recortes de jornal da �poca. Para o religioso, que ficou � frente da par�quia de 1963 a 2009, o furto era obra de gente poderosa. “Mas nunca citava nomes.”
Caminhando pelo interior da igreja em dire��o ao museu, Carlos Jos�, conhecido por Caju, conta que os respons�veis pelo furto sabiam o que estavam procurando. “Foram direto ao museu, passaram por v�rias imagens da igreja e n�o levaram nenhuma. Queriam as coroas de Nossa Senhora do Pilar e do Menino Jesus, de ouro maci�o e pedras preciosas – feitas, em Mariana, havia 10 anos, para celebrar a nomea��o da imagem como padroeira pontif�cia pelo papa Jo�o XXIII (atual S�o Jo�o XXIII) – e as pe�as usadas na festa do Triunfo Eucar�stico. Por isso, trata-se do roubo de obras sacras mais importantes do pa�s”, afirma Carlos.
Produtora e pesquisadora de cinema, Laura Godoy, de 43 anos, escreveu uma monografia sobre o fato, entrevistando o padre Sim�es, para quem “o roubo fora encomendado e envolvia pessoas gra�das”. De t�o incomodado com a hist�ria, o padre revelou a Laura que, quando podia, visitava antiqu�rios em S�o Paulo (SP) e se fazia passar por comprador, na tentativa de reencontrar alguns dos objetos. Na reportagem publicada pelo EM em 2 de setembro de 1979, padre Sim�es confessou: “Muita gente sofreu durante as investiga��es, inclusive eu. Um rapaz esteve mais de uma semana preso no Dops, em Belo Horizonte, sofrendo horrores para confessar”.
PRIS�ES E RECONSTITUI��O
Tr�s semanas ap�s o roubo, a pol�cia prendeu Ad�o Pereira Magalh�es (j� falecido), que respondia pelo furto de imagens em Alto Maranh�o, em Congonhas, na Regi�o Central. Ele responsabilizou o h�ngaro naturalizado brasileiro Francisco Schwarcz, antiqu�rio e residente em S�o Paulo (SP). O comerciante negou participa��o, foi preso e solto.
A reconstitui��o do crime mostrou que os bandidos se esconderam dentro da igreja, e, quando tudo se acalmou, sa�ram. Carlos Jos� mostra uma porta pesada de acesso � sacristia e aberta sem problemas. Na sequ�ncia, encontraram outra, arrombada com chutes e ferramentas por estar trancada por dentro, e desceram as escadas em dire��o ao museu. Serraram duas barras de ferro da grade, com espa�o para passagem de um corpo. Na vitrine com as pe�as, colaram tiras de esparadrapo para, com diamante, riscar e retirar o vidro sem quebr�-lo.
A fim de n�o perder tempo, os bandidos arrombaram uma pequena porta e entraram na vitrine maior, depois nas menores. Fizeram ent�o o caminho inverso e sa�ram pela porta da frente da igreja, que teve a fechadura antiga violada. As vitrines, hoje em completa seguran�a, guardam hoje paramentos e imagens da Semana Santa.
Em 1986, ainda sem not�cias das pe�as do Museu de Arte Sacra, o MPMG ajuizou a��o contra os acusados Ad�o Pereira Magalh�es e Francisco Schwarcz, pedindo indeniza��o pelos danos causados ao patrim�nio cultural de Minas. A a��o chegou ao Superior Tribunal de Justi�a (STJ), em Bras�lia (DF), mas a resposta foi que se tratava de algo "juridicamente imposs�vel".
Tesouro desaparecido
Pe�as roubadas do museu da Bas�lica Nossa Senhora do Pilar
- Cust�dia Monumental (objeto para p�r a h�stia). Pe�a de prata folheada a ouro, com 7 quilos. (foto)
- Tr�s c�lices em prata dourada e com pedestais folheados a ouro.
-Urna barroca, em tr�plice dispositivo, com frisos sim�tricos, lisos em rica filigranem mourisca.
- Chave grande do sacr�rio principal da igreja matriz.
- Par de brincos de Nossa Senhora das Dores e pequenas joias e pedras semipreciosas
- Escapul�rio com corrente de ouro, pertencente a Nossa Senhora das Dores
- Pena folheada a ouro com incrusta��es, usada por dom Pedro II (1825-1891) em Ouro Preto
- Cruz de Malta com rubis e brilhantes. In�cio do s�culo 18