Marco temporal: os ritos de Bras�lia que amedrontam aldeias em Minas
Enquanto institui��es n�o ind�genas travam batalha no Planalto Central sobre tese que limita direito de povos origin�rios, etnia v� nova amea�a contra sua gente
Homens e mulheres de origem ind�gena de S�o Jo�o das Miss�es fecham rodovia em protesto contra o marco temporal, que divide Poderes da Rep�blica na distante Bras�lia (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
S�o Jo�o das Miss�es, Janu�ria e Itacarambi - Centenas de xakriab�s de diferentes gera��es, v�rios com vestimenta tradicional, cantam e dan�am em longas rodas em que se ouvem de forma intercalada vozes masculinas e femininas. Atravessando a rodovia, longos troncos e galhos impedem a passagem de carros que se aglomeram em pequeno n�mero na BR-135, no Norte de Minas. Esse foi o cen�rio encontrado pela reportagem do Estado de Minas em 20 de setembro, quando partia de Itacarambi para S�o Jo�o das Miss�es, o munic�pio com maior percentual de popula��o ind�gena do Sudeste brasileiro. A manifesta��o remetia � retomada do julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF), tese que relega aos ind�genas o direito apenas �s terras que j� estavam ocupadas na �poca da promulga��o da Constitui��o Federal de 1988, ampliando os percal�os em uma luta de s�culos dos povos origin�rios pela retomada de parte de seus dom�nios.
Embora tivesse como mote principal o julgamento na Suprema Corte, o protesto dos ind�genas tamb�m se atentava para as discuss�es sobre seus direitos no Legislativo. Rapidamente o tempo deu raz�o �s preocupa��es dos xakriab�s. Depois que o STF determinou, por 9 a 2, que o marco temporal � inconstitucional, a decis�o serviu para alimentar uma rusga entre a inst�ncia m�xima do Judici�rio e o Congresso Nacional. Os parlamentares criticam decis�es como a dos direitos dos ind�genas e a pautas como a descriminaliza��o do aborto e das drogas, acusando os magistrados de estarem legislando, tarefa conferida a deputados e senadores.
Uma semana depois da decis�o do STF, o Senado Federal votou e aprovou em um intervalo de apenas cinco horas um projeto de lei que reestabelece o marco temporal, na Comiss�o de Constitui��o e Justi�a (CCJ) e no plen�rio, em clara rea��o aos ministros da Suprema Corte. O texto foi encaminhado para san��o ou veto do presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT). Os xakriab�s ouvidos pela reportagem durante o protesto manifestaram seu rep�dio � medida, sempre recordando o ardor das lutas recentes que lhes conferiram direito legal ao terreno que j� ocupavam antes da chegada de colonizadores europeus.
“A luta do nosso povo teve muito sangue e at� hoje estamos brigando para ter nossa terra de volta para nossos netos, bisnetos, tataranetos. A terra � nossa m�e, � por ela que n�s lutamos, estamos firmes com nosso Deus Tup� e vamos vencer. Muito sangue foi derramado, mataram meu tio”, recorda Sant�lia Gomes. Com 58 anos de idade, todos eles vividos dentro da terra Xakriab�, ela faz refer�ncia a Rosalino Gomes, uma das tr�s lideran�as assassinadas em chacina ocorrida em 1987 a mando de um fazendeiro da regi�o. Rosalino foi morto a tiros em frente aos filhos. Um deles, Domingos, � o atual cacique-geral da reserva; o outro, Jos� Nunes, foi prefeito de S�o Jo�o das Miss�es por tr�s mandatos.
Meses ap�s a chacina, a Terra Ind�gena Xakriab� foi homologada pela Funda��o Nacional dos Povos Ind�genas (Funai). Como o fato se deu ainda em 1987, antes de a atual Constitui��o ser promulgada, a maior parte do territ�rio n�o sofreria riscos sob vig�ncia da tese do marco temporal. Conquistas posteriores, no entanto, entrariam em xeque. � o caso da Terra Ind�gena Rancharia, demarcada em 2002.
P�s na terra, cabe�a nas �guas: moradores da reserva ind�gena em S�o Jo�o das Miss�es fazem protesto pelo direito de continuar a sonhar com a volta � beira do rio (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
“Essa lei seria para os brancos”
O cacique Agenor � l�der da Aldeia Tenda, localizada na Terra Ind�gena Rancharia. Ele destaca a longa luta de seu povo pela obten��o do direito que est� na mira dos parlamentares, e lembra que a comunidade ainda sofre com amea�as, por estar na divisa da �rea demarcada e, portanto, em contato pr�ximo com fazendeiros.
“Foi uma luta muito complicada, recebemos muitas amea�as, mas conseguimos. Ainda existem amea�as, porque a gente vive encostado em uma �rea em que os fazendeiros ainda n�o foram indenizados. Quando surge uma ideia como essa (do marco temporal), que vem para exterminar e violentar nossos direitos, � triste”, lamenta.
“Temos uma grande preocupa��o, porque j� vivemos em grande dificuldade e n�o podemos perder mais direitos. Al�m disso, a natureza precisa ser respeitada e o marco temporal acabaria com isso. Essa lei seria favor�vel aos brancos, aos fazendeiros que j� ocupam nossas terras, que s�o nossas por direito. As terras s�o nossas, n�s temos a cultura, sabemos tirar o alimento dela, cuidar dela, respeitando o ambiente”, destacou o cacique.
N�s somos o povo da �gua, mas n�o temos acesso ao rio, que � nosso pai. Somos hoje um povo �rf�o de pai, temos a terra, que � nossa m�e, mas n�o temos um pai
Wasady Xakriab�, Integrante da Articula��o da Juventude Xakriab�
A luta pelo Rio S�o Francisco
“Aqui est�o as crian�as, nossos velhos, a juventude, os caciques e as lideran�as contra o marco temporal. Entendemos que esse � o marco da morte, porque querem acabar com nossas terras, nossas casas, nossos rios, nossas florestas. N�s somos o povo da �gua, mas n�o temos acesso ao rio, que � nosso pai. Somos hoje um povo �rf�o de pai, temos a terra, que � nossa m�e, mas n�o temos um pai”, diz Wasady Xakriab�, de 25 anos, integrante da Articula��o da Juventude Xakriab�.
Segundo ele, al�m de amea�ar conquistas, a tese do marco temporal impede o avan�o de reivindica��es hist�ricas. “J� tem brancos na nossa terra que n�o foi demarcada na beira do rio. Se o marco for aprovado, n�o vamos ter acesso ao rio, porque ele d� livre acesso a fazendeiros para entrar na nossa terra. O que queremos � proteger o que a gente tem e chegar ao rio”, completa.
Wasady fala sobre um dos principais pleitos dos xakriab�s: a retomada das margens do Rio S�o Francisco, originalmente ocupada pelos ind�genas, que foram gradativamente expulsos durante o processo de coloniza��o. Esse avan�o em dire��o ao curso d’�gua se veria dificultado com a aprova��o do marco temporal, mais um percal�o para concretizar uma reivindica��o que data, ao menos, do in�cio do s�culo 18.
Em 1728, a Coroa Portuguesa oficializou a “doa��o” de um terreno compreendido entre os rios Itacarambi, Perua�u e S�o Francisco, delimitado pela Serra Geral e Boa Vista aos Xakriab�. A medida foi feita em compensa��o por apoio em um embate com os Kaiap�, considerados presen�a nociva � ocupa��o colonizadora no Velho Chico.
Mas a “cess�o” pouco refletiu em direitos � ocupa��o do terreno na pr�tica. Os xakriab�s pressionaram o Estado at� que a “doa��o” fosse registrada em um cart�rio de Ouro Preto, ent�o capital mineira, em 1856. Novamente, pouco adiantou. A Terra Ind�gena Xakriab�, homologada em 1987, tem cerca de um ter�o do tamanho do terreno “cedido” e at� hoje � reivindicado pelos ind�genas com o objetivo da retomada do Rio S�o Francisco pelo povo que foi batizado como os “bons de remo”.
A natureza precisa ser respeitada e o marco temporal acabaria com isso. As terras s�o nossas, n�s temos a cultura, sabemos tirar o alimento dela, cuidar dela, respeitando o ambiente
Cacique Agenor, L�der da Aldeia Tenda, na Terra Ind�gena Rancharia�
Representantes de grupos ind�genas acompanham julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal, em Bras�lia: pouco tempo para comemorar antes de rea��o do Legislativo (foto: Nelson Jr./SCO/STF)
O direito � terra que divide Congresso, STF e ind�genas
Com todos os votos computados, o julgamento do marco temporal no Supremo Tribunal Federal (STF) foi finalizado na �ltima quarta-feira (27/9) ap�s 12 sess�es. Embora os votos dos ministros j� fossem conhecidos, as argumenta��es divergiam em rela��o a pontos espec�ficos, como a possibilidade de indenizar propriet�rios das terras em localidades demandadas pelos ind�genas.
Os magistrados entraram em um consenso para validar a indeniza��o a particulares que adquiriram terras de “boa-f�”. Mas essa decis�o � apontada por indigenistas e pesquisadores do tema como um dificultador que pode at� inviabilizar novas demarca��es de territ�rios ind�genas, j� que demandaria repasse de verbas expressivas pela Uni�o.
J� o texto do Projeto de Lei 2.903/2023, aprovado no Senado ap�s a decis�o do STF contra o marco temporal, conflita com o entendimento da Suprema Corte. Al�m de instituir a promulga��o da Constitui��o Federal, em 1988, como data determinante para validar ou n�o a demarca��o de terras ind�genas, a proposta traz outros pontos pol�micos.
Um dos principais reside na possibilidade de revisar territ�rios j� demarcados a partir da an�lise de elementos culturais da popula��o. Segundo o projeto, a an�lise dos alimentos cultivados e de altera��es dos tra�os culturais da comunidade poderia resultar na supress�o de terras j� demarcadas. Em nota, o Minist�rio dos Povos Ind�genas criticou a postura.
“N�o se pode querer definir por um padr�o �nico cultural das sociedades. Os povos ind�genas t�m um modo de vida e isso deve ser compreendido e respeitado pelas estruturas legais. N�o � verdade que hoje � proibido que os ind�genas plantem ou produzam seus alimentos, o que n�o � permitido � o arrendamento, o abuso e a explora��o dos ind�genas dentro das suas pr�prias terras para servir aos interesses dos grandes propriet�rios. Este minist�rio tem o compromisso de apoiar e estabelecer pol�ticas que criem condi��es para fortalecer a bioeconomia dos povos ind�genas e defende o usufruto exclusivo conforme prev� a Constitui��o Federal”, diz trecho do texto publicado pela pasta.
Sob a prote��o do Judici�rio
Para o doutor em hist�ria Pablo Lima, professor da Faculdade de Educa��o UFMG, a decis�o do STF protege os povos ind�genas de eventuais retrocessos aprovados no Congresso Nacional. O pesquisador ressalta que, apesar do desafio imposto pela discuss�o do marco temporal, os xakriab�s n�o devem arrefecer a luta pela retomada de terras.
“A tese do marco temporal j� foi julgada inconstitucional pelo STF, pelo simples motivo de que a Constitui��o nada fala sobre marco temporal no caso de demarca��o de terras ind�genas. Mesmo que o Congresso aprove alguma lei neste sentido, o Supremo pode derrub�-la”, avalia o professor.
Ele destaca que nenhuma lei tem poder retroativo. “Essa tese do marco temporal surgiu no caso da demarca��o da terra ind�gena Raposa Serra do Sol, em Roraima, como parte da defesa dos povos ind�genas, pois j� ocupavam o territ�rio quando da promulga��o da Constitui��o. Posteriormente, de modo capcioso, contrariando a arqueologia e a hist�ria, que comprovam uma ocupa��o ind�gena de mais de 12 mil anos em todo o territ�rio brasileiro, a tese do marco temporal passou a ser usada contra os ind�genas por parte de indiv�duos e entidades orientadas por pol�ticas de direita e extrema-direita, amea�ando a exist�ncia de territ�rios ocupados ap�s 1988”, acrescenta Pablo Lima.
E ele prev� que esse ser� mais um obst�culo transposto pelos xakriab�s. “Acredito que a luta deles pela retomada de territ�rios, incluindo as margens do Rio S�o Francisco e o pr�prio rio, vai continuar, pois esse � um povo organizado politicamente, instru�do academicamente e preparado para enfrentar seus advers�rios e inimigos”.
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