
“Um dia, enquanto eu estava tomando banho, eu pensei nas pessoas que perguntam por que os Xakriab� n�o sabem nadar: ‘Como assim n�o sabem nadar? Voc�s n�o s�o ind�genas, voc�s n�o moram na beira do Rio S�o Francisco?’. Infelizmente, apenas um ter�o do territ�rio original foi demarcado, longe do S�o Francisco, ent�o crescemos com a aus�ncia do que n�s poder�amos viver no rio, uma aus�ncia que nos afogou.” A explica��o da deputada federal C�lia Xakriab� (PSOL) em live no festival Seres-Rios dimensiona os impactos da falta d’�gua para os ind�genas. Na reportagem de hoje da s�rie “Xakriab�: a sede de um povo”, iniciada no �ltimo domingo, o Estado de Minas mostra como a necessidade de abastecimento do povo origin�rio do Norte de Minas � tamb�m uma quest�o cultural e econ�mica.
A Terra Ind�gena Xakriab� fica em S�o Jo�o das Miss�es, munic�pio com maior percentual de popula��o ind�gena do Sudeste, e incrustado no semi�rido brasileiro. Administrar a vida entre esta��es de seca e de chuvas � uma tradi��o do povo Xakriab�, mas a situa��o tem se tornado mais complexa nas �ltimas d�cadas, com o aumento das temperaturas, o desmatamento, a seca das nascentes e a expuls�o gradativa das margens do Rio S�o Francisco.
Cerca de 80% dos mais de 10 mil ind�genas de S�o Jo�o das Miss�es vivem dentro da Terra Ind�gena Xakriab�, na zona rural da cidade. E � l� onde a situa��o do abastecimento � mais cr�tica. A equipe do Estado de Minas circulou pela reserva em setembro, quando os moradores da regi�o j� contavam cinco meses sem chuvas.
Nessa situa��o, as cisternas usadas para armazenar �gua pluvial j� se encontravam quase todas secas e o acesso � �gua das mais de 35 aldeias da regi�o dependia de po�os artesianos e caminh�es-pipa. Medidas necess�rias, mas consideradas paliativas e de pouca efici�ncia at� mesmo por quem est� no comando da cidade.
“Esse problema n�o � de agora, mas hoje est� mais grave. N�s estamos convivendo com a seca h� 10, 15 anos e isso ainda n�o foi resolvido. Temos po�os artesianos que �s vezes abastecem 10 comunidades e quando um po�o desse d� um problema � o caos para todos n�s, tanto para a Sesai (Secretaria de Sa�de Ind�gena) quanto para o munic�pio”, afirma o prefeito de S�o Jo�o das Miss�es, Jair Cavalcante (Republicanos).
“Usamos tamb�m o caminh�o-pipa, mas ele n�o vai resolver o problema da comunidade, s� minimizar esse problema. Estamos investindo em caixa d’�gua, tubula��o, mas ainda assim a dificuldade � muito grande”, completa o gestor municipal.

Pouca �gua, muitos dias
A tentativa de amenizar os efeitos da seca na terra ind�gena conta com o esfor�o das tr�s esferas de poder. H� caminh�es-pipa, por exemplo, financiados pela prefeitura, pela Defesa Civil estadual e pelo governo federal, por meio da Secretaria de Sa�de Ind�gena.
A equipe do Estado de Minas percorreu cerca de 50 quil�metros de estrada de ch�o seguindo um desses caminh�es at� a Aldeia Vargens, onde o ve�culo abasteceria cerca de 60 casas. Em uma delas vivem Jo�o Pereira da Cruz e a Senhorinha Freire de Alckmin, um casal que mora h� quase 80 anos na regi�o.
“Nossa cisterna n�o segura a �gua da chuva. Se eu pudesse, comprava uma lona, mas n�o posso. A fam�lia aqui � pequena, temos seis pessoas e pegamos uns 600 litros d’�gua para tudo, e tem que durar pelo menos uma semana”, contabiliza Jo�o, nascido e criado na �rea. “A situa��o j� foi melhor, mas agora o 'bicho t� pegando’. Hoje a �gua que a gente bebe vem de po�o artesiano, mas nem sempre tem energia para puxar a �gua”, completa.
A conta do casal para racionar a �gua entre os seis moradores nem sempre � fechada. No caminho at� a casa do casal, havia um caminh�o-pipa quebrado, evento n�o raro diante do peso da carga e das condi��es das estradas dentro da reserva. Se o caminh�o n�o chega, os 600 litros em uma semana precisam virar 600 litros para 15 dias, por exemplo.
O risco que vem do subsolo
Vizinha do Parque Nacional Cavernas do Perua�u, a Terra Ind�gena Xakriab� tem uma forma��o mineral rica em calc�rio, o que cria mais um empecilho para o abastecimento de �gua na regi�o. Al�m de depender da disponibilidade de energia el�trica em �reas isoladas, os po�os artesianos nem sempre s�o uma alternativa que oferece l�quido de boa qualidade para consumo.
O artista ind�gena Nei Leite Xakriab�, mestre pelo Programa de P�s-gradua��o em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG, testemunha as dificuldades de abastecimento do seu povo, mesmo para quem conta com a �gua de um po�o artesiano. “Quando voc� perfura um po�o, pode ser que n�o tenha �gua e pode ser uma �gua de m� qualidade. L� em casa, quando a gente liga a torneira, assim que come�a a puxar a �gua do po�o, ela sai branca, parece que est� caindo leite, porque � uma �gua muito com muito calc�ria e n�o � tratada. As pessoas que bebem dessa �gua passam mal.”
Ant�nio Nunes Barbosa, que trabalha dirigindo caminh�es-pipa na reserva ind�gena, refor�a os riscos a que est�o sujeitas as pessoas abastecidas nessas condi��es: “Voc� coloca �gua na caixa hoje e, depois de 15 dias, ela est� com mais de um ou dois quilos de calc�rio. Isso faz muito mal, d� muito problema de rins, e tem muita gente que n�o tem filtro em casa”.
Verba federal para a crise
Em nota enviada � reportagem, a Sesai, ligada ao Minist�rio da Sa�de, informou que monitora permanentemente o territ�rio Xakriab� para oferecer solu��es para a crise h�drica. Segundo a secretaria, neste ano foram investidos cerca de R$ 14,3 milh�es na terra ind�gena.
Esse total inclui, segundo a Sesai, mais de R$ 940 mil destinados para o estabelecimento de energia el�trica; cerca de R$ 200 mil para o fornecimento de �gua por meio de caminh�es-pipa; e aproximadamente R$ 428 mil para a aquisi��o de medicamentos. A cidade de S�o Jo�o das Miss�es � atendida pelo Distritos Sanit�rios Especiais Ind�genas (DSEI) Minas Gerais e Esp�rito Santo, que tem um or�amento total de R$ 22 milh�es para 2023.

Como a etnia for�ada a escapar por anos re�ne for�as para reagir
O processo de coloniza��o da regi�o do Norte de Minas se deu �s margens do Rio S�o Francisco. Seja pelo contato com europeus, bandeirantes ou posseiros, os quase quatro s�culos de conviv�ncia dos Xakriab� com n�o-ind�genas significou um afastamento das margens do curso d’�gua que ocupava um papel fundamental na cultura do povo. O ceramista Nei Leite Xakriab�, mestre pelo Programa de P�s-gradua��o em Artes da Escola de Belas Artes da UFMG, conta como a dist�ncia do Velho Chico influi no aculturamento do povo origin�rio do Norte de Minas.
“Os xakriab�s eram reconhecidos pelos outros povos como os ‘bons de remo’, por conta dessa rela��o que nossa gente tinha com o Rio S�o Francisco. S� que, com as invas�es que foram tendo, fomos sendo expulsos das margens do rio, porque essas margens eram as �reas de terra mais f�rteis para a pr�tica pastoril”, relata o artista ind�gena.
Segundo ele, a expuls�o da etnia das barrancas do Velho Chico � um processo hist�rico e progressivo. “O pessoal vinha invadindo, cercando, plantando e expulsando a gente. Isso � uma coisa recente assim n�o deve ter uns 100, 150 anos. Ent�o a gente foi sendo expulso dessas terras”, conta Nei Leite.
Os Xakriab� reivindicam o retorno �s margens do Velho Chico a partir do documento de uma “doa��o” feita pela Coroa Portuguesa no s�culo 18, estabelecendo o S�o Francisco como um dos limites da terra � qual os ind�genas t�m direito. A atual �rea demarcada, al�m de distante do rio, representa cerca de um ter�o da �rea doada em 1728 e registrada em cart�rio em Ouro Preto em 1856.
Di�spora movida a poder e viol�ncia
O prefeito de S�o Jo�o das Miss�es, onde se situa a terra demarcada do povo Xakriab�, avalia ser importante sempre destacar que a di�spora de seu povo se deu de forma for�ada e n�o por uma migra��o desejada pelos xakriab�s. Jair Cavalcante (Republicanos) cita mudan�as no modo de vida dos ind�genas pela varia��o geogr�fica, mas ressalta que o S�o Francisco ainda � elemento importante para a cultura do grupo.
“Esse distanciamento da comunidade do Rio S�o Francisco se deu por causa da press�o, das pessoas de poder. N�o foi porque o ind�gena quis. As pessoas, que seriam os coron�is, umas pessoas de grande poder, se apossaram dessa margem do rio que era onde tinha abund�ncia. A comunidade ind�gena acabou sendo escanteada para aquela parte mais de geral, de caatinga, que � onde � que a gente se centraliza hoje”, conta.
O gestor municipal afirma que a situa��o interfere na cultura de sua gente. “Na cultura alimentar, do plantio dos alimentos. Mas a cultura tradicional do povo continua”, disse.
Amanh�: Pr�ticas ancestrais ajudam a manter viva a cultura xakriab�
Reportagem especial
Com as reportagens publicadas hoje, a s�rie “Xakriab�: a sede de um povo” chega a seu terceiro dia. Nas edi��es anteriores dispon�veis para leitura em em.com.br, o Estado de Minas contou a realidade dessa comunidade, hoje 80% da popula��o de S�o Jo�o das Miss�es, suas origens e o hist�rico de viola��es que sofreu desde os primeiros contatos com o colonizador at� a fixa��o na terra atualmente demarcada. Mostrou ainda a manifesta��o dos xakriab�s contra o marco temporal e a preocupa��o com os ritos em Bras�lia que podem limitar seus direitos.