Na quinta-feira 19 de setembro, um porco ficou famoso na Venezuela. Naquela noite, membros da Pol�cia Nacional Bolivariana detiveram Jos� Guillermo Mendoza, um trabalhador gr�fico que teve de dormir na sede do Servi�o Bolivariano de Intelig�ncia Nacional (Sebin), a pol�cia pol�tica do chavismo, por transportar 100 encartes publicit�rios com a figura de um homem com cabe�a de su�no. Para as autoridades, aquilo era "material subversivo".
Os encartes seriam inseridos na caixa do disco Ministro, qual � o seu trabalho? Um estranho tributo ao punk venezuelano, iniciativa de ONGs de defesa dos direitos humanos que pediram ao grupo musical Agente Extra�o uma vers�o de 14 m�sicas de bandas venezuelanas emblem�ticas dos anos 80 e 90.
No encarte aparecem tr�s homens atr�s de uma mesa vermelha. Diante deles h� microfones, como se uma entrevista coletiva fosse come�ar. O homem no centro tem a apar�ncia de um ser humano, mas a cabe�a de um porco rosado com boina vermelha. Veste um terno azul em cuja lapela, do lado esquerdo, carrega um punhado de d�lares e, a partir dos ombros, est�o ligados v�rios cabos el�tricos. � uma alus�o aos "enchufados", termo que significa "conectado" e � usado para pessoas pr�ximas do poder.
Do seu lado direito est� um homem com roupa e capacete de motoqueiro. Usa �culos escuros e uma m�scara no queixo. Tem um r�dio pendurado no ombro. Seu rosto lembra os agentes da Operaci�n de Liberaci�n del Pueblo (OLP), grupo que se vendeu como mecanismo para acabar com a delinqu�ncia e acabou sendo acusado de execu��es extrajudiciais. � esquerda, h� um outro homem armado. Ele usa colete e boina vermelhos, alus�o aos trajes de alguns seguidores do oficialismo.
Na mesa, h� um busto de um militar usando um uniforme camuflado. Tem uma verruga na testa. Parece Hugo Ch�vez. Ao seu lado, um boneco pequeno, com os bra�os levantados, que representaria o ex-presidente Carlos Andr�s P�rez (conservador que governou de 1989 a 1993 e de 1974 a 1979).
No encarte, h� ainda um cacho de bananas, que na Venezuela significam as oportunidades de trabalho f�cil gra�as � burocracia governamental. Aparecem tamb�m uma caveira, v�rias pistolas, cartuchos de balas, granadas de g�s lacrimog�neo vazias e a figura de um beb� de pl�stico vestido de azul e desmembrado.
Para o Programa de Educa��o em Direitos Humanos A��o (Provea), uma das ONGs promotoras do disco, o encarte diz muito sobre o estado da democracia venezuelana. � um paradoxo que um tributo ao punk e ao rock venezuelanos por can��es irreverentes de 30 anos atr�s tenha se tornado not�cia porque as letras que denunciam viola��es de direitos humanos, anteriores ao chavismo, continuam vigentes. Por isso, um livro, que tamb�m estava no carro de Mendoza e era levado da gr�fica para a Provea, se chama Educaci�n Anterior: uma hist�ria inacabada do punk venezuelano. Questionado pela reportagem, o governo n�o respondeu sobre essas acusa��es.
Na Venezuela, n�o acabaram as deten��es arbitr�rias e as execu��es extrajudiciais. O relat�rio do Alto-Comissariado das Na��es Unidas para os Direitos Humanos, publicado em 4 de julho, registra 66 mortes, entre janeiro e maio, em protestos e indica que "muitos manifestantes foram detidos arbitrariamente, maltratados ou torturados". Com rela��o �s execu��es extrajudiciais, o documento informa que o Alto-Comissariado entrevistou parentes de 20 jovens mortos entre junho de 2018 e abril deste ano pelas For�as de A��es Especiais (Faes) da Pol�cia Nacional Bolivariana, uma esp�cie de tropa de elite conhecida pela trucul�ncia. As autoridades classificam as mortes violentas como "resist�ncia � autoridade".
Em 27 de setembro, uma noite de sexta-feira, no bar Java's, um grupo de jovens e alguns adultos se re�ne para tomar cerveja e ouvir punk. Aguarda a banda Curetaje, que, desde sua cria��o, rende tributo ao grupo The Cure. O bar tem um terra�o pequeno ao ar livre e um min�sculo espa�o reservado para os m�sicos. Surpreende ver como cabem ali todos os interessados em escutar o grupo. Cada pessoa bem apertada com seu copo de cerveja na m�o paga um pre�o equivalente a US$ 0,75 (no mercado paralelo).
Nada parece clandestino nem proibido. Pelo contr�rio. Na entrada, h� sete mesas e, �s 20h25, apenas uma est� vazia. H� magros, gordos, loiras, punks, senhores da chamada "terceira idade" vestindo-se como jovens e tipos "normais" que parecem ter sa�do de uma reparti��o p�blica e buscam algum momento de paz.
O ambiente parece familiar. E � o que diz Dary Quitian, propriet�ria do bar h� 12 anos. Oriunda de Cali, na Col�mbia, ela chegou � Venezuela h� 40 anos e, mesmo agora, com toda sua fam�lia no exterior, garante que n�o parte porque ama viver no pa�s.
"Minha fortaleza est� em Deus, pai do Universo. A ele pe�o sempre que venham pessoas alegres, felizes e pr�speras ao meu bar e as leve em paz de volta para casa, quando saem � noite. Talvez em n�vel pol�tico, a m�sica que se escute aqui n�o tenha maior impacto, mas tem no plano individual. Porque produz alegria e isso traz bem-estar ao ser humano."
Uma mulher com um corpete negro, saia com babados preto e branco, passeia pelo local. Seu cabelo est� preso com duas marias-chiquinhas. Parece uma menina, mas suas altas botas militares de couro a delatam. Algumas pessoas pedem para tirar uma foto ao lado dela na frente do grafite onde est� escrito "GNB + colectivos asesinos" (refer�ncia � Guarda Nacional Bolivariana e a grupos paramilitares chavistas). Ela aceita. Chama-se Ingrid Dee e � vocalista da banda Curetaje, formada h� apenas dois anos. Ingrid, de 52 anos, j� � conhecida. Foi a primeira vocalista do grupo Zapato 3, quando tinha 16 anos.
Ela conta que � tradutora de alem�o e antes ganhava a vida como gerente cultural. Esclarece que as m�sicas n�o s�o de protesto, mas representam uma v�lvula de escape. "Aqui, me liberto do estresse, da infla��o, do fato de n�o haver comida, rem�dios. Esta � minha terapia, minha maneira de sobreviver. Uma pequena bolha que me permite cantar o amor."
Restri��o
A banda para de tocar ap�s a primeira m�sica. H� um movimento estranho no local e percebem-se luzes coloridas de uma patrulha policial diante do bar. Victor Drax, vocalista e baixista do Curetaje, diz ser a primeira vez que uma apresenta��o � interrompida. Relata que a pol�cia exigiu o fim do show, pois n�o havia autoriza��o para se apresentar ao vivo.
Ele tamb�m n�o acha que o seu grupo divulgue uma mensagem censur�vel. Questionado sobre a raz�o para o governo ter interesse em parar um concerto com um alcance t�o pequeno, Drax diz que esta � uma conduta t�pica dos regimes totalit�rios. "Eles t�m de demonstrar que podem prender qualquer pessoa, onde quer que esteja e quando bem entenderem, pois seu estilo � paternalista e querem controlar at� o lazer dos cidad�os."
Gustavo Le�n, guitarrista da banda La Nueva Tierra, considera esta a primeira ditadura do s�culo 21. "Por que nos esfor�amos em fazer isso? Porque somos artistas, porque os protestos de rua s�o organizados pelos pol�ticos, mas n�s, como criadores, respondemos com o cora��o. Protestamos contra o sistema com a m�sica porque n�o carregamos armas, mas guitarras", afirmou.
Essa identifica��o faz com que Luis Fern�ndez, de 63 anos, esteja sentado no bar com seus filhos de 27 e 13 anos. "Isso que estamos vivendo � in�dito. N�o h� modelos que consigam explicar. Francamente, n�o acredito que o concerto seja algo subversivo, mas para o governo sempre ser�, pois os artistas s�o irredut�veis. Eles nos ensinam que n�o devemos nos submeter, nem nos acovardar. Porque, embora todas as ditaduras tenham tentado acabar com a cultura, jamais conseguiram, porque ela � intr�nseca do ser humano." Coincid�ncia ou n�o, logo depois, a m�sica volta a soar.
No pr�ximo s�bado, 19, um tributo ao punk venezuelano ser� executado no Festival Novas Bandas. L�, soar�o as m�sicas das emblem�ticas bandas Sentimiento Muerto, Desorden Publico, 4to Reich, Toque de Queda, Gladys Cordero, Deskarriados, Psh-Psh, Apatia No, La Leche, Primero Venezuela, V�ctimas de la Democracia. O material faz parte do projeto "M�sica por Rem�dios", que oferecer� aos que forem ao show medicamentos para doen�as cr�nicas, hoje escassos no pa�s.
Ernesto Rojas � vocalista e baixista da banda Agente Extra�o. Ele se identifica como um m�sico que se empenhou em tocar de ouvido desde os 13 anos e sobrevive como eletricista, com o m�nimo para comer. "Claro que existe medo e, quando fazemos esse tributo, estamos levantando a voz pelo que estamos passando. Basta entrar no metr� para ver a deteriora��o. Caracas est� suja e nauseabunda e, �s vezes, n�o temos o que comer. � isso que todos os venezuelanos est�o vivendo", diz Rojas. "Ent�o, voc� pergunta: o que mais v�o nos tirar? Eles nos tirar�o a voz? E ent�o voc� entende que s� resta a possibilidade de elevar a voz, dizer o que estamos sofrendo. Sim, temos medo, mas temos que fazer isso pelos nossos filhos. Do contr�rio, que pa�s vamos deixar para eles?" As informa��es s�o do jornal O Estado de S. Paulo.
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