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Estado de Minas AFEGANIST�O

'Deus decidir� se me perdoa ou n�o': o chocante relato de um traficante de pessoas

Para escapar da viol�ncia e da pobreza, milhares de homens deixam o Afeganist�o todos os meses em busca de uma vida melhor. Muitos pagam milhares de d�lares a contrabandistas para chegar � Europa. A BBC conversou com um traficante, seus clientes e parentes sobre esse neg�cio ilegal.


17/11/2020 13:30 - atualizado 17/11/2020 16:30


Noor é traficante de pessoas
Noor � traficante de pessoas (foto: Elham Noor)

Antes de entrar no barco para fazer a travessia clandestina, Shafiullah telefonou para sua fam�lia no Afeganist�o para dizer que estava bem e a caminho. Era a �ltima vez que teriam not�cias dele.

A balsa que os contrabandistas escolheram para transportar carga humana %u2015 incluindo pelo menos 32 afeg�os, sete paquistaneses e um iraniano %u2015 afundou no Lago Van, na Turquia, em junho. Muitos ainda seguem desaparecidos.

As autoridades turcas disseram � BBC que alguns corpos podem estar 100 metros abaixo da superf�cie, o que dificultaria seu resgate.

Pelo menos quatro dos que se acredita terem morrido %u2015 incluindo Shafiullah %u2015 estavam em uma balsa contratada por um contrabandista que concordou em falar com o servi�o de not�cias em afeg�o da BBC sob condi��o de anonimato.

Elham Noor (nome fict�cio) contou como conduz seus neg�cios ilegais e como se sente quando seus clientes morrem durante essa jornada perigosa, em busca de uma vida melhor.


Traficante de seres humanos 'Elham Noor' ganha até US$ 3,5 mil de lucro para cada migrante que chega à Itália, mas alguns nunca chegam ao seu destino
Traficante de seres humanos 'Elham Noor' ganha at� US$ 3,5 mil de lucro para cada migrante que chega � It�lia, mas alguns nunca chegam ao seu destino (foto: Elham Noor)

Risco e culpa

A BBC perguntou a Noor se ele se sentia culpado pelas pessoas que se afogaram ou mesmo respons�vel por suas mortes.

"D�i quando a fam�lia me pergunta sobre seus entes queridos. Dois dos corpos foram recuperados do barco, enquanto dois ainda est�o desaparecidos", diz o contrabandista.

"Eles eram muito jovens e procuravam seguran�a e um futuro melhor, que � um direito de todas as pessoas, penso eu", acrescenta.

Mas embora expresse tristeza pelas mortes, Noor n�o aceita responsabilidade pela trag�dia.

"Pedi desculpas muitas vezes �s fam�lias, falando com elas regularmente", diz ele. "Mas elas sabem que essa n�o era minha inten��o — eu disse claramente no in�cio que tudo pode acontecer no caminho."

"Eles (migrantes) podem ser presos e deportados pela pol�cia, sequestrados por militantes e at� morrer em acidentes. E aceitaram isso", insistiu. "Deus vai decidir se vai me perdoar ou n�o."


Migrantes cruzam Lago Van para evitar bloqueios policiais, mas alguns barcos não conseguem %u2014 este virou em dezembro de 2019
Migrantes cruzam Lago Van para evitar bloqueios policiais, mas alguns barcos n�o conseguem %u2014 este virou em dezembro de 2019 (foto: Getty Images)

Crime organizado

Noor � um dos muitos contrabandistas que operam abertamente na capital afeg�, Cabul. Ele afirma ter uma alta taxa de sucesso no envio de pessoas para a It�lia, Fran�a e Reino Unido devido �s suas liga��es bem estabelecidas com outros criminosos.

"O contrabando n�o � um neg�cio individual, mas uma grande rede. Temos conex�es entre n�s. Mas n�o vou com os migrantes — tudo � organizado por telefone", explica.

E n�o h� falta de clientes para Noor, com tantos afeg�os desesperados para deixar seu pa�s: segundo a ONU, 2,7 milh�es de afeg�os est�o atualmente vivendo no exterior como refugiados — atr�s apenas da S�ria e da Venezuela como pa�s de origem dos migrantes.

Na verdade, Noor n�o precisa anunciar seus servi�os — seus clientes ligam para ele e ele se sai muito bem contando apenas com o boca a boca. Os jovens afeg�os que buscam fazer a viagem geralmente entram em contato com um traficante que j� enviou outra pessoa de sua regi�o, e Noor est� neste neg�cio h� muito tempo.

Mas apenas uma pequena percentagem dos que tentam chegar � Europa consegue ter sucesso na primeira tentativa, e alguns at� desaparecem para sempre.


Hazrat Shah (à direita) fugiu do Talibã no Afeganistão e atualmente está tentando chegar à Itália
Hazrat Shah (� direita) fugiu do Talib� no Afeganist�o e atualmente est� tentando chegar � It�lia (foto: Hazrat Shah)

'Queremos ver seu corpo'

"Sab�amos que a viagem era perigosa, mas n�o prev�amos isso", diz o tio de Shafiullah, Sher Afzal, � BBC.

Ele est� de luto, mas � um luto estranho e vazio que carece de certezas — Shafiullah � um dos desaparecidos ap�s a trag�dia no Lago Van.

"Agora queremos ver seu cad�ver. N�o esperamos que ele esteja vivo", diz Afzal.


Noor espera abdicar de sua atividade criminosa
Noor espera abdicar de sua atividade criminosa (foto: BBC)

A fam�lia gostaria de realizar um funeral para Shaffiullah — j� houve uma cerim�nia para os dois migrantes cujos corpos foram recuperados.

O pai do contrabandista at� visitou a fam�lia com um grupo de anci�os para prestar sua homenagem.

Shafiullah deixou o Afeganist�o em junho em busca de uma vida melhor no Ocidente. Ele n�o via perspectiva de futuro na cidade de Jalalabad, no leste do pa�s, e contatou Noor para ir para a It�lia.

Ele pagou ao traficante US$ 1 mil como a primeira parcela e, junto com outros migrantes, foi levado de um lugar para outro em carros, caminh�es e �s vezes a p�.

Shafiullah cruzou o Ir� e chegou � Turquia. Foi tudo o que ele conseguiu — o telefonema do Lago Van ocorreu em 26 de junho.

Noor diz que devolveu o dinheiro � fam�lia de Shafiullah — eles confirmaram isso � BBC — e aos outros cuja viagem foi interrompida.


Noor apresentou os migrantes aos contrabandistas do campo de migrantes 'Calais Jungle', que foi demolido em outubro de 2016
Noor apresentou os migrantes aos contrabandistas do campo de migrantes 'Calais Jungle', que foi demolido em outubro de 2016 (foto: Getty Images)

Neg�cios lucrativos

A trag�dia aumentou as d�vidas de Noor sobre sua profiss�o. Ele diz que sabe que o que faz � ilegal e reconhece que h� um custo humano quando as coisas d�o errado.

Mas, para Noor, n�o � f�cil deixar a rede de contrabando para tr�s depois de ganhar tanto dinheiro com essa atividade por tantos anos.

"Cobramos US$ 1 mil do Afeganist�o para a Turquia", diz Noor. "Da Turquia � S�rvia, custa US$ 4 mil. Da� � It�lia, cobramos outros US$ 3,5 mil. S�o US$ 8,5 mil no total."

Essa � uma grande soma de dinheiro em um pa�s onde a renda m�dia per capita anual � de pouco mais de US$ 500. Noor embolsa de US$ 3 mil a US$ 3,5 mil para cada migrante que chega com sucesso � It�lia.

E tudo o que o contrabandista diz que precisa fazer � pegar o telefone, providenciar as transfer�ncias de dinheiro e pagar o suborno ocasional �s autoridades afeg�s.

Ele nunca negocia pessoalmente com algu�m que n�o seja conhecido dele, de um parente pr�ximo ou amigo. Confia, assim, em sua reputa��o para atrair clientes e tem medo de falar com estranhos.

� uma vida confort�vel (que n�o � f�cil de alcan�ar no Afeganist�o) e as armadilhas da riqueza s�o �bvias — os carros, as roupas, as casas.

A BBC entrou em contato com outro contrabandista de pessoas que decidiu desistir da atividade, mas voltou atr�s apenas um ano depois.

Abrigos


A família de Shafiuallah espera que tornar sua foto pública possa ajudar em qualquer futura identificação
A fam�lia de Shafiuallah espera que tornar sua foto p�blica possa ajudar em qualquer futura identifica��o (foto: Sher Afzal)

O contrabandista admite que os migrantes enfrentam uma viagem arriscada e ilegal sem documentos e diz que eles s�o mantidos escondidos durante o dia e removidos � noite.

Sua rede usa abrigos ao longo do caminho, em cidades como Teer�, Van (Turquia) e Istambul, diz ele.

Os viajantes s�o aconselhados a n�o levar itens valiosos como joias ou rel�gios caros que possam atrair ladr�es. Noor geralmente diz aos migrantes para n�o carregar mais de US$ 100 em dinheiro.

"N�o assumo nenhuma responsabilidade por eles se forem pegos pela pol�cia, mas se forem sequestrados por militantes ou grupos armados, pagamos um resgate para que sejam libertados", diz Noor.


Um bote de borracha cheio de migrantes atravessa a ilha grega de Lesvos à noite - uma das rotas favoritas para os migrantes afegãos entrarem na Europa
Um bote de borracha cheio de migrantes atravessa a ilha grega de Lesvos � noite - uma das rotas favoritas para os migrantes afeg�os entrarem na Europa (foto: Getty Images)

Dependendo da intensidade das patrulhas policiais, a viagem at� a Turquia pode variar de uma semana a dois meses. O pa�s � um importante centro para os afeg�os em viagem para a Europa.

Fugindo do Talib�

Um migrante que passou por Istambul a caminho do Ocidente foi Hazrat Shah, um ex-soldado do Ex�rcito afeg�o.

Depois que sua vila passou para o controle do grupo extremista Talib�, o jovem de 25 anos temia repres�lia contra sua fam�lia, ent�o desertou de sua unidade e decidiu deixar o pa�s.

Ele partiu de Nangarhar, no leste do Afeganist�o, no in�cio deste ano e contou � BBC sobre sua tentativa de chegar � It�lia nesta rota t�o conhecida.

Embora n�o tenha sido enviado por Noor, ele tem muito a dizer sobre os traficantes de pessoas.


Fronteira entre Bósnia e Croácia foi palco de muitos confrontos entre polícia e migrantes
Fronteira entre B�snia e Cro�cia foi palco de muitos confrontos entre pol�cia e migrantes (foto: Getty Images)

"Depois de chegar � fronteira (entre a Turquia e o Ir�), demorou quase um m�s para chegar a Istambul. Fiquei l� por alguns meses e trabalhei em hot�is para ganhar dinheiro para pagar os contrabandistas", diz Shah � BBC.

A rota do Mediterr�neo oriental, que envolve a travessia do mar entre a Turquia e a Gr�cia, � particularmente popular entre os afeg�os.

A ag�ncia de fronteira europeia estima que nos primeiros oito meses deste ano, mais de 14 mil pessoas cruzaram para a Europa por essa rota — e quase um quarto dessas pessoas s�o afeg�s.

Foi dif�cil ir da Gr�cia para a B�snia — Shah foi deportado v�rias vezes antes de chegar, mas suas tentativas de ir al�m daquele pa�s fracassaram repetidamente.

"� horr�vel. Na �ltima tentativa tamb�m me machuquei. A pol�cia me espancou muito. Tiraram nossos sapatos e macac�es. Fomos obrigados a voltar no escuro. � t�o dif�cil passar", conta.


Autoridades turcas têm lutado para recuperar corpos de todas as vítimas que morreram depois que barco de Shafiullah virou
Autoridades turcas t�m lutado para recuperar corpos de todas as v�timas que morreram depois que barco de Shafiullah virou (foto: Getty Images)

'Contrabandistas n�o podem ajudar'

Ele n�o tem certeza se chegar� � It�lia, mas Shah n�o est� com humor para ligar para os contrabandistas de pessoas no Afeganist�o em busca de ajuda.

Shah diz que os contrabandistas simplesmente desaparecem ao primeiro sinal de problema, e muitos migrantes que se lan�am nessa jornada lamentam ter confiado neles.

"Existe a possibilidade de voc� morrer ou ser ferido ou abduzido em todas as fases da jornada — e ningu�m pode ajud�-lo", diz ele. "N�o � poss�vel para eles (os contrabandistas) ajudarem porque t�m medo da pol�cia. � um jogo sujo".

Ele viveu em condi��es horr�veis por muitos meses e viu muitos morrerem no caminho.

"Voc� recebe muito pouca comida e �gua para se manter vivo. Vi pessoas morrendo de sede sem �gua. Outros migrantes n�o podem ajud�-los porque se voc� der �gua para eles, voc� fica na mesma situa��o."

De acordo com a OIM (Organiza��o Internacional para Migra��es), uma ag�ncia da ONU, pelo menos 672 pessoas morreram no Mediterr�neo neste ano. Isso ocorre principalmente porque s�o for�adas a viajar em barcos superlotados e em meio a condi��es clim�ticas adversas.

Muitas outras, como Shafiullah, morrem antes de chegar ao Mediterr�neo e nem mesmo s�o inclu�das nesta estat�stica.

"Muitas pessoas morrem, com certeza. A menos que voc� esteja realmente desesperado, n�o deveria fazer essa jornada perigosa", diz Shah.


Alguns dos migrantes que viajaram com Shafiullah estão enterrados neste cemitério perto do Lago Van
Alguns dos migrantes que viajaram com Shafiullah est�o enterrados neste cemit�rio perto do Lago Van (foto: Getty Images)

Mas n�o faltam afeg�os desesperados.

Ap�s uma grande explos�o perto da embaixada alem� em Cabul em 2017, que matou pelo menos 150 pessoas, a maioria dos pa�ses europeus fechou seus centros de solicita��o de vistos no Afeganist�o, o que torna as viagens legais para a Europa muito problem�ticas.

Isso s� aumentou o fluxo de clientes que procuram os servi�os de contrabandistas como Noor, apesar dos riscos.


Shafiullah, de 16 anos, pagou a Noor para levá-lo para a Europa
Shafiullah, de 16 anos, pagou a Noor para lev�-lo para a Europa (foto: Sher Afzal)

De migrante a traficante

O pr�prio Noor j� esteve em uma situa��o semelhante.

Como tantos outros, ele tamb�m sonhou em viver uma vida confort�vel no Reino Unido e se lan�ou na mesma jornada quando tinha apenas 14 anos. Seu pai pagou US$ 5 mil a contrabandistas.

"Ainda me lembro das dificuldades da minha jornada, principalmente na Bulg�ria, onde ficamos escondidos nos trens — fui at� for�ado a pular de um trem em movimento", lembra Noor.

Ele presenciou muitas mortes antes de chegar � cidade francesa de Calais. L�, percebeu uma oportunidade de ganhar dinheiro f�cil.

"Estava apresentando os migrantes a outros contrabandistas no campo de Calais. Recebi uma comiss�o de 100 euros por migrante", conta.

Foi assim que Noor come�ou no neg�cio de tr�fico de pessoas.

Ele chegou ao Reino Unido ilegalmente e continuou a trabalhar com contrabandistas. Mas diz que voltou ao Afeganist�o aos 21 anos porque percebeu que estava sendo procurado pela pol�cia.

"Como j� era famoso enquanto fazia esse neg�cio no Reino Unido, muitos me procuraram e buscaram minha ajuda quando voltei", diz.

Alguns dos migrantes que conseguiram chegar � Europa por meio da rede de Noor passaram seus dados para outras pessoas, e sua rede e reputa��o cresceram proporcionalmente.

"Apesar da incerteza do caminho dif�cil, as pessoas ainda confiam em mim para lev�-las para fora do pa�s", diz ele.

Cerca de 100 daqueles que confiam em Noor para lev�-los com seguran�a a uma vida melhor est�o atualmente a caminho da Europa, mas Noor diz que estes ser�o os �ltimos.

Ele diz que est� desistindo do neg�cio para sempre, t�o logo saiba que os migrantes cheguem com seguran�a ao seu destino.


Migrantes devem estar preparados para tudo, incluindo caminhar grandes distâncias
Migrantes devem estar preparados para tudo, incluindo caminhar grandes dist�ncias (foto: Getty Images)

Fim da linha?

A trag�dia no lago Van afetou a consci�ncia de Noor. Ele diz que os quatro que estavam no barco virado s�o os �nicos clientes que ele perdeu em todos os seus anos como traficante, e isso tem causado desentendimentos e problemas com sua fam�lia.

Agora ele quer deixar essa atividade e seu prazo para faz�-lo � at� o fim deste ano.


Tráfico de pessoas tornou Elham Noor um homem rico, mas ele mantém sua identidade sob sigilo
Tr�fico de pessoas tornou Elham Noor um homem rico, mas ele mant�m sua identidade sob sigilo (foto: Elham Noor)

Um colega dele contou � BBC, no entanto, que ficou surpreso com a decis�o de Noor e diz acreditar que o contrabandista ter� dificuldade em deixar o neg�cio para tr�s.

As pessoas continuar�o a ligar para ele nos pr�ximos anos, e a chance de ganhar dinheiro n�o ir� simplesmente desaparecer no momento em que ele desistir dessa atividade.

Resta saber se Noor conseguir� cumprir o que prometeu a si mesmo.

Mas, com ou sem ele, o tr�fico humano certamente continuar�.

Em Jalalabad, os preparativos j� est�o em andamento. Apesar de saber o que aconteceu com Shafiullah, dois de seus parentes est�o prestes a embarcar nesta viagem perigosa, na esperan�a de chegar � Europa.

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