
Em 1994, o m�dico americano Tony Cicoria foi atingido por um raio — e isso teve um curioso efeito sobre ele.
N�o apenas desenvolveu uma vontade insaci�vel de ouvir m�sica tocada ao piano, algo que nunca havia despertado seu interesse antes, como acabou se tornando pianista e compondo sua pr�pria melodia.
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Em entrevista ao jornalista Daniel Gross, do programa de r�dio Outlook, da BBC, ele conta sua impressionante hist�ria.
Nos anos 1990, Tony Cicoria vivia com a fam�lia em uma pequena cidade chamada Oneonta, no Estado de Nova York.
Naquela �poca, sua vida era inteiramente dedicada ao trabalho como ortopedista.
"Minha vida profissional era absolutamente louca. Trabalhava de 12 a 14 horas por dia, sete dias por semana. Eu era o �nico ortopedista no condado, ent�o tudo batia na minha porta", relembra.

"Raramente tinha a chance de jantar com a minha fam�lia. Mas todas as noites, eu colocava as crian�as na cama, cantava uma m�sica antiga do Elvis para elas e acariciava suas costas. Era um momento especial para mim."
Num fim de semana de agosto de 1994, ele viajou com a mulher e os filhos para Sleepy Hollow Lake, tamb�m no Estado de Nova York, para participar de uma reuni�o de fam�lia.
"Estava um dia lindo de outono, as folhas e a folhagem ainda estavam vibrantes, uma bela paisagem, crian�as correndo por toda parte. Eu estava l� fazendo churrasco, bem ao lado do lago, e quando parei de trabalhar na churrasqueira, notei algumas gotas de chuva", recorda.
"N�o me surpreendi porque o clima no interior do Estado de Nova York pode virar rapidamente. Eu simplesmente ignorei."
Cicoria se dirigiu ent�o at� um telefone p�blico para ligar para a m�e. Foi quando aconteceu o que ele jamais poderia imaginar:
"Eu ouvi um estalo alto, um enorme raio de luz saiu do telefone, me atingiu no rosto e me jogou para tr�s como um boneco de pano."

"Parecia que eu tinha levado um coice de cavalo e voado para tr�s", acrescenta.
Experi�ncia extracorp�rea
Logo ap�s ser atingido pela descarga el�trica, ele conta que teve uma experi�ncia extracorp�rea — e achou que tinha morrido.
"Quando me virei, eu vi meu corpo estendido no ch�o, havia uma senhora esperando para usar o telefone, e eu tinha ca�do bem aos p�s dela. Ela come�ou a fazer massagem card�aca, e eu fiquei ali parado pensando: 'Que diabos est� acontecendo'."
Ele relata que conseguia ver e ouvir as pessoas, mas apesar de suas tentativas, ningu�m era capaz de v�-lo ou escut�-lo.
Acreditando que estava morto, ele diz que decidiu subir at� onde sua fam�lia estava.
"Comecei a subir as escadas e percebi que minhas pernas estavam se dissolvendo. Quando cheguei ao topo da escada, tinha me tornado uma bola de energia. Mas ainda estava muito consciente de tudo o que estava acontecendo."
"Simplesmente atravessei a parede e passei diretamente pela minha esposa que estava sentada no sof�, pintando o rosto das crian�as", diz ele, que afirma posteriormente ter confirmado essa informa��o.
"Eu estava sentindo o mais absoluto �xtase. E, de repente, isso mudou. Foi praticamente como se algu�m estalasse os dedos, e eu estava de volta a este corpo. Fui do �xtase absoluto � dor absoluta, uma dor ardente avassaladora."
Tudo indica que Cicoria havia sofrido uma breve parada card�aca.
Quando a pol�cia chegou, ele ainda estava um pouco desorientado — e se recusou a ser levado para o hospital.
"Acho que foi uma coisa realmente est�pida de se fazer. Mas na hora eu s� queria ir para casa."
Obsess�o por piano
Cicoria foi ent�o para casa, onde se recuperou por duas semanas at� voltar ao trabalho.
"Parecia que eu estava normal, pelo menos foi o que eu pensei naquele momento."
"Foi s� depois da segunda semana que comecei a ter essa vontade irresist�vel de ouvir m�sica de piano, o que era uma grande mudan�a para mim, porque n�o era algo que eu ouviria normalmente, ent�o me soou como algo meio estranho."

Mas esse desejo era t�o forte que ele precisou sair em busca de um CD de m�sica cl�ssica para piano, algo que naquela �poca n�o era t�o f�cil de encontrar em uma cidade pequena como Oneonta.
"Fui at� Albany e entrei em uma das maiores lojas de m�sica. Havia um CD que parecia pular da prateleira direto nas minhas m�os. Era Vladimir Ashkenazy tocando suas m�sicas favoritas de Chopin. N�o tive absolutamente nenhuma d�vida de que aquele era o CD que eu precisava, e comprei."
Quando ouviu o CD pela primeira vez, a conex�o foi imediata: "Eu estava l�, podia sentir a emo��o, podia sentir a paix�o da m�sica".
Ele conta que escutava o CD o dia todo — no carro, em casa, no trabalho...
"Era quase como uma droga, eu s� tinha que continuar ouvindo, ouvindo. Isso durou v�rias semanas."
"E, de repente, percebi que n�o bastava apenas ouvir aquela m�sica, tinha que ser capaz de toc�-la."
Foi quando uma das bab�s dos seus filhos comentou que ia se mudar e perguntou se poderia deixar o piano na casa dele.
"De repente, eu tinha um piano, mas n�o sabia tocar."
"Comprei todas as partituras do CD e me lembro de olhar para elas e rir, pensando: 'N�o tenho a menor ideia do que isso quer dizer, mas tudo bem'."
O sonho
Mas a obsess�o de Tony por piano ia al�m — e chegava a povoar seus sonhos.
Certo dia, ele sonhou com uma melodia que nunca havia escutado antes.
Ele estava no palco de uma sala de concertos tocando a m�sica misteriosa, quando de repente se dava conta: "Meu Deus, essa m�sica n�o � de outra pessoa, � minha".
Ao acordar sobressaltado, ele foi correndo se sentar ao piano na tentativa de reproduzir a melodia.

"Eu n�o tinha ideia de como escrever (a m�sica), e n�o tinha ideia de como tocar. Mas estava na minha cabe�a. Fiquei sentado l� por meia hora, percebi que era in�til e voltei para a cama."
"Mas daquele dia em diante, sempre que me sentava ao piano, a m�sica tocava na minha cabe�a exatamente como eu a ouvi . E continuava a tocar sem parar sempre que eu estava dirigindo, estava quieto, fazendo qualquer coisa, a m�sica do sonho tocava."
Foi ent�o que, aos 42 anos, Cicoria finalmente come�ou a ter aulas de piano.
"Nos encontr�vamos dois dias por semana, �s 5h da manh� eu estava l� (na casa da professora). Me sentia mal pela fam�lia dela, que tinha o sono interrompido, mas era o �nico hor�rio livre que t�nhamos em comum."
E a m�sica come�ou a tomar uma grande propor��o na sua vida.
"Eu levantava �s 4h da manh� todos os dias e praticava das 4h30 �s 6h30, quando tinha que sair para trabalhar. Eu fazia isso religiosamente, e quando chegava em casa, comia, colocava as crian�as na cama e voltava para o piano."
"Ent�o as crian�as, que na �poca eram pequenas, com quatro, cinco e sete anos, iam dormir comigo tocando piano e acordavam da mesma forma."
A devo��o ao piano era tamanha que chegou a abalar seu casamento.
"Minha mulher dizia que eu estava casado com o piano, e n�o com ela."
"Eu ficava no piano at� literalmente n�o conseguir enxergar mais nada. Ficava l� at� meia-noite, 1h da manh�, todas as noites. Isso realmente se tornou um abismo entre n�s", reconhece.
Mas, na cabe�a dele, ele havia sobrevivido ao acidente com o raio por uma raz�o especial: a m�sica.
"Na �poca, minha justificativa, pelo menos para mim mesmo, era: A �nica raz�o de eu estar aqui � por causa dessa m�sica. E isso fazia parte da obsess�o", explica.
Em 2004, dez anos ap�s o acidente, Tony e a mulher se divorciaram. Mas isso n�o diminui sua paix�o pela m�sica — ele continuou a ter aulas e a tocar.
'A Sonata do Raio'
Dois anos depois, o caso de Cicoria despertou o interesse do renomado neurologista e escritor brit�nico Oliver Sacks, que quis entrevist�-lo.
"Foi absolutamente incr�vel passar um dia com um g�nio, o que de fato ele era", diz Cicoria sobre Sacks, que morreu em 2015.
"No fim do nosso encontro, estou me despedindo dele, e ele olha para mim e diz: 'a m�sica do sonho passou por muitos problemas para chegar at� aqui, o m�nimo que voc� pode fazer � escrev�-la'."
A partir deste dia, ele conta que passou "cada minuto livre escrevendo a melodia". Sete meses depois, nasceu a composi��o The Lightning Sonata ("A Sonata do Raio", em tradu��o livre).
E n�o demorou muito para ele ser convidado a fazer seu primeiro concerto ao piano.

'Alucina��es Musicais'
Cicoria acabou sendo personagem do livro Alucina��es Musicais, de autoria de Oliver Sacks, em que o neurologista re�ne diversos casos cl�nicos para ilustrar a rela��o entre o c�rebro e a m�sica.
Sacks oferece uma explica��o neuroanat�mica para a s�bita revela��o do talento musical do ortopedista:
"Analisando-o de uma perspectiva neurol�gica, acho que seu c�rebro agora deve ser muito diferente do que era antes de o raio atingi-lo ou em compara��o com o que foi nos dias imediatamente seguintes ao incidente, quando os exames neurol�gicos n�o detectaram nenhum grande problema", escreveu o neurologista no livro.
"Presumivelmente estavam ocorrendo mudan�as nas semanas subsequentes, quando seu c�rebro estava se reorganizando — preparando-se, digamos, para a musicofilia."

Cicoria, de fato, se considera uma pessoa diferente depois do acidente.
E revela que depois que colocou a m�sica do sonho no papel, sentiu um certo sentimento de liberdade. Chegou, inclusive, a reatar o casamento:
"Agora h� equil�brio, onde n�o havia equil�brio antes. Eu ainda toco o tempo todo? Eu toco, mas tento fazer com que n�o seja algo invasivo."
"Passamos algum tempo juntos todas as noites quando eu chego em casa, e se eu n�o tocar naquele dia, n�o � mais o fim do mundo. E costumava ser."
Ou�a aqui (em ingl�s) a �ntegra do programa de r�dio Outlook
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