
"Ele me bateu forte duas vezes, me machucou toda, me amea�ou com faca, me arranhou, isso s� porque me pegou conversando com a nossa terapeuta de casal no Facebook", relata a carioca Elaine*.
"Ele chegou um dia e me disse que j� tinha acertado tudo com o dono de uma boate e eu iria ser garota que faz striptease", conta a potiguar Katrina*.
"Ele fazia viol�ncia psicol�gica (...) progredia com doses homeop�ticas. A cada dia testava um pouquinho mais: me chamava de burra, de gorda, de feia, de incapaz. Tudo para me desmoralizar e me fazer submissa.", relembra a paulista Ariadne*.
Imigrantes, v�timas de viol�ncia f�sica e psicol�gica praticada pelo companheiro: assim � a realidade de muitas mulheres que sonham viver um conto de fadas com um amor europeu, mas acabam v�timas dos pr�prios sonhos.
Segundo dados do Itamaraty repassados � BBC News Brasil, de janeiro de 2019 at� novembro de 2020 foram relatados 213 epis�dios de viol�ncia dom�stica e tr�fico de seres humanos com v�timas brasileiras no exterior. O n�mero verdadeiro pode ser maior, pois h� subnotifica��o de casos dessa natureza.
Mundialmente, mais da metade dessas v�timas (58%) � morta por homens pr�ximos, como pais, irm�os ou parceiros. Os maridos e ex-companheiros s�o os principais assassinos e respondem por 1 em cada 3 mortes.
Parceiros do mal
Os dados revelam que justamente no n�cleo no qual as mulheres deveriam ser mais protegidas � onde acabam por sofrer as viola��es.
A enfermeira Elaine* sabe bem disso. Ela sobreviveu � viol�ncia psicol�gica e �s agress�es f�sicas do ex-marido su��o. Ele era ciumento e a for�ava a comer ap�s as brigas como um gesto de paz.
"Ele se desculpava me empanturrando de comida. Cheguei a comer uma barra de 500g de chocolate por dia. S� no caf� da manh� eu engolia (...) mais de 1 litro de suco de laranja", recorda.
"Depois de cinco anos de casada eu pesava 120kg, quando o meu normal era 65Kg. Era tanto ressentimento, que eu gerei uma segunda pessoa dentro de mim", relembra Elaine.
Quando a brasileira decidiu fazer uma cirurgia bari�trica, de redu��o de est�mago, teve que agir em segredo porque o ex era contra. A independ�ncia dela gerou f�ria nele. O casal buscou aconselhamento, mas em novembro de 2013 Elaine* desistiu quando, al�m de sofrer agress�es psicol�gicas, apanhou duas vezes.
A enfermeira saiu da casa escoltada pela pol�cia su��a, que a ajudou a recolher os pertences. A carioca sumiu da vida do ex para salvar a pr�pria vida com dieta e exerc�cios.
Sete anos depois, 60kg mais magra e esbanjando sa�de, Elaine sente que deu a volta por cima. Oficializou o div�rcio, fez cirurgias pl�sticas, dois cursos profissionalizantes de enfermagem e terapia.
"Reconquistei a minha autoestima, a independ�ncia financeira e psicol�gica. Pago as minhas contas, gosto de namorar, viajo e sou muito bem resolvida".
A reportagem tentou contatar o ex-marido, mas n�o obteve retorno at� a publica��o. Em documentos, cuja autenticidade foi confirmada pela pol�cia, consta que a brasileira sofreu agress�es em casa.

Imigrantes vulner�veis
Nem todas as hist�rias de viol�ncia dom�stica tem um final de supera��o como a de Elaine. Brasileiras em relacionamentos com estrangeiros se enquadram em um grupo particularmente vulner�vel e desfavorecido no exterior.
A jornalista e autora Liliana Tinoco B�ckert relatou casos objetos de sua pesquisa no livro Amores Internacionais: Casei com um Estrangeiro e Agora.
"A brasileira ao emigrar perde toda uma rede de prote��o que ela tem no seu pa�s, na sua comunidade", diz B�ckert.
"Quando ela perde essa rede de contatos, ela est� exposta porque n�o tem pra quem pedir socorro. Ela n�o conhece as regras, n�o sabe se existe uma delegacia da mulher, uma casa de prote��o", acrescenta.
Respons�veis por auxiliar os brasileiros no exterior, as representa��es consulares s�o recorrentemente confrontadas com casos de imigrantes aflitas, que desconhecem seus direitos.

Segundo dados do Itamaraty, de janeiro de 2019 at� novembro de 2020 foram relatados oficialmente 213 epis�dios de viol�ncia dom�stica e tr�fico de seres humanos com v�timas brasileiras no exterior.
Katrina* � uma das v�timas que preferiu n�o denunciar o ex e, portanto, n�o entrou para as estat�sticas. Al�m de ter sido chantageada e agredida, ela sofreu um tipo peculiar de viol�ncia psicol�gica: "Doxing", que � um crime praticado on-line.
"Doxing" ocorre quando algu�m publica na internet informa��es pessoais de terceiros com inten��o maliciosa, normalmente insinuando que a dita pessoa est� solicitando sexo. Trata-se de uma viola��o ao direito � privacidade.
O ex divulgou o endere�o, telefone e fotos pessoais dela numa rede social. "Todo dia apareciam homens estranhos no port�o da minha casa, perguntado se eu era prostituta. Ele escrevia para eles no chat, se fazendo passar por mim (...). A� tirava fotos da conversa e mandava para as esposas esperando que elas fossem l� me bater", relembra.
A potiguar Katrina teve um longo hist�rico de idas e vindas com o companheiro abusivo, mas s� tomou coragem para finalmente abandonar o relacionamento quando foi pressionada por ele a se prostituir. "Ele disse que n�o queria mulher encostada na casa dele."
Ela conheceu um novo companheiro e com a ajuda dele conseguiu se afastar do ex. Atualmente, j� falando o idioma alem�o, � m�e de um beb� do segundo marido e diz ter finalmente conquistado a paz familiar que sempre sonhou.

N�o s�o raros os casos em que companheiros europeus tentam for�ar esposas brasileiras a se prostituir. Operando h� 15 anos no continente, a ONG Projeto Resgate ajuda na repatria��o de v�timas de viol�ncia e tr�fico de seres humanos e j� atendeu mais de 2.000 casos, 178 somente no �ltimo ano.
O coordenador do projeto, pastor Marco Aur�lio de Souza, explica que j� viu muitos casos em que o marido � o opressor e a explora��o acontece de maneira "caseira", sem ter uma m�fia envolvida.
"Os aliciadores s�o homens comuns, que se aproveitam dos sonhos, da fantasia, da ilus�o e da paix�o delas. Primeiro parecem um pr�ncipe encantado, montado no cavalo branco. A jovem acredita, vai e se casa. Chegando na Europa descobre que se casou com o cavalo e n�o com o pr�ncipe", lamenta.
Al�m da viol�ncia a priva��o
Colaboradora da Projeto Resgate em Zurique e acostumada a lidar com os processos de div�rcio de mulheres brasileiras, a advogada Fernanda Pontes explica que a falta de conhecimento dos seus direitos por parte das v�timas resulta em situa��es de abuso, inclusive econ�mico.
"Al�m da agress�o f�sica, sexual e psicol�gica, a opress�o econ�mica tamb�m pode caracterizar viol�ncia dom�stica, pois com ela o agressor priva ou restringe a v�tima da sua liberdade e do seu conv�vio social", explica.

"Infelizmente, esse tipo de viol�ncia pode n�o ser identificada inicialmente pela v�tima. Muitas vezes o agente a pro�be de trabalhar, de forma a impossibilitar sua independ�ncia financeira, ou simplesmente "confisca" o seu sal�rio. Nesse tipo de viol�ncia, o agressor tem o intuito de ser o �nico detentor do poder econ�mico da rela��o", explica.
Ariadne*, paulista formada em Rela��es P�blicas, foi casada com um rico financista su��o e sofreu viol�ncia psicol�gica e econ�mica. Apesar de eles terem uma filha juntos, o marido n�o a deixava estudar, nem ter acesso ao dinheiro da fam�lia, ocultando o patrim�nio.
"Ele s� me dava 200 francos por m�s para fazer as compras do supermercado. Tive que usar dinheiro de economias que eu trouxe do Brasil para comprar roupa de inverno pra mim", recorda.
Foi com a ajuda da advogada Fernanda que Ariadne conseguiu se divorciar, mas n�o obteve pens�o coerente com seu n�vel educacional. O juiz ainda negou a ela a liberdade de poder voltar ao Brasil, onde esperava retomar a bem-sucedida carreira corporativa. O regime de guarda compartilhada a impede de sair da Su��a sem a permiss�o do ex-marido.
Como �s vezes o ex-marido atrasa a pens�o, ela precisa fazer bicos de faxineira para sobreviver. Apesar da nova realidade profissional, Ariadne n�o desiste. "Estou fazendo cursos e vou me reposicionar", planeja.
Depend�ncia e vulnerabilidade
Valentina Volpe, especialista baseada em Bangcoc atuando no programa das Na��es Unidas que lida com migra��o e viol�ncia contra as mulheres, aponta semelhan�as nas experi�ncias que estrangeiras de todos os n�veis sociais e educacionais compartilham.
Sejam documentadas (na condi��o de esposas) ou indocumentadas (como trabalhadoras informais), mulheres imigrantes sofrem com o isolamento que experimentam longe de suas culturas.
"Para muitas delas essa � a maior quest�o, que elas n�o t�m uma estrutura social de apoio. Basicamente n�o sabem onde pedir por ajuda. N�o tem maneiras de comparar o que � normal, o que deveria ser feito, qual � a lei, como podem ser protegidas", afirma.
Inkeri Von Hase, especialista da ONU para pol�ticas focadas na migra��o, concorda que mulheres imigrantes est�o igualmente vulner�veis.
"Muitas vezes s�o as desigualdades profundamente arraigadas que motivam as mulheres a deixarem seus pa�ses (...) Elas tentam escapar rela��es de abuso quando deixam os seus pa�ses de origem, mas acabam se encontrando muito mais suscet�veis � viol�ncia, especialmente se n�o est�o documentadas", pondera Von Hase.
Segundo Von Hase, as pol�ticas migrat�rias restritivas em muitos casos deixam as mulheres condicionalmente dependentes dos maridos e deveriam ser liberalizadas.
"Muitas vezes se uma mulher imigra pelo marido, o direito dela de permanecer no local depende do tipo de permiss�o de resid�ncia dele. Se h� abuso nessa rela��o, � muito improv�vel que a mulher busque ajuda ou abandone essa rela��o abusiva, porque ela sabe que isso pode resultar em ela ser deportada", diz Von Hase.
"A mulher imigrante n�o encontra ajuda porque n�o tem os mesmos direitos das cidad�s na pr�tica. Se ela tem filhos com o marido, ela n�o consegue simplesmente deix�-lo. Essa mulher se submete a muitas coisas porque n�o tem como ir embora. Ela est� praticamente amarrada a esse homem, enquanto n�o obtiver a pr�pria independ�ncia financeira", conclui Liliana Tinoco B�ckert.
*Os nomes das entrevistadas foram alterados a fim de evitar que elas fossem identificadas.
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