
Em uma decis�o anunciada como hist�rica, a cidade americana de Evanston, no Estado de Illinois, tornou-se neste m�s a primeira dos Estados Unidos a oferecer repara��es financeiras a moradores negros, em um programa que poder� servir de modelo a iniciativas do tipo no resto do pa�s.
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Uma resolu��o aprovada em mar�o pela C�mara Municipal determinou a distribui��o dos primeiros recursos de um fundo de repara��es criado em 2019 e que prev� um total de US$ 10 milh�es (cerca de R$ 57 milh�es) ao longo de dez anos.
Nesta primeira fase, o foco ser� em moradia, com US$ 400 mil (cerca de R$ 2,28 milh�es) distribu�dos a 16 moradores negros cujas fam�lias tenham sido afetadas por pol�ticas de habita��o racistas em vigor na cidade entre 1919 e 1969 ou que sofreram discrimina��o nesse setor nos anos posteriores.
Cada fam�lia receber� subs�dios de US$ 25 mil (cerca de R$ 142,7 mil) para ajudar na compra ou reforma de im�vel.
Apesar de tamb�m aceitar doa��es, a iniciativa ser� financiada principalmente com impostos sobre a venda de maconha para uso recreativo, que foi legalizada no Estado no ano passado.
"Isso � justi�a po�tica", diz � Ron Daniels, um dos l�deres da National African American Reparations Commission (Comiss�o Nacional Afro-Americana de Repara��es, ou Naarc, na sigla em ingl�s), � BBC News Brasil.
"Porque a guerra �s drogas, incluindo a maconha, teve como alvo a popula��o negra", afirma Daniels, cuja organiza��o participou da elabora��o do plano.

A legaliza��o da maconha vem avan�ando nos Estados Unidos, onde 36 dos 50 Estados permitem o uso medicinal e 15 tamb�m o uso recreativo. Dados hist�ricos mostram o impacto negativo que a criminaliza��o teve em comunidades negras.
Kamm Howard, um dos l�deres da National Coalition of Blacks for Reparations in America (Coaliz�o Nacional de Negros por Repara��es na Am�rica, ou N'Cobra, na sigla em ingl�s), que tamb�m ajudou a elaborar o plano de Evanston, cita estudos segundo os quais, apesar de negros e brancos usarem maconha na mesma propor��o, a probabilidade de usu�rios negros serem detidos � mais alta.
"(Moradores negros) foram mais policiados e mais encarcerados e sofreram todos os preju�zos associados a ter uma ficha policial", diz Howard � BBC News Brasil.
Desigualdades econ�micas
O an�ncio sobre o programa em Evanston ocorre em um momento em que o debate sobre repara��es volta a ganhar for�a no pa�s.
O interesse, que j� vinha crescendo, aumentou ainda mais no ano passado, em meio a protestos contra injusti�a racial e diante da pandemia de covid-19 e da crise econ�mica, que afetaram desproporcionalmente a popula��o negra e deixaram claras as disparidades raciais.
Mas a ideia de que o governo deveria pagar compensa��o financeira � popula��o negra pelos danos causados pela escravid�o � debatida nos Estados Unidos desde pelo menos o fim da Guerra Civil, em 1865, em alguns per�odos com maior �nfase do que em outros.
O impacto cumulativo de dois s�culos e meio de escravid�o e das d�cadas de segrega��o, terror racial e pol�ticas discriminat�rias que se seguiram � vis�vel em desigualdades de renda e riqueza que ainda persistem. Apesar de os americanos negros atualmente representarem 13% da popula��o, eles det�m apenas 2,6% da riqueza no pa�s.
Enquanto pessoas brancas podiam comprar terras e, assim, deixa-las de heran�a a seus descendentes, a popula��o negra escravizada n�o tinha esse direito. Mesmo ap�s a aboli��o, diversas leis impediam ou dificultavam que americanos negros votassem, estudassem, tivessem acesso a bons empregos e a financiamento ou adquirissem propriedade.
Em Evanston, onde cerca de 16% dos 75 mil habitantes s�o negros, os idealizadores do plano de repara��es decidiram focar inicialmente em moradia ap�s um relat�rio detalhado sobre as restri��es hist�ricas � popula��o negra da cidade nesse setor e depois de consultas com a comunidade.
"O objetivo � tentar diminuir as desigualdades de riqueza", ressalta Daniels.

Assim como outras cidades americanas, Evanston tem um passado de pol�ticas de zoneamento e pr�ticas discriminat�rias na �rea de habita��o que dificultavam ou at� impossibilitavam que moradores negros comprassem im�veis.
A partir do in�cio do s�culo 20, muitas cidades americanas passaram a adotar medidas para impedir que moradores negros se mudassem para determinadas �reas. Era comum a inclus�o de cl�usulas de restri��o racial nas escrituras de propriedades, estabelecendo que pessoas que n�o fossem brancas n�o poderiam ser propriet�rias ou nem mesmo ocupar o local.
Propriet�rios em �reas onde a maioria da popula��o era branca tamb�m costumavam se recusar a vender im�veis a compradores negros. Al�m disso, a popula��o negra n�o tinha o mesmo acesso a financiamento habitacional dispon�vel a pessoas brancas.
Com essas e outras restri��es, moradores negros acabavam impedidos de adquirir propriedade nas �reas mais valorizadas e, assim, de acumular riqueza por meio da posse de im�veis. D�cadas ap�s o fim dessas leis, o valor das casas em bairros de maioria branca ao redor do pa�s ainda � maior do que nas �reas de maioria negra.
Em Evanston, o relat�rio elaborado a pedido das autoridades revelou que, apesar da lei de 1968 proibindo discrimina��o no setor de habita��o, at� pelo menos meados dos anos 1980 corretores de im�veis ainda tentavam fazer com que compradores e inquilinos negros ficassem concentrados em bairros de maioria negra.
O patrim�nio l�quido das fam�lias negras nos Estados Unidos representa hoje menos de 15% do patrim�nio l�quido das fam�lias brancas. Segundo dados do censo relativos a 2020, enquanto 74% das fam�lias brancas t�m casa pr�pria, essa taxa � de apenas 44% entre as fam�lias negras.
Cr�ticas
O programa em Evanston seria uma forma de reparar os danos provocados por essas pol�ticas discriminat�rias no setor de habita��o, ajudando a preservar e aumentar o n�mero propriet�rios de im�veis negros e a gerar riqueza nessa comunidade por meio de moradia. Mas a iniciativa tamb�m sofreu cr�ticas.
A proposta foi aprovada por oito votos contra um. Ao justificar seu voto contr�rio, a vereadora Cicely Fleming ressaltou que apoia as repara��es, mas n�o o programa proposto, que descreveu como um "plano de habita��o disfar�ado de repara��es".
Uma das cr�ticas � o fato de os beneficiados n�o poderem escolher como querem gastar o dinheiro, que � distribu�do sob a forma de subs�dios para investimentos em habita��o. Outros criticam o alcance ainda pequeno, com apenas 16 fam�lias contempladas inicialmente em um universo de 12 mil moradores negros na cidade.
O economista William Darity Jr., professor da Duke University, na Carolina do Norte, e coautor do livro From Here to Equality: Reparations for Black Americans in the Twenty-First Century ("Daqui � Igualdade: Repara��es para Americanos Negros no S�culo 21", em tradu��o livre), critica o uso do termo "repara��es" em iniciativas locais como a de Evanston.

Segundo Darity, medidas em n�vel local e estadual n�o constituem um plano amplo e verdadeiro de repara��es, que deve ter alcance nacional. Em artigo no jornal The Washington Post, ele disse que o uso do termo "repara��es" pode gerar confus�o sobre "a extens�o do que � necess�rio para uma restitui��o genu�na".
"Esta � uma boa medida para a cidade adotar, mas sejamos claros: � um programa de vouchers para habita��o, n�o de repara��o, e cham�-lo assim prejudica mais do que ajuda", afirmou.
Daniels rejeita essas cr�ticas e ressalta que o programa de Evanston foi certificado pela Naarc como um modelo em repara��es. Ele destaca que foi a pr�pria comunidade, ap�s v�rios encontros p�blicos, que escolheu o foco inicial em habita��o, e lembra que outros setores ser�o contemplados ao longo dos pr�ximos dez anos.
Para Daniels, iniciativas locais, como a de Evanston, n�o afetam a cria��o e implementa��o de um plano nacional de repara��es. "Uma n�o exclui a outra. Pelo contr�rio, s�o complementares", afirma.
Howard, da N'Cobra, lembra que n�o apenas o governo federal, mas tamb�m Estados e munic�pios foram respons�veis no passado por pol�ticas discriminat�rias que tiveram impacto negativo sobre a popula��o negra. Portanto, os tr�s n�veis de governo deveriam adotar medidas para remediar os danos causados.
"Todas as jurisdi��es neste pa�s que foram c�mplices nos crimes contra a nossa humanidade devem ser responsabilizadas", afirma Howard.
A vereadora Robin Rue Simmons, autora da proposta em Evanston, descreveu a iniciativa como "um primeiro passo" e observou que o plano sozinho n�o � suficiente e que s�o necess�rios muitos programas e mais financiamento at� que se possa reparar as injusti�as raciais.
Modelo
Apesar do interesse renovado nos �ltimos anos, o tema das repara��es financeiras a americanos negros ainda � pol�mico.
Pesquisa Ipsos do ano passado indica que s� 33% dos entrevistados concordam que o governo deveria fazer pagamentos em dinheiro a pessoas negras cujos antepassados foram escravizados. Mesmo entre a popula��o negra, 20% s�o contra.
Entre os especialistas que apoiam a ideia, n�o h� consenso sobre como e quanto pagar ou como definir quem teria direito. Alguns prop�em pagamentos diretos em dinheiro, para que os beneficiados usem como desejarem.
Muitos citam como exemplo as repara��es pagas �s v�timas do Holocausto pela Alemanha ou aos nipo-americanos enviados ilegalmente a campos de concentra��o durante a Segunda Guerra Mundial pelos Estados Unidos.
Darity diz que repara��es "verdadeiras" devem ter como objetivo acabar com a desigualdade de riqueza entre a popula��o negra e branca e calcula que seriam necess�rios US$ 14 trilh�es (cerca de R$ 79,9 trilh�es), distribu�dos pelo governo federal sob a forma de pagamentos diretos a cada americano negro descendente de pessoas escravizadas nos Estados Unidos.

Outros defendem repara��es por meio de investimentos em programas de sa�de, educa��o, emprego, habita��o e outras �reas com grandes disparidades. Algumas cidades, como Asheville, na Carolina do Norte, j� aprovaram a cria��o de comiss�es para estudar medidas do tipo, que descartam pagamentos em dinheiro a beneficiados.
Outras cidades e institui��es privadas tamb�m v�m anunciando diferentes planos de repara��o recentemente. No ano passado, a Calif�rnia se tornou o primeiro Estado a sancionar uma lei que abre caminho para repara��es pela escravid�o, determinando a cria��o de uma for�a-tarefa para estudar e desenvolver propostas sobre o tema.
Apesar de o programa de Evanston ter recebido algumas cr�ticas, especialistas ressaltam a import�ncia de uma cidade reconhecer seu papel em pol�ticas discriminat�rias que prejudicaram a popula��o negra e afirmam que a iniciativa pode inspirar e servir de modelo para outros governos.
"Cada proposta de repara��es precisa tratar das necessidades (espec�ficas) daquela comunidade", diz � BBC News Brasil, a vice-diretora do programa de Estados Unidos da organiza��o de direitos humanos Human Rights Watch, Laura Pitter.
"Essas necessidades v�o variar de acordo com os danos feitos e com o que precisa ser reparado (em cada comunidade), mas a iniciativa de Evanston pode ser um modelo para outras ao redor do pa�s."
Desde 1989, o projeto de criar uma comiss�o federal para estudar o legado da escravid�o e elaborar propostas de repara��o � apresentada todos os anos ao Congresso, mas at� hoje nunca foi adiante. Em 2019, pela primeira vez, a C�mara dos Representantes (equivalente � C�mara dos Deputados) realizou audi�ncia para discutir o tema.
Em janeiro deste ano, a proposta foi reapresentada pela deputada Sheila Jackson Lee e j� tem o apoio de mais de 170 congressistas, al�m da presidente da Casa, Nancy Pelosi, e do l�der do Senado, Chuck Schumer. O pr�prio presidente Joe Biden disse, quando ainda era candidato, que apoiaria a realiza��o de estudos sobre o assunto.
Daniels e outros defensores de repara��es demonstram otimismo com o aumento no apoio a um projeto de lei nacional e acreditam que o cen�rio atual � mais prop�cio a uma proposta do tipo.
"� preciso entender que (os debates em torno de repara��es) n�o s�o sobre simplesmente dar um cheque para cada um e encerrar o assunto, mas sim sobre forjar uma nova Am�rica", afirma Daniels. "S�o sobre fazer esta na��o enfrentar a sua hist�ria, e reparar a sua hist�ria."
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