
Uma m�e preparava uma festa para a filha nos Estados Unidos quando abriu uma caixa com decora��o de Halloween que estava guardada no s�t�o havia alguns anos. Na caixa, encontrou uma carta, escrita � m�o, com um pedido de socorro.
Essa carta acabaria se tornando not�cia internacional e se tornaria pe�a-chave no desmantelamento dos not�rios campos de reeduca��o na China, em que centenas de milhares de opositores e membros de minorias religiosas ou grupos proibidos eram submetidos, segundo organiza��es de direitos humanos e relatos de ex-prisioneiros, a trabalhos for�ados, humilha��es e at� torturas.
Esse caso surpreendente � contado em um epis�dio do podcast 'Que Hist�ria!' , produzido e apresentado por Thomas Pappon.
Dia da bruxas
No outono de 2012, na cidade de Damascus, no Estado de Oregon, nos EUA, a americana Julie Keith estava preparando a festa de anivers�rio de cinco anos de sua filha. O tema da festa era Halloween. Em entrevista ao programa Outlook , da BBC, ela conta que foi ao s�t�o atr�s de uma caixa que tinha comprado havia dois anos com decora��o t�pica do Dia das Bruxas .

"Era um kit de cemit�rio. Tinha umas l�pides de isopor, esqueletos falsos, ossos, tecidos com manchas de sangue...E quando estava abrindo essas caixas, caiu uma carta no ch�o. Ela dizia: 'Senhor, se por caso voc� comprou esse produto, por favor repasse essa carta para a Comiss�o de Direitos Humanos da ONU. Milhares de pessoas aqui, perseguidas pelo Partido Comunista chin�s, lhe ser�o eternamente gratas. Esse produto foi fabricado na Unidade A, Departamento 2 do campo de trabalhos for�ados Masanjia, em Shenyang, na China . As pessoas aqui trabalham 15 horas por dia, sem parar no fim de semana, sem f�rias ou qualquer descanso. Caso contr�rio, s�o submetidas a torturas, maus tratos e xingamentos, quase sem pagamento. Muitos deles s�o seguidores da Falung Gong, s�o pessoas totalmente inocentes'."
A carta n�o era assinada. Julie tirou uma foto dela e a postou na internet. Ela achou um pequeno milagre ter encontrado a carta e queria compartilh�-la com amigos. Alguns sugeriram que ela enviasse a carta a organiza��es de defesa de direitos humanos, o que ela fez, mas, sem receber resposta. Ela resolveu ent�o mostrar a carta para a chefe do departamento de comunica��es da empresa em que trabalhava. Esta telefonou para um amigo jornalista da publica��o local The Oregonian.

"Eles mandaram uma estagi�ria para me entrevistar", diz Julie. "Ela tinha come�ado havia poucos meses no jornal. E, num belo dia, num fim de semana, a mat�ria saiu, mat�ria de capa. Fui comprar o jornal, e minha cara estava ali, na primeira p�gina. Imediatamente, comecei a receber v�rios telefonemas. Televis�es locais, Fox, CNN, Epic Times, todos queriam falar comigo."
A hist�ria da carta correu o mundo. Pouco se sabia sobre os chamados campos de reeduca��o por trabalho na China, admirada pelo crescimento econ�mico extraordin�rio, mas criticada pelo hist�rico de persegui��o de opositores, minorias �tnicas e religiosas. E justamente por causa dessa persegui��o Julie acabou recebendo duras cr�ticas por ter divulgada a carta.
"Eu lia os coment�rios online, e muitos diziam que cometi um erro", ela conta, "porque agora as pessoas desse campo sofreriam ainda mais puni��es".
"Fiquei arrasada. Achei que talvez tivesse mesmo feito a coisa errada. A carta diz em que unidade e que departamento as pessoas estavam no campo. Mas eu ficava sempre voltando ao que a carta dizia. Afinal, o autor da carta queria que eu a divulgasse."
Mas quem era o autor da carta? Julie Keith s� viria a saber detalhes sobre ele anos mais tarde, gra�as � pesquisa de um cineasta canadense de origem chinesa, Leon Lee.

Em entrevista ao Outlook , Leon conta que ouviu a hist�ria no notici�rio. Ele acompanhava quest�es ligadas � China havia um tempo, e sabia da reputa��o do not�rio campo de Massanjia. "Imediatamente, achei que, se algu�m mandou uma carta de Massanjia, deveria haver uma boa hist�ria por tr�s dela."
Leon tinha feito document�rios focando em assuntos chineses que dificilmente s�o abordados na China. Um de seus filmes mais conhecidos, Human Harvest ('Colheita Humana'), sobre o com�rcio ilegal de �rg�os humanos extra�dos de prisioneiros pol�ticos, foi visto em v�rios pa�ses e recebeu mais de uma dezena de pr�mios. Leon n�o pode entrar na China, mas gra�as a seus filmes, ele conseguiu criar uma rede de contatos com dissidentes e jornalistas chineses, dispostos a ajud�-lo. Demorou alguns anos, at� ele chegar ao autor da carta, Sun Yi, e poder falar com ele, via Skype.
Nesse contato, Sun Yi disse que sua hist�ria precisava ser contada e se disp�s a filmar depoimentos seus e a ajudar como pudesse. Sem poder entrar no pa�s para ajud�-lo, Leon teve de dirigi-lo � dist�ncia.
"Foi o filme mais dif�cil que j� fiz", diz ele. "Sun Yi n�o sabia usar uma c�mera. Marcamos sess�es de treinamento pelo Skype, para ensinar coisas b�sicas, como filmar, como captar �udio, como comprimir arquivos."
"Por raz�es de seguran�a, eles fez dois tipos de trabalho. Um foi fazer contatos com outras pessoas que passaram pelo campo. Conseguimos entrevistar um guarda, que tinha torturado ele, por exemplo. E o outro, foi gravar depoimentos sobre seu dia a dia, sobre a dif�cil realidade de um ativista de direitos humanos na China."

Sun Yi vivia uma realidade cheia de perigos. Ele dedicava boa parte de sua vida a divulgar o modo de vida da Falun Gong, um grupo que prega exerc�cios de medita��o e tem ra�zes em ensinamentos do budismo sobre compaix�o e toler�ncia.
Ela � proibida na China desde 1999, vista como um "culto diab�lico" e amea�a ao Partido Comunista.
Seus seguidores passaram a ser perseguidos e enviados aos not�rios campos de reeduca��o. Al�m deles, cr�ticos do regime, seguidores de cren�as religiosas e pessoas acusadas de crimes menores eram enviados sem julgamento a esses campos para cumprirem penas de at� 3 anos.
'Inferno na Terra'
Leon conta que Sun Yi era engenheiro, e que tinha um bom emprego e uma fam�lia, at� 1999, quando sua vida "foi virada de cabe�a para baixo".
"Perdeu o emprego, foi detido mais de uma dezena de vezes por imprimir e distribuir panfletos sobre a Falun Gong. Em 2008, antes dos Jogos Ol�mpicos, houve uma intensifica��o da repress�o � Falun Gong, por supostas raz�es de seguran�a, e Sun Yi foi detido e condenado a dois anos e meio de pris�o no campo de Massanjia."

Sun Yi descreveu sua experi�ncia no campo como o 'inferno na terra'. Ele e outros membros da Falun Gong eram torturados at� renunciarem � sua cren�a.
Ele diz ter sido colocado em uma cama, amarrado pelas pernas e bra�os, com o corpo esticado at� o limite. Que a dor fez ele desmaiar v�rias vezes. Ele diz ter resistido, e jurou contar ao mundo sobre as condi��es as quais ele e seus companheiros estavam sendo sujeitos.
Sun Yi escreveu v�rias cartas, e pouco depois apareceu uma oportunidade de envi�-las para fora do campo, como conta Leon Lee:
"Um dia, Sun Yi estava na cafeteria do campo, o notou, pela janela, um grupo de prisioneiros passando do lado de fora levando ossos, caveiras, l�pides... Ele ficou chocado, achou que eles estavam levando partes de cad�veres. E um prisioneiro mais antigo contou a ele que esses prisioneiros estavam voltando do 'turno fantasma'"
"Dias depois, o nome dele estava numa lista de prisioneiros que foram levados para o quarto andar de um edif�cio, onde havia um grande dep�sito com pessoas fazendo l�pides. Foi a� que Sun Yi percebeu que eram l�pides feitas de isopor. Ele n�o fazia ideia de quem poderia usar esse tipo de produto assustador. Na cultura chinesa n�o era comum brincar com l�pides. Mas um guarda lhe contou que eram produtos para um festival popular em culturas ocidentais."
Sun Yi diz ter escrito e escondido 20 cartas em caixas com l�pides de Halloween. Ele j� tinha cumprido sua pena e estava em sua casa, quando soube que uma carta sua tinha sido encontrada por uma mulher nos Estados Unidos.

Julie Keith, por sua vez, foi avisada pelo New York Times em 2013 que o autor da carta estava vivo. E n�o s� isso. Recebeu uma nota enviada por ele, em que dizia "apenas que estava feliz e agradecido por eu ter divulgado a carta, que era exatamente o que ele queria". "Fiquei superfeliz por ele estar vivo e por ter estar orgulhoso do que fiz."
'A primeira pe�a a cair'
Poucos anos mais tarde, Sun Yi estava colhendo material para o document�rio de Leon Lee. Foram meses de trocas de mensagens encriptadas, envios de HDs externos para fora da China por terceiros e muita tens�o.
O pior momento foi quando Leon recebeu a not�cia de que Sun Yi tinha sido preso novamente. Pouco depois, ele foi libertado por raz�es de sa�de, e queria retomar as filmagens. Mas para o diretor, n�o dava mais para correr riscos.
"Disse a ele para largar tudo e sair da China imediatamente. Eu sabia que havia uma boa chance de eles n�o terem colocado o nome dele na lista dos que n�o poderiam deixar o pa�s. Ele teve de deixar a esposa pra tr�s, fazer uma pequena mala e sair da China, sabendo que provavelmente jamais poderia voltar."

Sun Yi fugiu para a Indon�sia, onde pediu asilo. Nessa condi��o, ele n�o podia trabalhar. Tamb�m n�o falava a l�ngua local, a cultura era diferente e ele estava completamente s�.
Mesmo assim, ele diz nunca ter tido d�vida alguma de que seu sacrif�cio valera a pena. A enorme repercuss�o gerada no mundo e na China por sua carta foi uma das raz�es que levaram o Congresso Nacional do Povo, em dezembro de 2013, a abolir pelo menos oficialmente o sistema de reeduca��o em campos de trabalho, em vigor havia 56 anos. Mais de 300 campos foram fechados e mais de 160 mil prisioneiros foram libertados.
Para Leon Lee, a carta de Sun Yi esteve no come�o de tudo isso: "Foi a primeira pe�a de domin� a cair. Teve toda a repercuss�o internacional. E uma revista chinesa publicou uma longa reportagem sobre esses campos que chocou o p�blico chin�s. A revista foi censurada, mas sem antes causar uma grande onda de indigna��o no pa�s, com v�rias pessoas exigindo o fechamento dos campos. J� havia dentro do regime pessoas a favor do desmantelamento desse sistema. Todos esses fatores se juntaram, e o sistema finalmente deixou de existir."
Julie Keith, a mulher que foi pe�a chave na trajet�ria da carta, foi convidada a se encontrar com Sun Yi na Indon�sia.

"Foi uma experi�ncia incr�vel esse encontro. Devolvi a ele a carta e uma das l�pides de Halloween. Eu estava nervosa, n�o sabia se isso despertaria lembran�as ruins nele. Mas ele pareceu agradecido, por termos completado esse ciclo. Foi como um sonho que se tornou realidade. Jamais imaginaria que uma coisa dessas pudesse acontecer. E tivemos essa conex�o instant�nea."
"Ele me chamou de irm�. Foi como se nos conhec�ssemos a vida toda."
Pouco depois desse encontro, Leon Lee estava editando o seu document�rio quando recebeu a not�cia de que Sun Yi tinha sido hospitalizado e estava em estado grave, com problemas nos rins.
"Tentei fazer contato, mas Sun Yi aparentemente n�o se lembrava mais de mim. Alguns dias depois, ele morreu. A causa oficial da morte foi fal�ncia aguda dos rins. Ele nunca tinha tido problema nos rins. E quando estivemos com ele na Indon�sia ele parecia completamente saud�vel. Foi terr�vel."
"Fiquei arrasada", afirma Julie Keith. "Queria tanto um final feliz para a hist�ria dele. Ele queria vir para o Canad� ou Estados Unidos, e trazer sua esposa. Me senti muito mal por n�o ter sido capaz de ajudar mais."
O document�rio de Leon Lee, Letter from Massanjia ('Carta de Massanjia') foi lan�ado em 2018. Os campos de trabalho na China foram fechados no final de 2013, mas organiza��es de direitos humanos acusam a China de ter feito mudan�as cosm�ticas em alguns deles, e de manter campos em que perseguidos pol�ticos ou religiosos, como os chineses uighures mu�ulmanos no Estado de Xinjiang, s�o "reeducados".
Como ouvir o podcast
A segunda temporada de Que Hist�ria! , produzida e apresentada por Thomas Pappon, ter� dez epis�dios, que ser�o disponibilizados semanalmente nas principais plataformas de podcast, como Apple e Spotify.
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