
Ao pensar numa est�tua da Gr�cia antiga, muito provavelmente a imagem que vem � sua mente � de uma escultura feita em m�rmore perfeitamente polido e muito branco. As vestimentas, igualmente brancas, cobrindo corpos brancos, muitas vezes rodeados por objetos essencialmente brancos.
Mas, apesar disso refletir a realidade que conhecemos atualmente, essa imagem monocrom�tica pode estar t�o distante da realidade hist�rica como a dist�ncia que separa a Gr�cia do Brasil.
Nesta reportagem, Elisa Kriezis, da BBC News Brasil, explica como surgiu essa falsa ideia, a quem serviu e como o mito do branco come�ou a ser desconstru�do.
"Eu nasci na Gr�cia, filha de pai grego e m�e alem�. Como muitos, cresci achando que as est�tuas e as estruturas gregas que me rodeavam sempre foram brancas, como o m�rmore usado como mat�ria-prima para sua cria��o, ou, em um menor n�mero de casos, escuras, quando eram feitas de bronze.
E vi essa est�tica "sofisticada" ser replicada das mais diversas formas pelo mundo ao se retratar a Gr�cia antiga.
O mito de que suas est�tuas eram monocrom�ticas, principalmente brancas, foi propagado ao longo da hist�ria, e acabou erroneamente usado pelos que viam na falsa aus�ncia de colorido e ornamentos um sinal de uma cultura mais elevada e sofisticada, resultado da superioridade de brancos europeus.
Entretanto, poucos sabem que toda aquela brancura era fruto de ignor�ncia e distor��o.
Do bronze ao m�rmore
A maioria das est�tuas gregas que voc� encontra em museus pelo mundo � feita de m�rmore. Afinal, era uma pedra bastante dispon�vel na Gr�cia e em seus arredores e segundo os escultores, mais f�cil de ser trabalhada.
Mas a�, j� surge o primeiro erro, a primeira distor��o hist�rica.
Muitas das est�tuas que se conectavam de alguma forma a estruturas maiores, como pr�dios, eram de fato feitas de m�rmore. Mas a maioria das esculturas que n�o contavam com esse apoio estrutural era feita de bronze por ser um material de maior resist�ncia.
Como o bronze � um material facilmente reaproveit�vel, ent�o, sobraram poucas est�tuas feitas desse metal para "contar a hist�ria", pois muitas acabaram recicladas, transformadas em outros objetos. Isso fez com que as est�tuas em m�rmore branco acabassem prevalecendo ao longo do tempo.
E mais: a escolha do material - m�rmore ou bronze - para a produ��o dos objetos de arte n�o tinha nada a ver com a cor clara original da pedra ou escura do metal. O local em que a est�tua seria colocada era um fator muito mais determinante do tipo de material a ser usado, como explico mais adiante.
Originais e r�plicas

Quinhentos anos depois, os romanos expandiram seu imp�rio e dominaram o mundo mediterr�neo, incluindo a�, claro, a civiliza��o grega.
Os romanos admiravam a cultura e a arte da Gr�cia e criaram sua est�tica � imagem e semelhan�a da dos gregos. Sendo assim, a demanda por r�plicas de est�tuas gregas era enorme no Imp�rio Romano. Elas se tornaram objeto de desejo para decorar casas da elite romana, pra�as p�blicas e at� os famosos banhos romanos.
No processo de reproduzir est�tuas gregas, muitas originalmente feitas de bronze, os escultores acabaram criando r�plicas em m�rmore.
Essas r�plicas com material distinto do original s�o identificadas por terem barras de apoio, normalmente disfar�adas de troncos de �rvores, de colunas em estilo antigo ou de tecidos.
O m�rmore n�o tem a mesma resist�ncia do bronze e precisa de uma esp�cie de "m�ozinha" para se manter de p�.
H� registros de 20 c�pias de uma mesma est�tua cuja original grega era feita de bronze, mas que entrou para a Hist�ria como se fosse de m�rmore - e com o apoio para n�o cair.
A preval�ncia do m�rmore est� ligada ao fato de o bronze ser um metal nobre e reutiliz�vel.
Tesouros
O Mar Mediterr�neo continua sendo, ainda hoje, a principal fonte do que resta das est�tuas de bronze, verdadeiros tesouros afundados em naufr�gios.
Mas vamos voltar a falar das r�plicas das est�tuas gregas feitas pelos romanos.
Na maioria dos casos � a c�pia romana que a gente v� nos museus, por ter sobrevivido, por ser a vers�o mais recente.
Ent�o, podemos dizer que a nossa percep��o da Antiguidade a partir das est�tuas � baseada principalmente nas c�pias e n�o na realidade hist�rica das originais.
Nessa cabe�a grega a gente consegue ver vest�gios claros de cor.
A busca de vest�gios das cores originais
O extenso trabalho feito por um casal de pesquisadores alem�es, que se debru�ou sobre centenas de est�tuas antigas em busca de vest�gios das cores originais � hoje a fonte mais inquestion�vel da conclus�o de que as est�tuas eram multicoloridas. Mesmo a olho nu � poss�vel enxegar esses vest�gios em algumas delas.
"Ainda h� muita cor preservada nas est�tuas. D� para ver a olho nu. E a cor n�o est� apenas nos ornamentos das roupas. Est� toda a superf�cie de uma escultura", diz o arque�logo Vinzenz Brinkmann, diretor do departamento de Antiguidade do Instituto Liebighaus, na Alemanha]. Brinkmann estuda o tema h� quarenta anos.
Atualmente, n�o � preciso recorrer aos olhos. A tecnologia permitiu um exame ainda mais detalhado com an�lises feitas com ajuda de luzes ultravioleta e infravermelha e tamb�m de processos qu�micos avan�ados capazes de revelar uma imagem bastante precisa da Antiguidade.
Com base nessas t�cnicas, Brinkmann criou, junto com sua esposa, a tamb�m arque�loga, Ulrike Koch-Brinkmann, a exposi��o Deuses em Cor, com mais de 60 r�plicas das est�tuas em sua cor original, cheias de ornamentos, s�mbolos de animais e at� mesmo pintadas de ouro.
As restaura��es s�o feitas com pigmentos aut�nticos identificados nas esculturas originais.
Como a Peplos Kore, a escultura de uma mulher jovem que decorava um t�mulo, os guerreiros de Riace, achados no Mar Mediterr�neo, o Kouros, um jovem nu que reflete a influ�ncia do Egito na escultura grega com uma postura mais r�gida, ou o chamado sarc�fago de Alexandre, o Grande (que, na verdade, n�o era o sarc�fago dele), achado no que hoje � o L�bano, e que tem detalhes impressionantes de cor, s�o todos bons exemplos da decora��o ricamente colorida usada nos originais.
E de onde veio essa tradi��o de colorir est�tuas com in�meras outras cores al�m do preto e branco?
Os gregos n�o apenas influenciaram o mundo, mas foram influenciados pelos povos �s margens do Mar Mediterr�neo, como o Egito, e pelas popula��es que habitavam o Oriente M�dio.
O interc�mbio entre eles n�o era s� comercial, mas tamb�m cultural. E a forte tradi��o de escultura - colorida - est� diretamente ligada a estas trocas.
Ou seja, n�o � verdade que ao atingir o que se considera ser o �pice de sua civiliza��o, os gregos rejeitaram a influ�ncia recebida tendo exclu�do as cores.
Mas como se formou a ideia de uma Antiguidade incolor?
Primeiro vamos observar a Idade M�dia. A chamada Idade das Trevas foi um per�odo em que a aprecia��o da cultura grega antiga se perdeu, junto com o fim do Imp�rio Romano do Ocidente.
Isso abriu caminho para a arte sacra medieval e suas pinturas de passagens da B�blia em cores fortes e vibrantes.
Foi s� no final do s�culo 15 que a Antiguidade Cl�ssica voltou a despertar interesse. Era o in�cio do per�odo que ficou conhecido como Renascimento.
"O mito da escultura em m�rmore branco foi inventado pelo Renascimento italiano. O Renascimento queria fazer uma distin��o do que havia antes da arte crist�. Eles queriam voltar � Antiguidade, � Era pr�-Crist� , ter uma apar�ncia ic�nica do que era feito. Ent�o eles ressuscitaram a Antiguidade e a definiram como branca".
Naquela �poca, esculturas gregas e romanas foram redescobertas no antigo territ�rio do Imp�rio Romano. E os artistas renascentistas tentaram reproduzir as obras.
Pe�as ic�nicas do Renascimento, como o David de Miguel�ngelo, foram inspiradas nessa busca por uma refer�ncia na Antiguidade Cl�ssica.
Mas a maioria dos templos e das est�tuas havia perdido grande parte da cor. Afinal, cerca de dois mil anos haviam se passado desde que os originais gregos coloridos tinham sido produzidos.
E essa arte p�lida e desbotada caiu como uma luva, j� que o objetivo dos renascentistas era se diferenciar da arte sacra, extremamente colorida e considerada por eles vulgar do ponto de vista art�stico.
Mas fica a pergunta. Ser� que os renascentistas que criavam ali uma est�tica que seria t�o influente n�o notaram os vest�gios de pigmentos de cor nas est�tuas?
� bem poss�vel que tenham visto sim, considerando an�lises como a de Brinkmann de que at� hoje � poss�vel ver a olho nu a cor original de algumas est�tuas.
Mas n�o seria necess�rio depender apenas dos olhos. Havia refer�ncias �s cores tamb�m em Plat�o, fil�sofo grego, considerado o pai da filosofia pol�tica.
Plat�o escreveu no s�culo 4 antes de Cristo que os olhos de uma est�tua mereciam as mais belas das cores, j� que eram a parte mais bonita do corpo. Mas refer�ncias como essa podem ter sido ignoradas por v�rios motivos.
"A Europa n�o era muito educada nem muito interessada. Mas queria se livrar da opress�o da Igreja. Produziram, ent�o, um ideal", diz Vinzenz Brinkman.
Ele acresenta que, "assim, o m�rmore branco e o bronze escuro passam a ser usados como um s�mbolo de sofistica��o do pensamento europeu."
Escava��o reveladora - A Artemis de Pompeia
Foi finalmente em 1769, em Pompeia, ao p� do monte Ves�vio, que uma est�tua preservada pela lava lan�ada pela erup��o devastadora do vulc�o no primeiro s�culo da chamada era Crist�, trouxe � tona o que a hist�ria havia apagado: a Artemis de Pompeia, cal�ava sand�lias e tinha seus cabelos em vermelho.
Foi uma descoberta hist�rica. Eram numerosos e vis�veis os vest�gios de cor na pele e nas roupas da est�tua. As cinzas do vulc�o que a cobriram em 79 d.C. tinham preservado parcialmente as cores.
O arque�logo e historiador Johann Winckelmann, considerado um dos pais da Hist�ria da Arte Cl�ssica, viu a est�tua dois anos ap�s a descoberta e p�de constatar a exist�ncia de cor.
Muitos dizem que Winckelmann se recusou a aceitar que a est�tua era grega. Para ele, a Artemis de Pompeia, era provavelmente etrusca, uma civiliza��o mais antiga, e considerada por ele menos sofisticada do que a grega, que ele e seus contempor�neos admiravam.
Anos depois, o especialista deu o bra�o a torcer. Definiu Artemis como fruto do in�cio da arte grega. Sua conclus�o, no entanto, permaneceu sem ser publicada por dois s�culos - at� 2008. Alguns acham que a demora foi proposital.
E as provas n�o vieram apenas com Artemis. Um afresco, tamb�m descoberto em Pompeia, mostra uma mulher claramente pintando uma est�tua, e com muitas cores.
A aus�ncia de cor como s�mbolo de sofistica��o
Em 1810, algumas d�cadas depois da descoberta da est�tua de Artemis, o famoso poeta alem�o e estudante da arte grega Johan Wolfgang Goethe, publicou o livro Teoria das Cores.
Ele escreveu: "…na��es selvagens, povos primitivos e crian�as sentem grande atra��o por cores vivas, os animais se enfurecem com certas cores, e homens sofisticados evitam cores vivas nas roupas e no ambiente que os cerca, procurando em geral delas se afastar."
Mas Goethe, que considerava a Gr�cia Antiga o �pice da civiliza��o, foi rebatido pelos fatos no mesmo ano em que publicou seu livro.
Foi o ano em que o templo de Afaia, na ilha grega de Egina, foi descoberto em bom estado de conserva��o. As cores eram vis�veis a olho nu.
O Arqueiro, por exemplo, fez parte desse templo. � �bvio que, quando a est�tua foi achada, as cores n�o eram mais t�o fortes como na vers�o restaurada por Brinkmann. Mas mesmo assim eram inegavelmente vis�veis na �poca.
Ou seja, o templo de Afaia emergiu de escava��es praticamente dizendo a Goethe: Voc� est� enganado.
"Ele sabia disso, mas menosprezou. Ele est� francamente declarando ser ignorante. 'Eu sei, mas n�o quero saber.' E isso � algo que vemos ainda hoje todos os dias.
Tantas pessoas e colegas dizem 'tudo bem, voc� pode estar certo, mas essa n�o � a minha Antiguidade. Minha Antiguidade… Eles t�m suas pr�prias Antiguidades! As Antiguidades de cada um: e Goethe tinha a sua ", diz Brinkmann.
Novas escava��es no s�culo 19 mostraram claramente o uso da cor na Antiguidade. Estudos de obras antigas foram publicadas, como as do arquiteto Ernst Ziller.
Distor��o do ideal est�tico
Portanto, � justo dizer que no fim do s�culo 19 ficou evidente que a Antiguidade era colorida. Mas, apesar de todas essas descobertas, nosso gosto continuou sendo moldado por uma est�tica sem cores quando se pensa na Gr�cia Antiga.
"Os museus e os especialistas n�o informaram o p�blico sobre cores e ornamentos nas est�tuas, uma vez que cores e ornamentos estavam em certo ponto limitados a culturas n�o europeias, sem seriedade, folcl�ricas", afirma Brinkmann.
Ainda assim, a desvaloriza��o da cor prosseguiu. Basta dizer que em 1938, o Museu Brit�nico de Londres aplicou um intenso polimento numa pe�a de m�rmore retirado da Acr�pole, de Atenas, at� que ficasse branca e brilhante.
Fico pensando o que meus antepassados achariam disso. Em sua vers�o original, a Acr�pole era uma festa de cor.
Segundo Brinkmann, nosso ideal est�tico foi distorcido mais do que nunca no s�culo 20, e por motivos pol�ticos.
Ele cita o arquiteto austr�aco Adolf Loos, um influente te�rico da arquitetura moderna que chegou a comparar o uso da cor a um crime.
"O arquiteto Adolf Loos, que � altamente ideol�gico, afirma que cor e ornamento s�o crimes de uma maneira muito grosseira e louca. � um absurdo"
Loos chegou ao ponto de associar um senso de "imoralidade" ao ornamento, descrevendo-o como "degenerado". Na opini�o de Loos � necess�rio suprimir a cor e a ornamenta��o para que uma sociedade seja definida como moderna.
"Olhando para o in�cio do s�culo 20, conseguimos entender como essa nova postura radical de est�tica foi desenvolvida, passo a passo. O fascismo europeu contribuiu muito com isso, por meio de uma forte relut�ncia em aceitar formas detalhadas, ornamentos, e o uso de cores diferentes.", afirma Brinkmann.
Ele explica que uma figura colorida reflete melhor as emo��es individuais. J�, sobre uma �nica cor, com frequ�ncia o branco, � poss�vel projetar qualquer ideologia.
Assim como para Loos e at� mesmo Goethe, para os nazistas a inexist�ncia de cor refletia um homem mais moderno, sofisticado e superior. E isso foi usado para justificar suas ideologias mortais.
Mark Abbe, da Universidade da Ge�rgia (Estados Unidos), descreve: "esses trabalhos foram encarados como exemplos art�sticos para modelos universais e eternos de beleza e car�ter �tico para a atual era. E isso continua: ainda erguemos est�tuas de m�rmore, todas brancas, para prestar as mais elevadas honras na sociedade contempor�nea".
A exposi��o Deuses em Cor j� foi exibida na Gr�cia. No ber�o dessa arte, a recep��o foi mista como em outras partes do mundo.
Mas, segundo a arque�loga Hariclia Brekoulaki, ela serviu para desenterrar tamb�m o interesse dos gregos por seu pr�prio passado. Um passado colorido.
"Teve uma repercuss�o importante. Algo como o que Vinzenz construiu com sua equipe na Alemanha infelizmente n�o existe na Gr�cia. Ainda. Espero, que com o passar do tempo, tenhamos mais iniciativas como essa. Inclusive nos museus que as obras se encontram. A ideia de que a cor � importante e de que precisamos estud�-la entrou na cabe�a dos diretores de museus, e dos pesquisadores", reflete Brekoulaki.
"Devemos continuar a procurar outros mal-entendidos"
Brinkmann celebra a recoloriza��o da antiguidade grega.
"No primeiro olhar, h� um choque porque entra em conflito com suas expectativas. E no come�o voc� pensa que as cores s�o fortes demais. E a� voc� volta e olha novamente, e essa impress�o come�a a se desfazer. Tem gente que entra em nossa exposi��o com uma postura de que esse � um modelo intelectual. E a ideia � descartada. Mas outras pessoas come�am a pensar. Saem da exposi��o e percebem o grande mal-entendido, ent�o devemos continuar a procurar outros mal-entendidos. E isso � lindo".
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