(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas CATOLICISMO

Os 40 anos do livro brasileiro condenado pelo Vaticano que hoje inspira papa Francisco

Obra de Leonardo Boff consta em bibliografias de cursos de Teologia e est� na cabeceira de pensadores influentes. Autor denuncia viola��es a direitos humanos no interior da Igreja Cat�lica e faz diversos questionamentos sobre a religi�o.


19/06/2021 10:47 - atualizado 20/06/2021 14:58

Atuação do então frade franciscano Leonardo Boff repercutiu no começo dos anos 1980(foto: Acervo pessoal )
Atua��o do ent�o frade franciscano Leonardo Boff repercutiu no come�o dos anos 1980 (foto: Acervo pessoal )

Aquele padre j� estava incomodando bastante os c�rculos mais conservadores da Igreja Cat�lica. No comecinho dos anos 1980, a atua��o do ent�o frade franciscano Leonardo Boff repercutia social e politicamente, justamente pela atua��o � frente da Teologia da Liberta��o, corrente crist� que enfatiza como necess�ria a op��o preferencial pelos pobres.


Quarenta anos atr�s, Boff lan�ou um livro at� hoje considerado sua obra m�xima, constante de bibliografias de cursos de teologia e presente nas cabeceiras de muitos pensadores influentes — e, h� quem diga, at� mesmo do papa Francisco. Trata-se de Igreja: Carisma e Poder (Vozes), um compilado de 13 densos ensaios cuja primeira edi��o foi publicada em 1981.

Ao longo de mais de 200 p�ginas, o te�logo afirma existirem viola��es aos direitos humanos no interior da Igreja Cat�lica, questiona a engessada hierarquia eclesi�stica e entende a teologia como resultado das experi�ncias de f� vividas pelo povo — e n�o o contr�rio.

Se o jeito de ser religioso de Boff, militando junto aos pobres, causava desconforto em setores cat�licos, o livro serviu como prova concreta para os que viam nele um dissidente, algu�m fora do padr�o institu�do.

O caso foi analisado primeiro pela Arquidiocese do Rio de Janeiro. Em seguida, encaminhado para a Congrega��o para a Doutrina da F� (CDF), �rg�o do Vaticano herdeiro hist�rico do temido Tribunal da Inquisi��o, conhecido por perseguir aqueles considerados hereges at� o s�culo 19.

No comando da CDF estava o ent�o cardeal alem�o Joseph Ratzinger, que mais tarde se tornaria o papa Bento 16, sucessor de Jo�o Paulo 2º (1920-2005).

Sua decis�o sobre o caso Boff foi publicada em 11 de mar�o de 1985. No julgamento, a congrega��o entendeu que o livro era uma afronta a pelo menos quatro pontos da doutrina cat�lica.

"Examinadas � luz dos crit�rios de um aut�ntico m�todo teol�gico […] certas op��es do livro de L. Boff manifestam-se insustent�veis", pontua o documento final.

"Sem pretender analis�-las todas, colocam-se em evid�ncia apenas as op��es eclesiol�gicas que parecem decisivas, ou seja: a estrutura da Igreja, a concep��o do dogma, o exerc�cio do poder sagrado e o profetismo."

Entendendo que as reflex�es de Boff "s�o de tal natureza que p�em em perigo a s� doutrina da f�", a congrega��o condenou o religioso brasileiro. Coube a ele um ano do chamado "sil�ncio obsequioso", uma esp�cie de "cala-boca" oficial que o proibiu de emitir opini�es ou mesmo exercer publicamente suas atividades religiosas.

Por e-mail, Boff afirmou � BBC News Brasil que "a inten��o origin�ria do livro era aplicar as intui��es da teologia da liberta��o �s rela��es internas na Igreja, em setores da Igreja".

"Uma igreja que prega a liberta��o na sociedade n�o pode ser um fator de opress�o nas suas rela��es internas", argumenta ele.

"A raz�o reside neste fato: todo o poder sagrado est� nas m�os de um pequeno grupo clerical; os leigos, que s�o as grandes maiores, n�o participam dele e as mulheres s�o completamente exclu�das. Uma Igreja que assim se organiza e exige liberta��o na sociedade se desmoraliza porque, internamente, n�o d� mostra de ser libertadora."

Recordando seu pr�prio livro, o te�logo sustenta que "na medida em que a Igreja hier�rquica se assenta sobre o poder em sua forma absolutista e at� tir�nica na figura do papa, n�o h� a possibilidade de se converter".

"Este tipo de poder centralizado necessariamente � excludente e, por isso, sua natureza viola direitos dos fi�is", diz.

Boff v� os leigos reduzidos a uma cidadania inferior, e as mulheres encaradas como "for�a auxiliar do clero", a despeito de serem numericamente a maioria.

"O ponto cr�tico e extremamente sens�vel para as autoridades eclesi�sticas foi a cr�tica que fiz ao poder sagrado, sobre o qual se constr�i toda a compreens�o da Igreja", acrescenta.

"Jesus fez uma arrasadora cr�tica ao poder como centraliza��o e busca de privil�gio. O poder s� se legitima evangelicamente como servi�o e n�o como privil�gio e elemento de cria��o de diferen�as na comunidade. A Igreja dos prim�rdios se constru�a sobre a categoria da comunh�o de todos com todos, no sentido de uma comunidade fraternal de iguais, embora com fun��es diferentes."


Boff diz que no catolicismo contemporâneo, a comunhão foi
Boff diz que no catolicismo contempor�neo, a comunh�o foi "esvaziada" e "no lugar do Esp�rito Santo entrou o direito can�nico, que tudo estabelece" (foto: Acervo pessoal)

Boff diz que no catolicismo contempor�neo, a comunh�o foi "esvaziada" e, "no lugar do Esp�rito Santo, entrou o direito can�nico, que tudo estabelece".

"N�o me restringi a fazer cr�tica � Igreja hier�rquica do poder sagrado. Tentei mostrar […] uma alternativa poss�vel e fundada biblicamente, de uma Igreja assentada sobre o Esp�rito Santo e os carismas como forma diferente de organiza��o comunit�ria", explica. "Estes seriam os pontos nevr�lgicos que provocaram minha convoca��o pela Congrega��o para a Doutrina da F�."

O te�logo reconhece, contudo, que os problemas n�o eram apenas os teol�gicos. "Havia dois outros, muito importantes, de car�ter pol�tico", ressalta ele, frisando que o primeiro dizia respeito � teologia da liberta��o.

"Uma semana antes de minha convoca��o [para prestar esclarecimentos], a congrega��o [CDF] havia publicado um documento cr�tico a este tipo de teologia, acusando-a de politiza��o da f� e do uso de categorias marxistas. Submeter-me, logo ap�s, a um ju�zo doutrin�rio significava tamb�m colocar sob suspei��o a Teologia da Liberta��o e, com isso, desautoriz�-la."

O segundo motivo pol�tico dizia respeito �s chamadas comunidades eclesiais de base — grupos ecum�nicos em que pessoas com necessidades comuns s�o incentivadas a se reunir para leituras b�blicas e debates sociopol�ticos. Como diz Boff, lugares "onde se praticava e ainda se pratica a Teologia da Liberta��o".

"A inten��o j� antiga do Vaticano era declarar que essas comunidades n�o s�o eclesiais, mas pol�ticas", afirma ele. "Desta forma, ficariam tamb�m desclassificadas e, junto delas, a Teologia da Liberta��o."

A reportagem perguntou a Leonardo Boff se, com passar do tempo, ele se arrepende ou chegou a se arrepender de alguma coisa do conte�do desse livro — considerando, inclusive, a repercuss�o do mesmo no interior da Igreja. Ele negou categoricamente.

"Continuo sustentando as teses do meu livro, que s�o secundadas pela melhor reflex�o teol�gica cat�lica e ecum�nica", esclarece.

Ele afirma que "a estrutura��o institucional da Igreja hier�rquica � mais e mais criticada por n�o ser suficientemente fundada nos evangelhos e na pr�tica de Jesus e dos ap�stolos".

"Sobre isso se fizeram in�meras teses nas muitas faculdades de teologia. Mais ainda, esta teologia oficial � posta de lado pela pr�tica do atual papa Francisco, que explicitamente vive o modelo de Igreja de comunh�o, favorece as comunidades eclesiais de base e tem dado apoio expl�cito � teologia da liberta��o, de onde ele mesmo mesmo veio."

Boff comentou que se corresponde com o papa Francisco "em sucessivas e amistosas trocas de cartas".

"O livro ['Igreja: Carisma e Poder'] resultou de uma s�rie de textos de confer�ncias e de artigos publicados. O t�tulo vai direto ao ponto", define o te�logo Luiz Carlos Susin, professor na Pontif�cia Universidade Cat�lica no Rio Grande do Sul (PUC-RS) e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana e membro do Comit� Internacional do F�rum Mundial de Teologia e Liberta��o.

"Na Am�rica Latina em geral, mais especificamente no Brasil, a d�cada de 1970 tinha sido tensa politicamente pois nos extremos estavam as ditaduras e as guerrilhas, e no campo intelectual a situa��o social era analisada com categorias marxistas. A Teologia da Liberta��o dialogava com este pensamento cr�tico, embora nem Boff e nem os demais te�logos dominassem bem as categorias marxistas. Mas havia 'afinidades eletivas'."

Contexto

Em 1981, Boff j� era bastante respeitado. Catarinense de Conc�rdia, nascido em 14 de dezembro de 1938, ele civilmente se chama Gen�zio Darci Boff e assumiu o nome de Leonardo quando se tornou membro da Ordem dos Frades Menores, ao fim da d�cada de 1950.

Ordenou-se sacerdote em 1964 e, depois, viveu um per�odo na Alemanha, onde doutorou-se pela Universidade de Munique.

Ao longo dos anos 1970, seu pensamento passou a ser materializado em artigos e livros. Ele integrou o conselho editorial da Vozes, onde coordenou a cole��o Teologia e Liberta��o e atuou como redator da Revista Eclesi�stica Brasileira, entre outras publica��es peri�dicas.

Nesse contexto, o te�logo fundou em 1979, com a ajuda de um grupo de militantes e religiosos, o Centro de Defesa dos Direitos Humanos (CDDH), em Petr�polis, onde vive. Os antigos parceiros nesse projeto s�o os que guardam as melhores mem�rias da persegui��o sofrida por Boff no processo junto ao Vaticano.

"Trabalhava no CDDH nos anos 1980 e convivia diariamente com Boff, principalmente no ano do famoso sil�ncio obsequioso [1985], afirma o te�logo e fil�sofo Adair Rocha, professor na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e na Pontif�cia Universidade Cat�lica do Rio de Janeiro (PUC-RJ).

"Sil�ncio obsequioso � uma express�o de uma sabedoria hist�rica incr�vel, bem mais respeitosa do que 'faz favor de calar a boca'."

"Igreja: Carisma e Poder se relaciona com Jesus Cristo libertador. Isso acabou incomodando os setores hier�rquicos da Igreja", diz ele.

"[Boff] trabalha os pressupostos te�ricos de natureza teol�gica com as quest�es de natureza pr�tica, numa perspectiva estruturante do modelo da circularidade da Igreja, enquanto o modelo tradicional existente � hierarco-piramidal."

"Quando isso vai para as comunidades eclesiais de base, implica em quest�es que v�o interferir diretamente na vida das pessoas, e isso assume uma conota��o de natureza pol�tica que vai identificar Boff e toda sua produ��o com autores preocupados com essa quest�o estruturante do capitalismo e como os meios de produ��o interferem na for�a de trabalho", completa.

Para Rocha, a teologia trazida pelas reflex�es de Boff estava empenhada em possibilitar que a popula��o mais pobre adquirisse "todos os direitos". "A palavra de Deus vai deixando isso cada vez clara. A conota��o pol�tica acaba sendo clara", acrescenta.

Professor e desenvolvedor de aplicativos em Goi�nia, o fil�sofo Jos� Am�rico de Lacerda J�nior recorda que foi arrebatador quando, nos anos 1980, "mergulhou" na leitura de Igreja: Carisma e Poder.

Em 1987, viveu em Petr�polis e "a proximidade com a pessoa do Leonardo trouxe ainda mais for�a �queles seus escritos que tinham me marcado tanto".

"Eu vi nele a coer�ncia entre sua pr�tica e sua escrita, entre sua a��o e sua teologia", afirma. "Pr�xis. Compreendi na pele e na alma a mensagem do livro: o desafio de manter o equil�brio entre a for�a fundante do amor e a raz�o opressora da institucionaliza��o."


Boff afirma que seu livro teve o mérito de provocar uma grande discussão teológica no cerne do catolicismo(foto: Acervo pessoal)
Boff afirma que seu livro teve o m�rito de provocar uma grande discuss�o teol�gica no cerne do catolicismo (foto: Acervo pessoal)

O m�sico e fil�sofo S�rgio Messias Guimar�es orgulha-se de ter integrado o grupo que criou o CDDH em 1979. "[Vi] as consequ�ncias: tudo o que Leonardo sofreu a partir de Igreja: Carisma e Poder. A obra veio questionar pr�ticas equivocadas internamente, liturgicamente, teologicamente e pastoralmente. Pr�ticas de centenas de anos. O livro questiona de maneira contundente, da� ganhou uma import�ncia tamanha", relata ele.

"Ratzinger, com seu conservadorismo, traduziu essa linha [conservadora] de Jo�o Paulo 2º. A� chegou a bater forte em Leonardo, por conta dos questionamentos importantes feitos por esse livro", comenta.

"A relev�ncia da obra continua forte porque ela evoca mudan�as na Igreja. Jesus colocou muito claramente no evangelho o amor para o outro, o cuidado para o outro, principalmente para aquele que precisa mais, sofre mais as consequ�ncias da sociedade que n�o permite que todos tenham seus direitos b�sicos respeitados. Boff continua presente, atual. No papado de Francisco, o livro se torna um grande ponto de refer�ncia."

Guimar�es acredita que a condena��o de Boff tenha sido pelo conjunto de sua atua��o. "O livro foi a gota d'�gua por certos questionamentos que ele vinha fazendo e pela pr�pria teologia da liberta��o", defende.

Para a educadora e militante M�rcia Monteiro da Silva Miranda, com quem Boff vive oficialmente desde que largou a batina, em 1992, a repercuss�o do livro � resultante do fato de que, no per�odo da ditadura, "setores da Igreja lutaram pelos direitos das pessoas e setores conservadores da Igreja achavam que a Igreja n�o podia se misturar com pol�tica".

"Como se o fato de eles n�o falarem nada [sobre o regime ditatorial] tamb�m n�o fosse um posicionamento pol�tico", diz ela.

"Leonardo foi muito prof�tico, mas ele � um homem transparente, que acredita no que fala. O que ele fala � a partir do que reflete, estuda. Mas ele n�o � um acad�mico que fica s� estudando. Ele � um homem de f� e andou sempre em contato com a situa��o do povo. Isso tornou forte o pensamento dele", afirma.

Por outro lado, Miranda acredita que a puni��o sofrida por seu companheiro tornou sua obra ainda mais reconhecida.

"Acredito que Deus escreve certo por linhas tortas", sentencia. "O fato de ele ser punido, calado, serviu para disseminar ainda mais a teologia da liberta��o. Tornou-se uma coisa que se espalhou, se esparramou e vai at� hoje adubando a f�, inclusive para irm�os crist�os evang�licos e outras religi�es que n�o s�o crist�s."

Legado

Boff ressalta que seu livro teve o m�rito de provocar uma grande discuss�o teol�gica no cerne do catolicismo. "[Contudo] foi um grave equ�voco cometido pelas autoridades doutrinais do Vaticano terem entendido de forma err�nea o t�tulo do meu livro", acredita ele.

"Entenderam Igreja: Carisma ou Poder. Tenho afirmado a legitimidade do carisma e do poder na Igreja, poder para organizar internamente a comunidade no esp�rito dos evangelhos e carisma para abrir-se ao novo e �s iniciativas exigidas pelos tempos cambiantes. Mas tenho insistido na tese: na rela��o entre poder e carisma deve-se partir sempre do carisma e n�o do poder", explica ele.

"Assim, o carisma impede o poder de se autonomizar e o confirma sempre como servi�o. Se partirmos do poder, este enquadrar� o carisma, tirar-lhe-� a forma de inova��o e de abertura de novos caminhos", acrescenta.

"Essa foi a trag�dia do carisma na Igreja: figuras carism�ticas — aqui no sentido de inovadores e n�o do movimento carism�tico — e os profetas foram, geralmente, vigiados, cerceados, perseguidos, punidos e at� condenados."

Para o historiador, fil�sofo e te�logo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, um ponto-chave para compreender Igreja: Carisma e Poder � entender que, na Teologia da Liberta��o, "a teologia aparece sempre como um segundo ato".

"O primeiro ato, o mais importante, � a experi�ncia de f� dentro das comunidades. E foi dentro dessas comunidades que a experi�ncia crist� foi mostrando para Boff que a Igreja que se conhece era uma Igreja hier�rquica, europeia, medieval, uma Igreja que estrutura e combina o poder temporal com o poder espiritual. Essa Igreja estava em uma dire��o completamente contr�ria. Ent�o [sua obra] aponta para uma luta contra o clericalismo, contra essa ordem hierarquizada", explica.

"� como se ele dissesse que o poder nasce dentro da Igreja, mas da Igreja que s�o essas pessoas pobres, humilhadas sofridas, oprimidas."

Por tudo isso, a obra pode ser definida como prof�tica, segundo explica o professor. Boff cobra uma Igreja que abandone o estilo mon�rquico, os t�tulos, os cargos — e brote justamente dos mais pobres.

Conforme diz Moraes, os te�logos da liberta��o estavam preocupados com a ortopraxia em vez da ortodoxia. "Para eles, melhor do que a opini�o correta, � a pr�tica correta. � nessa dire��o que Boff vai", comenta.

Igreja: Carisma e Poder tornou-se fundamental nas bibliografias da �rea. "A obra de Boff vai perdurar por muito tempo ainda, porque � consistente. � de uma teologia desafiadora, que faz as pessoas sonharem com um verdadeiro poder: o poder do cristianismo aut�ntico e n�o a estrutura fechada, engessada, do clericalismo que se torna protecionista de coisas erradas", avalia Moraes.

"Sua obra vai continuar existindo e resistindo ao tempo porque � uma fonte de utopia, uma fonte teol�gica de sonhos, de possibilidades de concretiza��o no mundo real das expectativas da caminhada de f�."

Ele ressalta que o te�logo ainda tem a habilidade de tratar de coisas profundas de um jeito simples, dirigindo-se ao homem comum, sendo de f�cil compreens�o.

Doutora em Filosofia pela Pontif�cia Universidade Gregoriana de Roma e pesquisadora do Instituto de Ensino e Assist�ncia Social (IEAS), a religiosa Dulcelene Ceccato, da Congrega��o das Irm�s do Divino Salvador ressalta a relev�ncia mundial de Boff.

"Ele n�o � apenas um autor, ele � uma escola de pensamento, tanto teol�gico como tamb�m filos�fico. Como poucos, ou melhor, como os melhores e o maiores autores contempor�neos, possui uma obra ampla, sistematizada em muitos livros e artigos."


"A obra de Boff vai perdurar por muito tempo ainda, porque � consistente", avalia historiador (foto: Acervo pessoal)

Ao condenar Boff, a Igreja tinha como "meta atingir a mente mais l�cida da Am�rica Latina e Caribe para calar o pensamento em favor do mundo dos pobres", defende o o fil�sofo e te�logo Fernando Altemeyer Junior, professor da Pontif�cia Universidade Cat�lica de S�o Paulo (PUC-SP). "A estrat�gia persistiu at� a elei��o do papa Francisco, quando voltamos a ter oxig�nio para fazer teologia. Superou-se o verdadeiro inverno eclesial e eclesi�stico que durou 40 anos. Um verdadeiro deserto para os intelectuais cat�licos", diz o professor.

"A cristologia latino-americana que se fez a partir da dor humana, especialmente da humanidade padecente em sua carne e corpo, nas ditadores militares foi calada e perseguida dentro da pr�pria Igreja", comenta Altemeyer. "A cristologia europ�ia se fez a partir do conhecimento humano e da ang�stia existencial em sua alma e mente. A cristologia latino-americana vem de baixo para cima. Do hist�rico de Jesus ao ser de Jesus. Do ser de Jesus ao ser de Deus. � alinhada � escola teol�gica de Antioquia, ao pensamento dos primeiros evangelistas e a S�o Jo�o Cris�stomo. Fazer teologia muda a vida dos te�logos."

Para Susin, a riqueza intelectual de Boff acabou se tornando mais vis�vel com a "mudan�a de foco" depois de desligar-se do sacerd�cio, em 1992. "Ele vinha prestando aten��o, pesquisando e come�ando a escrever a respeito de ecologia em di�logo com as ci�ncias. Sua decis�o foi privilegiar a interlocu��o com a sociedade e n�o mais com a Igreja, ao menos no foco central de seu trabalho", analisa.

"Continua tendo lealdade de perten�a � Igreja e fala dela com propriedade, mas cresceu em sua lideran�a em termos de �tica e espiritualidade ecol�gicas. Inovou em sua insist�ncia numa ecologia integral, assumida agora pelo papa Francisco", comenta ele. "Mas seus livros de teologia da primeira fase t�m ainda consist�ncia e conservam atra��o por uma das caracter�sticas de seu estilo, uma linguagem quase jornal�stica, de cr�nica e algo de poesia. Este outro lado m�stico e entusiasta, e n�o apenas cr�tico, ou prof�tico, em termos mais b�blicos, est� presente ao longo de sua produ��o, o que o torna um escritor rico e complexo."

Pontificado de Francisco


Boff não esconde que há um alinhamento entre seu pensamento e o atual pontificado(foto: Acervo pessoal)
Boff n�o esconde que h� um alinhamento entre seu pensamento e o atual pontificado (foto: Acervo pessoal)

"A teologia de Boff e tantos pensadores do hemisf�rio sul participa da esperan�a libertadora dos povos crucificados. � uma cristologia ascendente, inspirada em textos cl�ssicos dos aristot�licos e tomistas", explica Altemeyer. "[Por outro lado,] a teologia europeia trabalha a encarna��o do Verbo como manifesta��o salv�fica de Deus. � uma teologia descendente, inspirada em textos cl�ssicos dos plat�nicos e agostinianos."

A influ�ncia do pensamento de Boff sobre o papado de Francisco transparece em algumas de suas manifesta��es e em documentos oficiais, como na enc�clica dedicada ao meio ambiente, a Laudato Si', de 2015.

Para o frei Marcelo Toyansk Guimar�es, da Comiss�o Justi�a, Paz e Integridade da Cria��o dos Frades Capuchinhos e assessor da Comiss�o Justi�a e Paz da CNBB-SP, � vis�vel como esse modo de pensar ecoa no atual pontificado. "Podemos ver nas homilias do papa, que ele chama fortemente a c�ria romana � convers�o", pontua. "Isto est� escancarado, estamos � beira de uma reforma mais consistente da pr�pria c�ria."

"[No livro,] Boff discorre sobre viola��es de direitos humanos no interior da Igreja. A Igreja precisa estar aberta a cr�ticas para ajudar na revis�o de posicionamentos", prossegue. "Vemos em Francisco como isso acontece de forma mais fluida, quando ele diz toler�ncia zero com rela��o a abusos e quando ele se posiciona de forma muito firme em rela��o aos clericalismos, dizendo que � um grande mal da Igreja."

"O debate trazido por Boff � repetido pelo papa, que nos provoca hoje a fazer uma Igreja a partir dos pobres, que tenha o leigo como protagonista, que seja sinodal", resume o religioso.

Susin atenta que a Igreja, pelo "peso do dinossauro", enfrenta a "dificuldade da reforma". "A tradi��o, que � sua riqueza e sua gl�ria, � tamb�m sua mis�ria quando se trata da estrutura de poder, e na submiss�o da doutrina e at� do evangelho ao direito can�nico, comenta. "A c�ria romana tem a estrutura de uma corte do s�culo 17I na Fran�a, cheia de t�tulos, v�nias e medalhas. � nas �reas mission�rias, de fronteiras, exatamente onde ela parece mais prec�ria, que ela apresenta mais criatividade carism�tica e mais vitalidade genuinamente evang�lica."

"Com a enorme extens�o dos pontificados de Jo�o Paulo 2º somando-lhe a continuidade em Bento 16 acabou se fortificando na Igreja o que o papa Francisco tem chamado de clericalismo, um interesse ligado ao poder que se afirma sobre a postura de que o clero � a �nica media��o da salva��o", explica ele. "As atuais tens�es dentro da c�ria romana e as contraposi��es nem sempre t�o veladas de um clero mais conservador em diversos pa�ses, como os Estados Unidos, e o papa Francisco mostram que a an�lise do poder ainda precisa ser feita, � tarefa incompleta."

Ceccato lembra que o te�logo brasileiro foi pioneiro nas reflex�es sobre "a grave problem�tica ecol�gica", propondo "os par�metros para uma ecologia integral, que o papa Francisco retoma na enc�clica Laudato Si'". "Pode ser dizer que essa � a obra de Leonardo Boff que continua sendo escrita com criatividade, intelig�ncia e, cada vez mais, marcada por uma profunda m�stica franciscana que aponta para o amor misericordioso de Deus e a fraternidade universal."

"N�o cabe d�vidas que a teologia sul-americana, nos �ltimos 50 anos, deu muitos passos na reflex�o teol�gica", afirma a religiosa. "Basta ver a import�ncia da problem�tica ecol�gica."

Boff n�o esconde que h� um alinhamento entre seu pensamento e o atual pontificado. "A pr�tica e a mensagem do atual papa se situam perfeitamente dentro da perspectiva carism�tica defendida por meu livro 'Igreja: Carisma e Poder'. Ele disse sucessivas vezes que n�o vai dirigir a Igreja com o uso do poder, que n�o condenar� ningu�m e que far� o poss�vel para viver uma Igreja sinodal que � outro nome para uma Igreja de comunh�o", ressalta ele.

"Pelo fato de se negar viver num pal�cio mas preferir a casa da h�spedes, mostra na pr�tica a dist�ncia do s�mbolo do poder, um pal�cio, e sua proximidade do lugar comum a todos, uma casa. Ele est� mais perto da gruta de Bel�m do que dos pal�cios dos pr�ncipes renascentistas, muitos deles eleitos papas."

J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)