(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas INTERNACIONAL

Por que os finlandeses falam sempre a verdade?

Na Finl�ndia, pa�s n�rdico de pouco mais de 5,5 milh�es de habitantes, tradi��o luterana e origem humilde da na��o criaram cultura de honestidade.


19/12/2021 17:33 - atualizado 19/12/2021 17:33

Finlandeses
Finlandeses, considerados povo mais feliz do mundo, apostam na honestidade (foto: Getty Images)
Na Finl�ndia, as pessoas sempre acreditam que os outros est�o sendo honestos o tempo todo; a confian�a est� impl�cita, a n�o ser que se prove o contr�rio.

 

Era dezembro, e eu havia acabado de chegar a Helsinki. A neve recente cobria as estradas, e eu me protegia do frio freneticamente — luvas, chap�u, cachecol. Me dirigi � esta��o de trem, procurando um chip de celular finland�s e entrei em v�rios quiosques e lojas para encontrar a melhor op��o.

 

De repente, percebi que havia deixado meu chap�u em algum lugar e voltei pelo mesmo caminho, extremamente frustrado. Olhei dentro das lojas, fiz gesto de algu�m vestindo um chap�u, perguntei se algu�m o havia visto. Finalmente, vi meu chap�u no topo de uma pequena �rvore de Natal no caixa de um dos quiosques e o peguei abrindo um sorriso.

 

Aquilo me levou a uma das minhas primeiras observa��es sobre a Finl�ndia: a de que os finlandeses s�o uma gente muito honesta.

 

Durante minha visita, aos poucos descobriria que a honestidade � muito valorizada na sociedade daqui e � a base de qualquer intera��o: as pessoas partem do princ�pio, o tempo todo, de que todos s�o honestos, e a confian�a est� impl�cita at� que se prove o contr�rio.

 

"Ser honesto � uma caracter�stica da cultura finlandesa — pelo menos se compararmos com outras culturas", diz Johannes Kananen, professor da Escola Sueca de Ci�ncia da Universidade de Helsinki.

 

"Em ingl�s, existe um ditado que diz que a verdade � t�o valiosa que deve ser usada com modera��o. Mas, na Finl�ndia, as pessoas falam a verdade o tempo todo."

 

Meu epis�dio com o chap�u n�o foi, de maneira alguma, raro, j� que na Finl�ndia objetos perdidos parecem sempre voltar �s m�os de seu dono.

 

"� um h�bito muito peculiar aqui, deixar luvas perdidas sobre as �rvores", diz Natalie Gaudet, que trabalha na Universidade de Aalto, explicando que isso faz com que seja f�cil de v�-las � dist�ncia.

 

"As crian�as est�o sempre perdendo luvas, e as pessoas tendem a pendur�-las numa �rvore pr�xima, para que quem as tenha perdido possa encontr�-las na volta." Numa sociedade em que a honestidade est� impl�cita, todo mundo entende que apenas o dono do objeto perdido ir� peg�-lo."

 

Anos atr�s, a revista Reader's Digest fez um "Teste da Carteira Perdida", em que seus rep�rteres "perderam" 192 carteiras em cidades ao redor do mundo. Cada carteira continha US$ 50, com informa��es de contato, fotos de fam�lia e cart�es de visita. Onze de cada 12 carteiras deixadas na capital da Finl�ndia foram devolvidas a seus donos, fazendo de Helsinki a cidade mais "honesta" entre todas testadas.

O segredo da Finl�ndia

Mas o que faz da Finl�ndia um pa�s t�o honesto?

 

O Estado finland�s n�o � uma cria��o muito antiga. Durante s�culos, o que � hoje a Finl�ndia esteve sob o dom�nio do Imp�rio Sueco. Enquanto o sueco era a l�ngua da elite, o finland�s acabou sendo associado �s classes populares, o campesinato e o clero. Foi apenas em 1809 que a Finl�ndia obteve status de autonomia de Alexandre 1º da R�ssia, na Guerra Finlandesa, e tornou-se o Gr�o-Ducado da Finl�ndia, predecessor moderno do que hoje � a Finl�ndia. Foi a� que uma forte identidade finlandesa come�ou a ser constru�da, e o finland�s come�ou a prosperar.

 

Urpu Strellman, agente liter�rio em Helsinki, diz: "Foi criada uma imagem, um estere�tipo dos finlandeses como austeros, modestos, que trabalham duro, pessoas obedientes a Deus que superam tempos dif�ceis, abra�ando qualquer coisa que o destino lance sobre eles. Esses s�o aspectos que se relacionam de forma muito pr�xima com a honestidade."


Catedral luterana de Helsinki
Cultura luterana, representada pela catedral de Helsinki, serve de refer�ncia moral ao pa�s (foto: Getty Images)

A vasta paisagem rural, combinada com os invernos escuros do �rtico, exigia a ado��o dessas atitudes se a Finl�ndia quisesse se erguer. O termo finland�s "sisu" descreve o conceito de coragem, resili�ncia e robustez que foi constru�do dentro da identidade e caracter�sticas culturais nacionais.

 

Al�m disso, uma vez que a Finl�ndia separou-se do reino sueco, o pa�s foi capaz de estabelecer uma Igreja Luterana Evang�lica e uma �tica protestante.

 

No livro On the Legacy of Lutheranism in Finland (Sobre o Legado do Luteranismo na Finl�ndia, na tradu��o livre para o portugu�s), Klaus Helkama e Anneli Portman examinam as ra�zes protestantes do valor finland�s da honestidade, que eles dizem ter nascido de atividades mission�rias protestantes centradas na educa��o em massa e na impress�o em massa de manuscritos — o que, por sua vez, trouxe autorreflex�o e levou � ativa��o da honestidade. A igreja luterana na Finl�ndia � uma das maiores do mundo.

 

Essas qualidades est�o agora profundamente enraizadas na cultura finlandesa, diz Kananen. "Veracidade e honestidade s�o altamente valorizadas e respeitadas."

Vergonha ap�s esc�ndalo

Kananen cita o exemplo do esc�ndalo que envolveu esquiadores finlandeses quando o pa�s recebeu o Campeonato N�rdico de Esqui FIS, em 2001. Seis atletas finlandeses de elite foram pegos no exame antidoping e desclassificados.

 

O esc�ndalo foi coberto pela imprensa nacional como uma quest�o de vergonha p�blica, pois havia um sentimento de constrangimento coletivo no pa�s.

 

"Para os finlandeses, a pior coisa do esc�ndalo de doping n�o foi, entretanto, o esc�ndalo em si", diz um artigo publicado pelo The International Journal of the History of Sport. "A pior coisa foi que, juntamente com a imagem de honestidade no esporte em geral, o mito do finland�s honesto e trabalhador despencou."

 

"Foi uma quest�o de orgulho nacional", disse Kananen. "Em compara��o, na Noruega, quando uma de suas esquiadoras foi pega no antidoping, o pa�s inteiro a defendeu e queria que sua puni��o fosse a mais leve poss�vel."

 

Realmente, os finlandeses t�m muito orgulho do alto n�vel de confian�a social presente em sua sociedade, o que � um indicativo da percep��o de que as pessoas acreditam que os outros estejam agindo honestamente.

 

"Na Finl�ndia, o Estado � um amigo, n�o um inimigo", afirma Kananen. "O Estado � visto como algo que age para o bem coletivo — ent�o, autoridades p�blicas agem em defesa do interesse de todos. H� um alto n�vel de confian�a — nos outros cidad�os e nas autoridades, incluindo a pol�cia. Os finlandeses tamb�m s�o contribuintes satisfeitos. Eles sabem que o dinheiro dos impostos � usado para o bem comum e que ningu�m vai trapacear na cobran�a de impostos."


Lapônia
Pequena popula��o finlandesa � concentrada no sul, e Lap�nia, no norte, � pouco habitada (foto: Getty Images)

Com frequ�ncia, por�m, tudo � uma simples quest�o de tamanho. Gokul Srinivasan, engenheiro de rob�ticas e empreendedor que vive em Helsinki, explicou que numa comunidade pequena, se algu�m � pego mentindo uma vez, a pessoa n�o ser� mais considerada de confian�a.

 

Embora a Finl�ndia seja tr�s vezes maior que a Inglaterra, o pa�s tem apenas um d�cimo da popula��o — com a maioria de seus 5,5 milh�es de habitantes concentrados em centros urbanos no sul do pa�s. Como resultado, h� uma boa chance de que pessoas numa �rea espec�fica j� se conhe�am.

 

"Se um finland�s considera que voc� n�o inspira confian�a, voc� deveria considerar que essa ponte n�o existe mais, e isso leva a que outras pontes tamb�m deixem de existir", diz Srinivasan. "Eles n�o costumam falar mal de voc�, mas se algu�m pedir uma refer�ncia, isso ser� um problema."

 

Fiquei pensando que essas parecem ser ideias bastante pesadas para um pa�s que foi recentemente eleito o "mais feliz do mundo" pelo terceiro ano seguido.

Quando cheguei � Finl�ndia, estava ansioso para ver como esse n�vel de "felicidade" se manifestaria. A felicidade, afinal, est� conectada � honestidade: num relat�rio publicado pela Associa��o Americana de Psicologia, um estudo estabeleceu liga��es entre melhoras em sa�de mental e f�sica e a pr�tica de dizer a verdade.

 

Prestativos e diretos

 

Deixando a honestidade de lado, a suposta felicidade da Finl�ndia certamente n�o era �bvia. Para mim, os finlandeses foram prestativos, mas sem interferir, calorosos, mas estoicos (pouco ligados a paix�es ou desejos), mas n�o bastante expressivos. O que era aparente, no entanto, foi seu estilo direto de comunica��o, algo que Strellman atribui a seus valores b�sicos de honestidade e franqueza.

 

"N�s somos ruins em bate-papos — � sempre melhor ficar quieto do que conversar sobre algo sem sentido", disse ela. "H� uma forte ideia de que voc� precisa falar as coisas como elas s�o, n�o fazer promessas vazias e n�o tentar maquiar as coisas. Os finlandeses apreciam a franqueza mais que a eloqu�ncia."

 

Os finlandeses levam suas palavras a s�rio, ent�o cada palavra realmente quer dizer aquilo que ela significa. Num estudo do etn�grafo Donal Carbaugh, ele explica como declara��es superlativas soam presun�osas para os finlandeses. A regra n�mero 1 da comunica��o finlandesa, escreve ele, � estar comprometido com o que voc� diz.

 

Kananen concorda: "Os finlandeses tendem a levar express�es bastante ao p� da letra. Ent�o, se voc� diz que voc� comeu o melhor hamb�rguer da sua vida, isso pode levar a uma conversa em que voc� fala sobre todos os hamb�rgueres que voc� j� comeu e os exatos crit�rios para julgar qual deles era o melhor. A n�o ser que voc� possa provar que era objetivamente o melhor hamb�rguer, voc� � visto com uma certa suspeita e, sim, certamente presun�oso."

 

Claro, tamb�m existe o lado negativo disso. "O lado bom dessa cultura � uma tend�ncia a permitir que apenas uma 'verdade' exista por vez, sobre muitas coisas, como a economia, sa�de, tecnologia", diz ele. "Essa � a verdade que podemos ler nos jornais e o que os especialistas nos dizem. N�o somos muito bons em tolerar diversidade de opini�o, j� que existe uma cren�a bem enraizada de que existe apenas uma verdade."

 

Na maior parte dos casos, por�m, a honestidade realmente acaba sendo a melhor pol�tica, como os finlandeses devem lhe dizer — embora leve um certo tempo para se acostumar.

 

Naquela mesma semana, eu e um amigo finland�s fomos a Turku, uma cidade no sul do pa�s, onde passeamos pelo centro em busca de boas cervejas. Fomos a diferentes bares, deixando nossos casacos nos ganchos colocados na entrada. Enquanto beb�amos e convers�vamos, n�o conseguia parar de dar umas olhadas para o meu casaco. N�o havia travas de seguran�a, e ningu�m estava cuidando deles.

 

"N�o se preocupe", meu amigo me lembrou, no que pode ter sido a cent�sima vez. "Ningu�m vai roubar seu casaco."

 

Finalmente, comecei a acreditar.

 

Sabia que a BBC est� tamb�m no Telegram? Inscreva-se no canal.

J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)