
Embora na pr�tica o direito internacional seja instrumentalizado pelos pa�ses mais fortes em preju�zo dos mais fracos, – e a invas�o do Iraque pelos Estados Unidos em 2003 � caso emblem�tico – o argumento geopol�tico de Vladimir Putin para invadir a Ucr�nia n�o tem respaldo na Carta da Organiza��o das Na��es Unidas (ONU). A opini�o � do cientista pol�tico Guilherme Casar�es, especializado em Rela��es Internacionais, professor da Escola de Administra��o de Empresas de S�o Paulo da Funda��o Get�lio Vargas (EAESP-FGV), que aponta para a falta de interlocu��o e rela��es diplom�ticas entre Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin que pudesse evitar o conflito.
“Zelensky foi eleito com uma plataforma nacionalista e anti-R�ssia, foi inconsequente nas pol�ticas que fez, com provoca��es de duas formas: atacando a R�ssia e incitando grupos anti-R�ssia dentro da Ucr�nia; e tamb�m a pr�pria disposi��o aberta com os Estados Unidos e a Uni�o Europeia, para ingresso na Otan, de alguma forma � uma agress�o � R�ssia tamb�m. Essa escalada vem acontecendo desde 2019”, avalia Casar�es, considerando que o presidente ucraniano subestimou Putin e superestimou o apoio militar que teria da Otan, que n�o pode entrar diretamente na guerra sob risco de que esta se expanda.
Para Guilherme Casar�es, a R�ssia s� vai aceitar o fim do conflito quando tiver da Ucr�nia o compromisso de neutralidade, algo como a posi��o de neutralidade adotada pela Finl�ndia ao final da Segunda Guerra Mundial. Entretanto, ele considera, h� d�vidas se h� na Ucr�nia lideran�as interessadas em conduzir as negocia��es nessa dire��o e, sobretudo, se a sociedade aceitar�. Para Casar�es, a China � a pot�ncia hoje em melhores condi��es para negociar o fim do conflito. “A China tem pol�tica externa muito focada no com�rcio, mas os chineses nunca tiveram atua��o diplom�tica no mundo, s�o atores at� t�midos. Se ela conseguir negociar um eventual cessar fogo, isso at� posicionar� a China melhor nas rela��es internacionais com um acordo diplom�tico. E para os chineses n�o interessa briga prolongada, instabilidade no mercado, o quanto mais r�pido resolverem essa briga, melhor. E se conseguirem de quebra sair como grandes articuladores da paz na regi�o, pode ser uma mudan�a de paradigma”, avalia Casar�es.
O que diz a Carta da ONU em rela��o � posi��o da R�ssia nesse conflito da Ucr�nia, que o governo russo o chama de “opera��o militar especial” e o Ocidente caracteriza como guerra?
Fora da aprova��o do Conselho de Seguran�a da ONU, existe uma �nica hip�tese para o uso da for�a contra uma outra na��o: a leg�tima defesa individual ou coletiva, conforme previsto no artigo 51, que � taxativo. Desde que a ONU foi criada em 1945, ao longo da hist�ria h� todo um debate sobre o que exatamente se configura leg�tima defesa individual ou coletiva. Por exemplo, a invas�o do Iraque pelos Estados Unidos em 2003, est� de acordo com o direito internacional? A maioria dos especialistas em direito internacional � �poca, consideraram que n�o havia qualquer fundamento para a a��o americana no Iraque nos termos do direito internacional.
A comunidade internacional aplicou san��es aos Estados Unidos em 2003 pela invas�o ao Iraque?
Nenhuma. Na pr�tica, o direito internacional � instrumentalizado pelos pa�ses mais fortes em preju�zo dos pa�ses mais fracos. Os Estados Unidos podem violar o direito internacional, passando ilesos, pois ningu�m tem condi��es de impor san��es contra a maior economia do mundo. Mas ao mesmo tempo, a mera suspeita de que o Ir� estaria desenvolvendo armas at�micas, em 2005, gerou uma grande mobiliza��o de san��es internacionais. No caso da R�ssia n�o d� para se fazer isso, � um pa�s grande, uma pot�ncia, obviamente Europa e Estados Unidos est�o mobilizando san��es diplom�ticas e econ�micas para tir�-la da Ucr�nia, mas a verdade � que o n�vel de san��es aplicadas a qualquer pa�s do mundo vai variar segundo o potencial econ�mico e pol�tico do pa�s.
Em termos geopol�ticos, Putin tem raz�o em n�o desejar a Ucr�nia na Otan?
Em termos geopol�ticos sim, pois a Ucr�nia � a entrada natural da R�ssia. O compromisso de verbal que a Otan n�o se expandiria assumido por ocasi�o da dissolu��o da Uni�o Sovi�tica foi sendo ao longo do tempo rasgado abertamente. Do ponto de vista geopol�tico, o argumento russo faz todo sentido. Mas o argumento geopol�tico n�o pode se sobrepor ao argumento legal.
Houve da Ucr�nia e em particular do atual presidente Volodymyr Zelensky disposi��o e interesse de conversar com a R�ssia e, de outro lado, houve da R�ssia tentativa de abrir negocia��es com a Ucr�nia para evitar a guerra?
Zelensky foi eleito com uma plataforma antipol�tica, nacionalista e anti-R�ssia. Foi inconsequente nas pol�ticas que fez, com provoca��es de duas formas: atacando a R�ssia e incitando grupos anti-R�ssia dentro da Ucr�nia; e tamb�m a pr�pria disposi��o aberta com os Estados Unidos e a Uni�o Europeia, para ingresso na Otan, de alguma forma � uma agress�o � R�ssia tamb�m. Essa escalada vem acontecendo desde 2019.
Quais s�o as condi��es reais que Zelensky teria de cumprir as suas promessas de campanha de integra��o da Ucr�nia � Uni�o Europeia e � Otan?
Condi��es sociais e dom�sticas, sim, ele teria. Mas condi��es geopol�ticas n�o. Zelensky entrou numa armadilha, prometeu e foi eleito para fazer uma coisa que n�o conseguiria fazer. E uma coisa me chamou aten��o que n�o houve encontro entre Putin e Zelensky desde que foi eleito. N�o houve nenhuma tentativa de di�logo de parte a parte para evitar o que acontece agora. Houve uma escalada de tens�es, de um lado incitadas pelo governo ucraniano, e talvez Zelensky tenha subestimado e achado que n�o aconteceria nada. Acho que essa tend�ncia de Zelensky se acirrou depois que Joe Biden foi eleito. Enquanto Trump foi presidente, mantinha rela��o cordial com a R�ssia. Mas com Biden eleito, com discurso de resgatar esp�rito democr�tico do Ocidente, Zelinsky viu ali uma oportunidade de avan�ar para cima da Europa e criar essa situa��o com a R�ssia. Apesar de ter sido eleito em 2019, os movimentos mais assertivos em dire��o � Europa se d�o entre 2020 e 2021. E foi uma escalada mesmo. Ele subestimou Putin, porque achou que diante de uma Europa relativamente unida e os Estados Unidos mais assertivos em rela��o a esses valores democr�ticos, eles n�o deixariam que a R�ssia reagisse.
Como avalia a pol�tica de exportar democracia e valores ocidentais a outros pa�ses do mundo?
� autorit�ria. O problema � esse. Nada de errado de entender a democracia como um regime positivo, superior a outros e de condenar o autoritarismo. Mas impor a democracia pela for�a, provocar mudan�as de regime como vimos no Iraque, no Afeganist�o, na L�bia, tudo isso gera ressentimentos e problemas que temos acompanhado. Uma das principais reclama��es do Putin � de que o Ocidente nunca levou em conta as demandas de seguran�a da R�ssia. Mas ao tentar impor a democracia n�o s� para o Leste Europeu, mas tamb�m da pr�pria R�ssia, que teve de aprovar Constitui��o �s pressas, por press�o dos Estados Unidos sobre Boris Yeltsin, ap�s a dissolu��o da Uni�o Sovi�tica. Ent�o h� um ressentimento grande, inclusive com a percep��o de que a pr�pria R�ssia foi v�tima disso.
O bloco China-R�ssia se fortalece com as san��es impostas � R�ssia, j� que esta se voltar� ao Oriente?
H� algum tempo havia um conjunto de pa�ses, com a China e R�ssia liderando esse grupo, que se posicionavam de maneira contr�ria aos interesses do Ocidente. Por um lado, h� v�rias discord�ncias fundamentais da China em rela��o a valores ocidentais. E a R�ssia e a China v�m se alinhando em v�rias quest�es: t�m bloco militar pr�prio, que � a Organiza��o para a Coopera��o de Xangai, de algumas d�cadas, inclusive no campo econ�mico. Mas a posi��o da China � amb�gua, pois ao mesmo tempo em que ela antagoniza com o Ocidente em termos de valores, a economia chinesa muito mais do que a russa � totalmente integrada ao Ocidente, em termos financeiros e comerciais. Ela, portanto tem postura internacional de sempre preferir a estabilidade. A China n�o opera no caos. Ao contr�rio da pr�pria R�ssia e dos Estados Unidos, que �s vezes preferem desestabilizar regi�es do mundo para garantir o seu acesso, a China constr�i esse acesso pela via comercial, ent�o, para ela, a instabilidade n�o interessa. Por isso entendo que a posi��o da China n�o � abertamente de apoio � R�ssia nesse conflito, porque entenda que embora o conflito se justifique em termos geopol�ticos e tenha um caminho de contraposi��o ao Ocidente que � interessante para ela, mas n�o pode durar muito, porque para a China interessa mais neste momento a estabilidade econ�mica e a perspectiva de recupera��o.
Ao fornecer armas para ucranianos, Estados Unidos e Europa est�o ajudando a uma solu��o do conflito?
O problema � que deter a escalada transparece a imagem de fraqueza da Europa, seria a Europa aceitar sucumbir os interesses ucranianos � R�ssia. Do ponto de vista eleitoral, pensando no Boris Johnson e em Emmanuel Macron, que enfrentaram dificuldades internas, precisam dar uma demonstra��o de for�a geopol�tica. Ent�o j� h� pesquisas que d�o a vit�ria como certa de Macron nas elei��es, cen�rio este que n�o era claro h� um ano. E talvez isso explique por que Macron assumiu papel de lideran�a nessa crise e, de novo, a lideran�a europeia se traduz numa vontade da Europa de n�o deixar a R�ssia vencer.
At� onde os interesses da Europa s�o iguais aos interesses dos Estados Unidos nesse relacionamento com a Eur�sia?
Os interesses da Europa e Estados Unidos s�o diferentes. A rela��o dos Estados Unidos com a R�ssia � exclusivamente de natureza geopol�tica. A rela��o da Europa com a R�ssia � de depend�ncia energ�tica, produtiva, s�o rela��es de qualidade diferente. Agora h� um interesse comum, uma defesa gen�rica da democracia, mas as condi��es que se colocam s�o muito diferentes. Por um lado, o interesse norte-americano � garantir a sua presen�a militar na Europa, o quanto mais perto da R�ssia melhor. Aos Estados Unidos interessa cercear a R�ssia e ampliar a sua presen�a na Europa. Mas para os europeus, quanto menos conflito entre Estados Unidos e R�ssia melhor. Inclusive, desde a �poca de Donald Trump est� voltando uma discuss�o na Europa, que havia sido enterrada h� tempos, que diz respeito � dissolu��o da Otan e a cria��o de uma alian�a militar europeia, que n�o dependa dos Estados Unidos e n�o exponha a Europa aos problemas geopol�ticos alheios em momentos como este. Ent�o tem havido interesse em rediscutir o papel da Otan e, eventualmente, at� voltando ao velho sonho dos anos 90, da pol�tica de seguran�a e defesa comum da Europa. N�o foi para frente porque a Otan ocupou esse espa�o.
No ponto em que estamos, qual � a sa�da para a Ucr�nia e a R�ssia?
Acho que a R�ssia s� vai aceitar o fim do conflito quando arrancar da Ucr�nia o compromisso de n�o mais considerar o ingresso na Otan, o compromisso de neutralidade. � uma posi��o dif�cil. � o que alguns chamam de “finlandiza��o” da Ucr�nia, refer�ncia � postura adotada de neutralidade da Finl�ndia ao final da Segunda Guerra Mundial. Mas n�o sabemos se h� lideran�as pol�ticas interessadas na Ucr�nia em assegurar esse tipo de solu��o e se a sociedade aceita. Mas estou seguro de que a guerra s� vai come�ar a acabar quando a Ucr�nia aceitar os termos que levaram a R�ssia a invadi-la.
Qual � a pot�ncia em condi��es de mediar esse conflito?
Houve reuni�o recente entre autoridades chineses e ucranianas. A China consegue colocar um fim nessa guerra e para ela � interessante porque se cacifa de uma forma diferente daqui para frente. A China tem pol�tica externa muito focada no com�rcio, mas os chineses nunca tiveram atua��o diplom�tica no mundo, s�o atores at� t�midos. Se ela conseguir negociar um eventual cessar fogo, isso at� posicionar� a China melhor nas rela��es internacionais com um acordo diplom�tico. E para os chineses n�o interessa briga prolongada, instabilidade no mercado, o quanto mais r�pido resolverem essa briga, melhor. E se conseguirem de quebra sair como grandes articuladores da paz na regi�o, pode ser uma mudan�a de paradigma.