O mundo de Ngendakumana desabou meio s�culo atr�s, quando o governo do Burundi, controlado pelos tutsis, prendeu seu pai, um banqueiro hutu, em Bujumbura, a maior cidade do pa�s.
"N�s nunca soubemos para onde levaram papai. O que eu sei � que perdemos tudo o que t�nhamos", conta, torcendo as m�os durante uma entrevista � AFP em sua casa, cercada por planta��es de banana perto de Gitega, capital pol�tica do Burundi.
Nem seu casamento com um professor, nem o nascimento de seus 14 filhos (dos quais 12 sobreviveram), nem o fim da viol�ncia apagaram sua dor, que parece t�o viva quanto em 1972.
Durante muito tempo, os massacres foram um tabu na esfera p�blica e os burundineses referem-se a esse per�odo entre o final de abril e junho de 1972 como "ikiza" ("flagelo" na l�ngua kirundi, oficial no pa�s).
Mas em 2019, uma Comiss�o de Verdade e Reconcilia��o (CVR) criada pelas autoridades anunciou um plano para abrir as valas comuns para contar e possivelmente identificar as v�timas.
Ngendakumana entrou em contato com a comiss�o.
Identificar restos humanos depois de cinco d�cadas era uma tarefa quase imposs�vel, mas ela se agarrou a uma esperan�a: a dentadura de seu pai.
"Meu pai sofreu um acidente e perdeu os dentes, ele usava pr�teses de ouro", disse.
A dentadura met�lica levou � descoberta dos restos mortais de seu pai em uma encosta arborizada a poucos quil�metros de sua casa, nas proximidades de Gitega.
- Crime de lesa-humanidade -
Desde sua independ�ncia em 1962, centenas de milhares de burundineses morreram em viol�ncia �tnica entre hutus e tutsis, bem como em uma guerra civil.
O massacre de 1972, considerado por alguns como o cap�tulo mais sombrio da hist�ria do Burundi, come�ou em 29 de abril, quando extremistas hutus atacaram os tutsis, principalmente no sul do pa�s.
Posteriormente vieram as repres�lias, que rapidamente se transformaram em massacres da elite hutu, incluindo executivos, professores e estudantes.
Entre 100.000 e 300.000 pessoas foram mortas na viol�ncia, principalmente hutus que representam 85% da popula��o do Burundi. Os tutsis s�o 14%.
Os assassinatos envolveram todo o pa�s, mas Gitega foi o epicentro, com um acampamento militar onde as v�timas foram mantidas em tr�nsito antes de serem mortas e enterradas em valas comuns.
Das quase 20.000 v�timas cujos restos mortais foram exumados em todo o pa�s, cerca de 7.000 foram encontrados em nove valas comuns em Gitega e arredores.
Muitas sepulturas jamais foram encontradas.
"Quando dizemos 7.000 v�timas, estamos nos referindo apenas �s sepulturas que j� encontramos, confirmamos e exumamos", explica � AFP o presidente da CVR, Pierre-Claver Ndayicariye.
Ap�s uma investiga��o de tr�s anos, a CVR publicou um relat�rio preliminar em dezembro, no qual afirma que os assassinatos constitu�ram genoc�dio e um crime contra a Humanidade.
"Em 1972, o Estado matou seu povo", diz Ndayicariye, enfatizando o papel desempenhado pelo ent�o presidente Michel Micombero, um tutsi, na orquestra��o do genoc�dio.
"� um genoc�dio porque o Estado planejou, organizou e executou esse genoc�dio", aponta.
- Agenda pol�tica -
Mas suas opini�es n�o s�o un�nimes, com alguns observadores acusando o atual regime dominado pelos hutus de explorar a CVR para seus pr�prios objetivos.
A CVR, cujos membros em sua maioria pertencem ao partido no poder, enfrentou acusa��es de parcialidade por concentrar suas escava��es em locais onde os hutus foram enterrados, ignorando os t�mulos das v�timas tutsis.
"H� um problema de agenda pol�tica nesta hist�ria", comentou � AFP o historiador Evariste Ngayimpenda.
"Quando os tutsis estavam no poder (...) o tema constante era evitar a amea�a hutu e hoje � o oposto, o tema constante � evitar a amea�a tutsi".
De acordo com o reitor da Universidade do Lago Tanganyika, em Bujumbura, os esfor�os da CVR mostram tamb�m "limita��es metodol�gicas" em rela��o � data��o dos t�mulos e por n�o recorrer a especialistas internacionais, em particular da ONU.
� medida que o 50� anivers�rio dos massacres se aproxima, cr�nios, ossadas e sacos de roupas encontrados perto de Gitega se acumulam em uma sala escura dentro de um pr�dio do governo, aguardando o dia em que far�o parte de um pequeno memorial.
As autoridades n�o anunciaram planos para marcar o anivers�rio, mas Ngendakumana e seu marido, Emmanuel Berakumenyo, esperam que o governo aproveite a oportunidade para curar o passado doloroso do pa�s.
"S�o conflitos que podem acabar aos poucos, mas o governo tem que ajudar", diz Berakumenyo, ex-professor que sobreviveu aos massacres.
GITEGA