
Quando ouviu as primeiras informa��es sobre o massacre em uma escola prim�ria no Estado do Texas, na ter�a-feira (24/05), a americana Missy Mendo estava preenchendo documentos para matricular sua filha Ellie, de quatro anos de idade, na pr�-escola.
Mas a not�cia de que um atirador de 18 anos havia matado 19 crian�as e duas professoras na pequena cidade texana de Uvalde, no que � considerado o ataque com o maior n�mero de mortos em uma escola americana desde 2012, fez Missy interromper a tarefa, e trouxe mem�rias de outra ter�a-feira de primavera nos Estados Unidos, h� 23 anos.
Naquela manh� de 20 de abril de 1999, Missy e seus colegas na escola secund�ria de Columbine, no Estado do Colorado, tiveram a rotina brutalmente interrompida por dois estudantes armados, que mataram 12 alunos e um professor antes de se suicidarem, em um dos massacres mais not�rios do pa�s.
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Missy conseguiu escapar sem ferimentos f�sicos. Mas o trauma daquele dia persiste, e ela conta que, agora que � m�e, seu maior medo � mandar a filha para a escola.
"Pensar no primeiro dia da minha filha na escola � a coisa mais aterrorizante para mim", diz Missy � BBC News Brasil. "Ela � o maior amor da minha vida."
"E eu estava preenchendo os documentos para matricular a minha filha enquanto tudo estava acontecendo no Texas, enquanto pais no Texas ter�o de enterrar seus filhos", afirma Missy, que mora na cidade de Littleton, no Colorado.
"Como eu posso seguir adiante?", questiona. "Aqui estou, preenchendo os documentos, e um dos meus maiores pesadelos est� se materializando."
Ela diz que n�o consegue parar de pensar nos pais e m�es que perderam seus filhos no Texas.
"Eu sei o que aquela comunidade est� passando nas horas seguintes (ao ataque), nos dias seguintes. Quero que saibam que estou aqui para oferecer apoio", afirma Missy, que � uma das diretoras do Rebels Project, organiza��o sem fins lucrativos criada por sobreviventes de tiroteios para apoiar os que sofrem traumas semelhantes.
'Eles come�aram a atirar em nossa dire��o'
Missy relembra os momentos de terror no dia do ataque em Columbine. Ela tinha 14 anos de idade e estava em seu primeiro ano do ensino m�dio.
"Eu estava na aula de matem�tica quando ouvimos um barulho alto e, depois, um estrondo", conta. "Eu podia ver pela janela v�rios estudantes correndo e atravessando uma rua movimentada."
Inicialmente, alguns na escola acharam que se tratava de um trote. Missy lembra que ouviu outros alunos gritando "eles t�m armas", "eles t�m bombas".
"Corri para um parque do outro lado da rua. Enquanto est�vamos l�, pod�amos ver fuma�a saindo da escola. E, depois, eles (os agressores) come�aram a atirar na nossa dire��o."

Um professor, Dave Sanders, conseguiu retirar estudantes da cafeteria, mas retornou para ajudar outros alunos e foi morto. Dezenas se esconderam na biblioteca, onde os atiradores acabaram entrando e fazendo v�rias v�timas fatais. Mais de 20 pessoas ficaram feridas.
O massacre em Columbine n�o foi o primeiro em uma escola nos Estados Unidos, mas inaugurou o que muitos consideram uma "nova era" nesse tipo de trag�dia.
O tiroteio foi um dos primeiros a receber intensa cobertura ao vivo de canais de TV a cabo. Se, at� ent�o, pais e m�es nos Estados Unidos consideravam a escola um lugar seguro para seus filhos, isso mudou com as imagens de estudantes correndo em busca de abrigo para salvar a pr�pria vida.
"Na �poca, a internet estava no come�o, e as pessoas n�o precisavam mais sentar na sala e esperar que as not�cias chegassem, elas podiam buscar as hist�rias na internet", observa Missy.
Com a publicidade em torno do caso, os dois adolescentes respons�veis pelo ataque atingiram notoriedade, e a palavra Columbine virou sin�nimo de massacre em escolas. Nas d�cadas seguintes, autores de v�rias outras atrocidades, alguns dos quais nem eram nascidos na �poca, citaram os atiradores de Columbine como inspira��o.
Esse fen�meno, chamado de "efeito imita��o", no qual autores de ataques buscam superar a "fama" de atiradores anteriores, matando um n�mero maior de pessoas, leva especialistas a pedirem que a imprensa evite repetir desnecessariamente o nome dos respons�veis por esses ataques.
'N�mero desolador'
Nos 23 anos desde Columbine, os Estados Unidos se acostumaram a trag�dias do tipo. Apesar de as escolas estarem hoje mais preparadas, com diversos protocolos de seguran�a e treinamentos sobre como agir em caso de emerg�ncia, tiroteios em massa continuam a fazer v�timas.
Um c�lculo do jornal The Washington Post indica que, desde Columbine, mais de 311 mil estudantes enfrentaram epis�dios de viol�ncia com armas de fogo em 331 escolas do pa�s, nos quais pelo menos 185 crian�as e adultos morreram.

Para Missy e outros sobreviventes, cada novo ataque traz de volta a mem�ria de Columbine. "O n�mero de tiroteios em massa que ocorreram depois (de Columbine) � desolador", lamenta. "E alguns deles me afetaram de maneira diferente."
Ela cita o massacre na escola prim�ria de Sandy Hook, ocorrido em 2012 na cidade de Newtown, em Connecticut, no qual 20 crian�as e seis adultos foram mortos. "Na �poca eu estava morando em uma cidade pr�xima", lembra Missy.
"(O ataque na escola) Marjory Stoneman Douglas tamb�m foi muito duro para mim", ressalta, referindo-se ao ataque em que um atirador matou 14 estudantes e tr�s funcion�rios da escola na cidade de Parkland, na Fl�rida, em 2018.
Missy cita tamb�m trag�dias ocorridas fora de escolas, como o massacre em um festival de m�sica em Las Vegas em 2017, no qual 60 pessoas morreram e quase 900 ficaram feridas depois que um atirador abriu fogo contra a multid�o.
V�rios outros tiroteios em escolas, supermercados, lojas, igrejas, casas noturnas e outros locais p�blicos chocaram o pa�s nas �ltimas duas d�cadas. Alguns tiveram n�mero de mortos maior do que o de Columbine, entre eles um ataque na universidade Virginia Tech, em 2007, no qual 32 pessoas foram mortas. Outros, apesar da brutalidade, n�o ganharam tanta aten��o.
Alguns sobreviventes, entre eles v�rios dos estudantes de Parkland, acabaram se tornando ativistas para tentar reformar as leis que controlam a posse e porte de armas nos Estados Unidos.
Depois de trag�dias do tipo, o debate sobre o alto n�mero de armas nas m�os da popula��o costuma voltar � tona no pa�s. De um lado, pol�ticos democratas pedem mais controle de armas. Do outro, republicanos rejeitam qualquer restri��o.

Mas outros sobreviventes preferem evitar o tema, que provoca grande polariza��o e enfrenta muitos obst�culos para avan�ar no Senado, e concentram seu ativismo em outras medidas, como aumentar a seguran�a nas escolas.
Missy diz que prefere n�o opinar sobre o controle de armas, lembrando que o Rebels Project n�o � parte de nenhum partido pol�tico e busca ajudar sobreviventes de ambos os lados do debate.
Apoio a outros sobreviventes
O projeto surgiu em 2012, depois que um atirador matou 12 pessoas em um cinema na cidade de Aurora, no Colorado. Na �poca, alguns dos sobreviventes de Columbine decidiram formar um grupo de apoio para as pessoas afetadas por aquele novo tiroteio.

O objetivo era oferecer ajuda emocional, j� que haviam passado por uma situa��o semelhante e que muitas outras pessoas n�o conseguem compreender. Eles pr�prios n�o haviam tido acesso a esse tipo de apoio na �poca de Columbine e, 13 anos depois, ainda conviviam com o trauma.
Hoje, o Rebels Project ajuda a conectar sobreviventes de trag�dias do tipo em todo o pa�s e no exterior.
"N�s representamos mais de cem comunidades ao redor do mundo, afetadas n�o s� por tiroteios, mas tamb�m ataques a bomba e outros tipos de viol�ncia", diz Missy. "Com exce��o de alguns profissionais de sa�de mental, todos os membros e volunt�rios s�o sobreviventes de diferentes trag�dias em massa."
Missy fala sobre as dificuldades que enfrentou nos meses e anos que se seguiram ao massacre em Columbine. "Foi muito dif�cil encontrar um terapeuta que pudesse lidar com o que est�vamos enfrentando. N�o havia muitos especialistas em trauma causado por tiroteios em escolas na �poca."

Ela diz que tentou lidar com o trauma por conta pr�pria, e nunca relacionou os problemas que enfrentava, como ins�nia, com o epis�dio vivido aos 14 anos de idade. Foi somente na �poca do 20º anivers�rio do massacre, depois do nascimento de Ellie, que decidiu come�ar a fazer terapia.
Hoje, aos 38 anos de idade, ela consegue usar a pr�pria experi�ncia para ajudar outros sobreviventes.
"Nas pr�ximas horas, dias, semanas, meses e anos, lembrem-se de dar um passo de cada vez, um momento de cada vez", diz Missy �s fam�lias de Uvalde. "Cada um tem um ritmo diferente para processar o luto."
"E pe�am ajuda, saibam que n�o h� problema em pedir ajuda", afirma. "Voc�s n�o est�o sozinhos."
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