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Estado de Minas 'SELVAGENS'

Os vergonhosos 'zool�gicos humanos' que existiram na Europa at� 1958

Um espet�culo assistido por centenas de milh�es de pessoas que s� chegou ao fim h� 64 anos


26/10/2022 09:52 - atualizado 26/10/2022 11:19


O Zoológico de Moctezuma no mapa de Tenochtitlan, publicado em Nuremberg em 1524
O Zool�gico de Moctezuma no mapa de Tenochtitlan, publicado em Nuremberg em 1524 (foto: BBC)

Esta � uma hist�ria vil. E das piores, porque deixou graves sequelas at� hoje.

E perdurou por muitos anos — talvez at� s�culos, dependendo de por onde se come�ar a contar.

No hemisf�rio ocidental, pode remontar ao zool�gico de Moctezuma, o nono tlatoani (governante) de Tenochtitlan e soberano da Tr�plice Alian�a Asteca.

Segundo cronistas espanh�is como Antonio Sol�s e Rivadeneyra (1610-1686), al�m de aves, feras e animais pe�onhentos, havia "um c�modo onde viviam os buf�es e outros vermes do pal�cio que serviam para entreter o rei: como monstros, an�es, corcundas e outros erros da natureza".

A descri��o lembra a tradi��o dos freak shows (espet�culos de aberra��es), que datam do s�culo 16.

A essa altura, as defici�ncias f�sicas n�o eram mais consideradas maus press�gios ou temidas como evid�ncia de esp�ritos malignos, ent�o as "monstruosidades" m�dicas se tornaram componentes padr�o dos shows itinerantes.

Mas talvez um precursor mais apropriado para o que continuaria acontecendo mais de quatro s�culos depois das primeiras viagens da era dos descobrimentos tenha sido a incorpora��o que o cardeal italiano Hip�lito de M�dici fez ao zool�gico da fam�lia.

Em pleno Renascimento italiano, ele se gabava de ter, al�m de todos os tipos de animais ex�ticos, v�rios "selvagens" que falavam mais de 20 l�nguas, entre mouros, t�rtaros, indianos, turcos e africanos.

Ele havia dado um passo al�m na desumaniza��o daqueles que eram diferentes: � grotesca exibi��o de pessoas nascidas com alguma defici�ncia f�sica, ele acrescentou a posse de humanos de outras terras cuja apar�ncia e costumes eram distintos dos da Europa.


Quadro de Giorgio Vasari 'Lorenzo, o Magnífico, recebe homenagem dos embaixadores' (1556-8) mostra girafa
Os M�dici mantinham um zool�gico aberto ao p�blico que inclu�a esta girafa pintada no quadro de Giorgio Vasari (foto: Getty Images)

O auge desse tipo de desumaniza��o aconteceria, no entanto, centenas de anos depois, quando as sociedades ocidentais desenvolveram um apetite por exibir "esp�cimes" humanos ex�ticos que eram enviados para Paris, Nova York, Londres ou Berlim para o interesse e deleite do p�blico.

O que come�ou como uma curiosidade por parte dos observadores se transformou em uma pseudoci�ncia macabra em meados do s�culo 19, com os pesquisadores em busca de evid�ncias f�sicas para sua teoria racial.

Milh�es de pessoas visitaram os "zool�gicos humanos" criados como parte de grandes feiras internacionais.

Nelas, era poss�vel ver aldeias inteiras com habitantes levados de lugares distantes e pagos para representar dan�as de guerra ou rituais religiosos diante de seus senhores coloniais.

Assim, foi criado um sentido do "outro" em rela��o aos povos estrangeiros, o que ajudou a legitimar sua domina��o.

O ex�tico

� poss�vel que tenha sido relativamente inocente no in�cio: um encontro com o desconhecido e uma curiosidade, talvez at� m�tua.

Em 1774, um polin�sio chamado Mai ou Omai chegou � Inglaterra com o capit�o James Cook e foi apresentado pelo naturalista Joseph Banks � corte do rei George 3°, que se rendeu a ele.


'Omiah, o indígena de Otaheite, apresentado à Sua Majestade em Kew por Banks e Solander, em 17 de julho de 1774'
'Omiah, o ind�gena de Otaheite, apresentado � Sua Majestade por Banks e Solander, em 17 de julho de 1774' (foto: BBC)

Era "engenhoso, encantador e astuto", como descreve Richard Holmes no livro The Age of Wonder.

"Sua beleza ex�tica... era muito admirada na sociedade, especialmente entre as damas aristocr�ticas mais ousadas."

Mas era um convidado ou um esp�cime?

Se havia algum espa�o para a ambiguidade no in�cio, esta desapareceu com as novas certezas da �poca colonial.

O emblema mais triste da era que viria foi a sul-africana Saartjie Baartman, conhecida como a "V�nus Hotentote".

Nascida por volta de 1780, foi levada para Londres em 1810 e exibida em feiras na Europa.

Foi nesse per�odo que come�ou o estudo do que veio a ser chamado de "racialismo".

Ela faleceu em 1815, mas o show continuou.

Seu c�rebro, esqueleto e �rg�os sexuais permaneceram em exposi��o no Museu da Humanidade em Paris at� 1974. Em 2002, seus restos mortais foram repatriados e enterrados na �frica do Sul.

Baartman inaugurou o per�odo de descri��o, medi��o e classifica��o, que logo levaria � hierarquiza��o: a ideia discriminat�ria de que existem ra�as melhores e piores.

O inferior

O cl�max da hist�ria vem com o apogeu imperialista do final do s�culo 19 e in�cio do s�culo 20.

Em ambos os lados do Atl�ntico, o p�blico alimentado por no��es de evangelismo crist�o e superioridade cultural delirou com as recria��es da vida colonial que se tornaram parte habitual das feiras internacionais.

Os visitantes podiam vislumbrar a vida "primitiva" e ter a sensa��o de que haviam "viajado" para lugares desconhecidos.

O alem�o Carl Hagenbeck, comerciante de animais selvagens e futuro empres�rio de muitos zool�gicos europeus, foi um dos pioneiros dessa tend�ncia, se destacando com outras exposi��es de "popula��es ex�ticas" ao mostr�-las junto a plantas e animais como em seu "ambiente natural".

Em 1874, ele exibiu samoanos e sami (lap�es) — e, em 1876, n�bios do Sud�o eg�pcio, uma mostra de enorme sucesso na Europa.


Cartazes das exposições de núbios (1877), calmucos (1883) e somalis (1890) no Jardin Zoologique d'Acclimatation em Paris, com detalhes do cartaz da mostra dos ashantis (1887)
Cartazes das exposi��es de n�bios (1877), calmucos (1883) e somalis (1890) no Jardin zoologique d'acclimatation em Paris %u2014 e detalhes do cartaz da mostra dos ashantis (1887) (foto: BIBLIOTH�QUE NATIONALE DE FRANCE)

Sua ideia de mostrar "selvagens em seu estado natural" foi provavelmente a inspira��o de Geoffroy de Saint-Hilaire, diretor do Jardin d'aclimatation em Paris, que em 1877 organizou dois "espet�culos etnol�gicos" que apresentavam n�bios e inu�tes.

Naquele ano, o p�blico dobrou para um milh�o.

Entre 1877 e 1912, cerca de 30 "exposi��es etnol�gicas" foram apresentadas no Jardin zoologique d'aclimatation.

Tamb�m em Paris, a Exposi��o Universal de 1878 apresentou "aldeias negras", povoadas por pessoas das col�nias do Senegal, Tonquim e Taiti.

O pavilh�o holand�s dessa exposi��o inclu�a uma aldeia javanesa ("kampong") habitada por "nativos" que realizavam dan�as e rituais.

Em 1889, a Feira Mundial, visitada por 28 milh�es de pessoas, tamb�m teve, entre os 400 ind�genas expostos, javaneses que tocavam m�sicas t�o sofisticadas que deixaram o jovem compositor Claude Debussy de queixo ca�do.

Nesse mesmo ano, com a permiss�o do governo chileno, 11 nativos do povo selknam ou ona, incluindo um menino de 8 anos, foram enviados para a Europa para serem exibidos em zool�gicos humanos.


Mulheres selk'nam capturadas
(foto: Getty Images)

Os ind�genas tehuelche, selknam e kaw�sqar da Patag�nia eram uma raridade, por isso foram fotografados, medidos, pesados %u200B%u200Be for�ados a "se apresentar" diariamente, entre 1878 e 1900.

Se sobrevivessem � viagem, a maioria desses "esp�cimes" sul-americanos faleciam pouco tempo depois de chegar aos seus destinos.

Os selknam haviam sido capturados por Maurice Maitre, um dos negociantes que enriqueceu com essa modalidade de tr�fico humano.

Alguns desses empres�rios, como o lend�rio "Buffalo Bill" Cody, organizavam espet�culos itinerantes — como os do Velho Oeste, outro exemplo de estere�tipo racial.

E alguns se distinguiam pelo tratamento dado aos ind�genas, como Truman Hunt, administrador de uma popular "aldeia de igorot".

Ela era povoada por cerca de 1,3 mil filipinos de diferentes tribos que o governo americano havia levado para a Exposi��o Universal de St. Louis de 1904.


Foto de filipinos e americanos misturados
'Extremos se encontram: civilizados e selvagens observando salva-vidas, fam�lia igorot na Feira Mundial, St. Louis, 1904', diz a legenda desta foto (foto: Getty Images)

Neste caso, a motiva��o era pol�tica, segundo Claire Prentice, autora de The Lost Tribe of Coney Island.

Ao exibir os "selvagens", o governo esperava obter apoio p�blico para suas pol�ticas nas Filipinas, mostrando que os habitantes dos territ�rios rec�m-adquiridos estavam longe de estar prontos para uma autogest�o.

A cada um dos "nativos" era prometido um pagamento de US$ 15 por m�s para mostrar sua cultura e costumes.

Hunt tratou t�o mal os igorot que foi preso em 1906, acusado de roubar deles US$ 9,6 mil em sal�rio — e usar a for�a f�sica para tirar centenas de d�lares a mais que os membros da tribo haviam ganhado vendendo artesanato.


Menina igorote observada por visitantes
Uma menina filipina igorot no zool�gico humano de Coney Island, em Nova York, 1905 (foto: Library of Congress)

Racismo cient�fico

As motiva��es para continuar exibindo seres humanos por d�cadas, enfatizando as "diferen�as" entre os "primitivos" e os "civilizados", em Hamburgo, Copenhague, Barcelona, %u200B%u200B%u200B%u200B%u200B%u200BMil�o, Vars�via e outros lugares, passaram a ser outras.

Estavam ligadas, argumentam os acad�micos, a tr�s fen�menos inter-relacionados: a constru��o de um imagin�rio do Outro, a teoriza��o de uma hierarquia de ra�as e a constru��o de imp�rios coloniais.

Eram frequentemente baseadas no racismo cient�fico e em uma vers�o do darwinismo social.

Em 1906, por exemplo, o antrop�logo amador Madison Grant, diretor da Sociedade Zool�gica de Nova York, exibiu o pigmeu congol�s Ota Benga no Zool�gico do Bronx, em Nova York, junto a macacos e outros animais.

A pedido de Grant, um conhecido eugenista, o diretor do zool�gico colocou Ota Benga em uma jaula com um orangotango e o chamou de "O Elo Perdido", para ilustrar que, em termos evolutivos, africanos como Ota Benga estavam mais pr�ximos dos macacos do que dos europeus.


Oto Benga
De acordo com uma placa do lado de fora da casa dos primatas, Oto Benga, de 23 anos, com 1,50 cm de altura e 47 kg, trazido do Rio Kasai, Estado Livre do Congo, na �frica Central, pelo Dr. Samuel P. Verner, seria exibido 'todas as tardes durante o m�s de setembro' (foto: Library of Congress)

Ap�s protestos da Igreja Batista Afro-Americana, ele foi autorizado a andar pelo zool�gico, mas quando foi assediado verbal e fisicamente pelo p�blico, seu comportamento se tornou um pouco violento, e ele foi retirado.

Em 1916, Grant publicou um livro no qual expunha a teoria da superioridade branca e defendia um forte programa de eugenia.

Nesse mesmo ano, Ota Benga se suicidou com um tiro no cora��o.

Fora de moda

No entanto, as Exposi��es Coloniais de Marselha (1906 e 1922) e Paris (1907 e 1931) continuavam a exibir seres humanos em jaulas, muitas vezes nus ou seminus.

A de 1931 foi visitada por 34 milh�es de pessoas em seis meses.

Um n�mero consideravelmente menor de pessoas compareceu � exposi��o de protesto organizada pela Liga Anti-Imperialista comunista, chamada "A verdade sobre as col�nias".

No entanto, o simples fato de terem montado essa exposi��o era um sinal de que as atitudes em rela��o aos zool�gicos humanos estavam mudando gradualmente.


Cartaz da Exposição Colonial de Paris de 1931
Cartaz da Exposi��o Colonial de Paris de 1931 (foto: Getty Images)

Estima-se que cerca de 35 mil pessoas foram exibidas.

A maioria era paga — eram espet�culos, entretenimento p�blico. Os alde�es representavam um papel.

Mas, significativamente, havia barreiras entre o p�blico e esses "artistas", para refor�ar a no��o de separa��o e, n�o precisa nem dizer, de desigualdade.

Essas exposi��es etnogr�ficas foram extintas ap�s a Segunda Guerra Mundial. Curiosamente, foi Adolf Hitler quem as proibiu primeiro.

Em outros casos, lamentavelmente, nem sequer foi necess�rio proibi-las: deixaram de existir n�o por causa de uma reavalia��o �tica, mas porque surgiram novas formas de entretenimento, e as pessoas simplesmente perderam o interesse.

A �ltima a acabar foi a da B�lgica.

No ver�o de 1897, o rei Leopoldo 2º havia levado 267 congoleses para Bruxelas para exibir em seu pal�cio colonial em Tervuren, a leste da capital.

Muitos morreram no inverno, mas tamanha foi a popularidade que mais tarde se estabeleceria uma exposi��o permanente no local.

Para a Exposi��o Internacional e Universal de Bruxelas de 1958, uma celebra��o dos 200 dias de avan�os sociais, culturais e tecnol�gicos do p�s-guerra, foi montada uma aldeia "t�pica", em que os espectadores observavam os congoleses, muitas vezes fazendo goza��o.

"Se n�o reagiam, jogavam moedas ou bananas para eles pela cerca de bambu", escreveu um jornalista da �poca.

Os congoleses se cansaram das condi��es em que eram mantidos e do abuso do p�blico, e o zool�gico humano fechou.

Foi o �ltimo da hist�ria.

Os zool�gicos humanos desempenharam um papel importante no desenvolvimento do racismo moderno.

- Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63371607


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