
Quando agentes da Pol�cia Federal prenderam o russo Sergey Vladimirovich Cherkasov no Aeroporto Internacional de Guarulhos (SP), em abril de 2022, eles n�o imaginavam que aquele homem branco de cabelos claros com documentos falsos e que dizia ser brasileiro apesar do forte sotaque estrangeiro poderia colocar o pa�s em uma disputa aberta entre duas pot�ncias mundiais: R�ssia e Estados Unidos.
Desde a �ltima ter�a-feira (25/04), por�m, Cherkasov passou a ser oficialmente disputado pelos governos dos dois pa�ses. Tanto a R�ssia quanto os Estados Unidos pediram a sua extradi��o. Agora, caber� ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao governo brasileiro decidirem se Cherkasov ser� extraditado e qual pa�s ficar� com ele.
Especialistas e fontes ouvidas pela BBC News Brasil afirmam que o caso cria uma situa��o desconfort�vel para o Brasil, uma vez que o pa�s ter� de decidir sobre os pedidos de entre dois importantes parceiros comerciais e pol�ticos em um momento em que as rela��es entre russos e norte-americanos est�o estremecidas.
Cherkasov foi preso no Brasil ap�s ser impedido de entrar na Holanda, quando tentava iniciar um est�gio no Tribunal Penal Internacional (TPI), em Haia. A corte investiga e julga crimes de guerra. Na ocasi�o, Cherkasov usava documentos falsos brasileiros e adotava a identidade de Victor Muller Ferreira.Os servi�os de intelig�ncia da Holanda alegavam que ele era, na verdade, um oficial do Departamento Central de Intelig�ncia (GRU) da R�ssia que usava a identidade brasileira para se infiltrar no tribunal.
Em junho de 2022, ele foi condenado pela Justi�a brasileira a 15 anos de pris�o pelo uso de documentos falsos. Ele admitiu o uso dos documentos falsos e ter se passado por Victor Muller Ferreira por quase uma d�cada, mas negou, at� agora, seu envolvimento com qualquer tipo de espionagem. Procurados, seus advogados privados n�o responderam aos contatos feitos pela BBC News Brasil.
A Defensoria P�blica da Uni�o (DPU), que defende Cherkasov no Supremo, disse � BBC News Brasil ainda n�o ter conhecimento do pedido de extradi��o feito pelos Estados Unidos.
Ap�s sua pris�o, contudo, a Pol�cia Federal e o FBI passaram a investigar a atua��o de Cherkasov. Documentos e informa��es coletadas apontaram que ele teria usado a identidade brasileira para atuar nos Estados Unidos e na Europa. Procurada diversas vezes sobre o caso, a Embaixada da R�ssia no Brasil n�o vem comentando o epis�dio.
Em mar�o deste ano, o Departamento de Justi�a dos Estados Unidos formalizou uma acusa��o contra ele pelos crimes de atuar como agente estrangeiro em solo norte-americano (pr�tica considerada semelhante � espionagem) e fraudes financeiras e para obten��o de vistos.
Segundo as autoridades do pa�s, Cherkasov faria parte de um grupo especial de espi�es conhecido como "ilegais", que s�o despachados pela R�ssia para outros pa�ses com nomes falsos e com a miss�o de assumir uma personalidade totalmente nova para se infiltrarem nos pa�ses e coletarem informa��es e cumprirem miss�es enviadas por Moscou.
A 'batalha de extradi��es'

A "batalha" das extradi��es entre R�ssia e Estados Unidos come�ou em agosto de 2022, quando a R�ssia pediu a extradi��o de Cherkasov sob a alega��o de que ele era acusado de tr�fico de drogas em seu pa�s.
Em mar�o deste ano, o Departamento de Justi�a dos Estados Unidos, ao formalizar a acusa��o contra Cherkasov, disse acreditar que as alega��es feitas pelo governo russo �s autoridades brasileiras seriam falsas. Elas teriam o objetivo de conseguir que ele retornasse ao seu pa�s de origem.
Em mar�o, o relator do caso, o ministro do STF, Luiz Edson Fachin, deferiu o pedido de extradi��o feito pelos russos, mas condicionou a entrega de Cherkasov ao fim das investiga��es sobre sua atua��o no Brasil que ainda s�o conduzidas pela Pol�cia Federal.
Na ter�a-feira (25/04), foi a vez do governo norte-americano pedir a extradi��o de Cherkasov. A informa��o foi revelada pela BBC News Brasil com base em nota enviada pelo Minist�rio das Rela��es Exteriores (MRE).
Tanto o caso da R�ssia quanto o dos Estados Unidos tramitam no STF, que � a inst�ncia onde processos de extradi��o s�o julgados no Brasil.
O processo de extradi��o feito pelos norte-americanos ainda dever� ser analisado pelos ministros e ministras do STF e ter pareceres da Procuradoria-Geral da Rep�blica. Ainda n�o h� prazo para que ele seja julgado.
A situa��o de Cherkasov chama aten��o agora n�o apenas pelas suspeitas de que ele era um espi�o se fazendo passar por brasileiro, mas por colocar as autoridades brasileiras em uma situa��o pouco comum: a exist�ncia de mais de um pa�s pedindo a extradi��o da mesma pessoa.
Advogados e professores especializados em direito internacional ouvidos pela BBC News Brasil apontam que a legisla��o brasileira estabelece crit�rios para resolver casos como esse.
Eles apontam que a regra geral para a resolu��o desse tipo de conflito est� prevista na Lei de Migra��o, de 2017. Ela prev� que, quando houver mais de um Estado requerendo a extradi��o de uma mesma pessoa, o "desempate" � feito pelos seguintes crit�rios:
-Pa�s onde o acusado cometeu o crime cuja pena for mais grave, de acordo com a lei brasileira
-Se a gravidade dos crimes for a mesma, ter� prefer�ncia o pa�s que fez o pedido primeiro
-Se a gravidade dos crimes for a mesma e os pedidos tiverem sido feitos ao mesmo tempo, a prefer�ncia � do Estado de nacionalidade ou de resid�ncia do alvo da extradi��o
A advogada especializada em direito internacional Daisy Neitzke disse � BBC News Brasil que, al�m dessa regra geral, a legisla��o ainda prev� que o julgamento avalie os termos dos tratados de extradi��o que o Brasil tem tanto com a R�ssia quanto com os Estados Unidos.
Ela disse, no entanto, que, caso a an�lise feita pelo STF chegue � conclus�o de que os crit�rios existentes n�o s�o suficientes para decidir por um pa�s ou por outro, a decis�o final caber� ao Poder Executivo.
"Caso haja alguma d�vida ou se n�o houver uma solu��o na defini��o das gravidades dos crimes, por exemplo, a lei diz que a prefer�ncia ser� determinada pela an�lise do governo brasileiro", afirmou a advogada.
Neitzke disse que n�o � poss�vel fazer uma an�lise comparativa entre os pedidos feitos pela R�ssia e pelos Estados Unidos porque os documentos do processo movido pelos norte-americanos ainda est�o sob sigilo.
Dessa forma, n�o seria poss�vel, por exemplo, saber com exatid�o quais os crimes s�o atribu�dos a Cherkasov. Isso prejudica a an�lise do principal crit�rio de desempate, que � a gravidade dos crimes supostamente cometidos pelo alvo do pedido.
Cen�rios poss�veis e foco no Executivo

O procurador da Rep�blica e professor de Direito Internacional Vladimir Aras avalia que o caso envolvendo Cherkasov coloca o Executivo brasileiro em uma situa��o delicada. "Esse caso cria um problema gigante. Acho que o problema hoje est� muito mais nas m�os do governo do que do STF."
Nos diversos cen�rios em que o STF puder se posicionar sobre os pedidos, a entrega ou n�o de Cherkasov tanto para R�ssia ou Estados Unidos poder� ficar a cargo do Poder Executivo.
"Desde o caso Cesare Battisti, de 2010, o entendimento no Brasil � de que o Supremo autoriza a extradi��o, mas a entrega do extraditando � uma decis�o discricion�ria do Poder Executivo", disse Aras.
O militante de esquerda italiano Cesare Battisti foi condenado por assassinatos na It�lia e fugiu para o Brasil. Em 2009, o STF autorizou a extradi��o de Battisti. Em 2010, por�m, o Supremo julgou um recurso e determinou que a Corte tem o poder de autorizar ou n�o a extradi��o, mas a entrega depende do Executivo. Naquele ano, Lula contrariou a decis�o do STF e negou o envio de Battisti � It�lia.
Aras descreve dois cen�rios.
"O Supremo pode negar o pedido dos americanos e manter o que foi feito pelos russos. Nesse caso, caber� ao governo decidir se entrega ou n�o a pessoa � R�ssia. No outro cen�rio, o Supremo pode tamb�m autorizar o pedido dos americanos. A�, vai caber ao Executivo, novamente, decidir para quem entregar", disse o procurador.
Aras disse ainda que h� um fato inusitado que pode colocar ainda mais press�o sobre o Poder Executivo.
"A lei estabelece crit�rios para pedidos concorrentes ou simult�neos. Mas o pedido feito pelos russos j� tem at� uma decis�o, ent�o n�o sei se entraria nessas duas categorias. Isso faz com que a situa��o n�o esteja prevista na lei. E a lei diz que casos n�o previstos em lei devem ser decididos pelo Executivo", disse.
"Para complicar ainda mais, a lei ainda diz que, nesses casos n�o previstos pela legisla��o, o Executivo ter� que decidir dando prefer�ncia pelo pa�s que com quem o Brasil tiver tratado de extradi��o. S� que o Brasil tem tratados tanto com a R�ssia quanto com os Estados Unidos", complementou.
'Desconforto'
Diplomatas ouvidos pela BBC News Brasil em car�ter reservado admitem que a situa��o cria uma situa��o inusitada para o Brasil, mas afirmam que o tema n�o vem sendo tratado, pelo menos at� agora, como um foco de preocupa��o no governo brasileiro.
Eles dizem avaliar que o caso ainda precisa passar pela an�lise do STF antes de se tornar uma prioridade do governo. Eles tamb�m afirmam que o tema n�o chegou a ser abordado durante a passagem pelo Brasil do ministro das Rela��es Exteriores da R�ssia, Sergey Lavrov, no dia 17 de abril.
A "batalha" de pedidos de extradi��o ocorre em um momento de intensifica��o das tens�es entre os dois pa�ses, especialmente ap�s o in�cio da invas�o da Ucr�nia por tropas russas, em fevereiro de 2022.
Os Estados Unidos s�o o principal fornecedor de armas para a Ucr�nia desde o in�cio do conflito.
Nas �ltimas semanas, o presidente Luiz In�cio Lula da Silva (PT) foi alvo de cr�ticas ap�s ter dado declara��es sobre a guerra na Ucr�nia interpretadas como pr�-R�ssia. Em visita � China, ele disse que os Estados Unidos e alguns pa�ses da Europa estariam "incentivando" a guerra ao enviar armas para a Ucr�nia.
Ap�s as cr�ticas, Lula disse que nunca igualou R�ssia e Ucr�nia e que o Brasil reconhece que o pa�s comandado por Vladimir Putin errou. Em visita a Portugal e Espanha nesta semana, Lula voltou a defender a abertura de canais de di�logo para tentar dar um fim ao conflito.
Al�m das tens�es por conta do conflito na Ucr�nia, R�ssia e Estados Unidos tamb�m enfrentam uma escalada diplom�tica por conta da pris�o do jornalista norte-americano Evan Gershkovich, em mar�o deste ano.
O rep�rter trabalhava para o jornal The Wall Street Journal, mas o governo russo acusa o jornalista de praticar espionagem no pa�s.
Para a doutora em Rela��es Internacionais e professora da Escola Superior de Guerra (ESG) do Minist�rio da Defesa Mariana Kalil, a decis�o sobre se e para que pa�s o Brasil vai extraditar Cherkasov cria uma situa��o diplomaticamente desconfort�vel, mas n�o a ponto de afetar substancialmente as rela��es do pa�s com R�ssia e Estados Unidos.
"Gerar insatisfa��o para qualquer parceiro n�o � confort�vel, mas faz parte de rela��es complexas em um mundo cada vez mais desafiador. No entanto, repito: n�o estamos perto de pontos de inflex�o e as rela��es do Brasil com os Estados Unidos, em especial, historicamente importantes e de crescente confian�a m�tua, s�o capazes de amortecer crises ou de encapsular crises para n�o comprometer o todo da agenda", diz Kalil.
A BBC News Brasil pediu esclarecimentos sobre o caso aos minist�rios da Justi�a e Seguran�a P�blica (MJSP) e das Rela��es Exteriores, ao Supremo Tribunal Federal e ao Departamento de Estado dos Estados Unidos. O MJSP n�o se pronunciou at� o momento.
O Itamaraty enviou uma nota afirmando que os processos de extradi��o dependem da autoriza��o do STF e a entrega do extraditando cabe ao Poder Executivo.
O Departamento de Estado dos Estados Unidos encaminhou os questionamentos ao Departamento de Justi�a, respons�vel pelas investiga��es sobre Cherkasov em solo norte-americano, mas nenhuma resposta foi enviada.
O STF, por meio de nota, n�o comentou o caso e disse n�o ter informa��o sobre o pedido de extradi��o formulado pelos Estados Unidos.
