
“No meu tempo dava para confiar nas pessoas”
“O mundo ficou mais desonesto”
“A moral coletiva est� em decl�nio”
Frases do tipo refletem um sentimento comum, de que valores sociais importantes se corromperam ao longo do tempo.
No entanto, dois pesquisadores americanos acham que essa percep��o parece ser, na verdade, uma ilus�o coletiva, que acaba tendo efeitos nocivos para a sociedade e at� para a pol�tica.
“Por toda a minha vida, escutei as pessoas falando sobre o decl�nio da bondade humana”, diz o psic�logo experimental americano Adam Mastroianni, ao explicar por que decidiu colocar isso � prova em uma pesquisa cient�fica para seu p�s-doutorado na Universidade Columbia (EUA).
Os resultados, coletados por Mastroianni em conjunto com o tamb�m psic�logo Daniel Gilbert, da Universidade Harvard, foram publicados em junho na revista Nature.
A dupla de pesquisadores come�ou analisando 177 pesquisas de opini�o feitas entre 1949 e 2019, nos Estados Unidos, com uma amostra de 220 mil respondentes.
Na ampla maioria dessas pesquisas, os americanos responderam que os valores morais estavam se perdendo.Depois, os pesquisadores decidiram observar se o mesmo comportamento se repetia no mundo. Analisaram 58 pesquisas com 354 mil participantes em 59 pa�ses, incluindo duas no Brasil, realizadas em 2002 e 2006.
Em uma, conduzida pelo instituto Pew, 94% dos participantes brasileiros afirmaram que o decl�nio moral era um problema grande ou muito grande, �ndice acima da m�dia (na casa dos 80%) geral dos demais pa�ses pesquisados.
Mastroianni destaca que a percep��o de que os valores sociais est�o corro�dos em compara��o com o passado � sentida tanto entre jovens quanto idosos, e entre pessoas alinhadas a variados espectros pol�ticos.
Nos EUA, por exemplo, pesquisas apontam que tanto conservadores quanto progressistas concordavam, mesmo que em graus diferentes, que a sociedade estava pior do que era antes.
Ou seja, essa percep��o independe do conceito subjetivo que cada indiv�duo tem sobre a pr�pria moralidade e sobre a quais valores sociais elas d�o import�ncia.
Agora, eis o ponto interessante: a segunda etapa da pesquisa de Mastroianni e Gilbert coloca em xeque essa percep��o de piora.
Nessa fase, os dois psic�logos focaram nos resultados de mais de cem pesquisas globais, conduzidas entre 1965 e 2020, em que os participantes respondiam a perguntas do tipo: "como voc� avalia o estado da moralidade no seu pa�s?".
A maioria respondia que achava a situa��o ruim. Mas esse �ndice se manteve est�vel - sem sinais significativos de piora - mesmo com o passar dos anos.
O mesmo acontecia quando as pessoas respondiam se tinham sido tratadas com respeito no dia anterior, ou se achavam as pessoas sol�citas: nada indicou que houve uma piora com o passar dos anos.
Algo que n�o bate, portanto, com a percep��o de decl�nio dos valores morais.

“Se, assim como alegavam os participantes da etapa 1, a moralidade est� em decl�nio h� d�cadas, seria f�cil identificar mudan�as nas respostas das pessoas a essas perguntas (da etapa 2). (Mas) foi bastante dif�cil encontrar qualquer mudan�a nas respostas das pessoas”, afirma Mastroianni em seu blog.
“Fizemos testes estat�sticos para identificar se havia mudan�as significativas nas respostas das pessoas ao longo do tempo. N�o encontramos nenhuma. �s vezes esses indicadores morais subiam um pouco (como em 2021, no gr�fico abaixo), mas na m�dia eles n�o se moveram.”
Ou seja, faz d�cadas que muita gente acha que a sociedade est� pior do que era antes, mas Mastroianni defende que essa sensa��o n�o � corroborada pelas pr�prias pessoas entrevistadas.
“Voc� imaginaria que, em lugares que fossem menos inst�veis e agora est�o mais est�veis, menos pessoas diriam que existe um decl�nio moral acontecendo, e vice-versa”, diz Mastroianni � BBC News Brasil.
“Mas n�o vemos isso nas pesquisas, o que sugere que a sensa��o das pessoas n�o necessariamente coincide com a experi�ncia recente delas, embora elas achem que sim. Isso sugere que se trata de algo psicol�gico, e n�o da realidade”, ele agrega.
‘Como voc� pode achar que as coisas n�o pioraram?’
Mastroianni ressalta que isso n�o quer dizer que o estado atual do mundo esteja bom. S� que a compara��o com o passado n�o � produtiva.
“� muito comum eu ouvir das pessoas: ‘como voc� pode achar que as coisas n�o est�o piores? Olha quantas coisas ruins acontecem no mundo’. Mas (...) o que estamos investigando �: como as pessoas tratam umas �s outras? Nisso, temos bons indicativos de que as coisas n�o pioraram”, argumenta o pesquisador.
Mas ent�o por que � t�o persistente essa sensa��o de que as pessoas est�o piores?
No artigo na Nature, os pesquisadores ressaltam dois pontos:
“Primeiro, v�rios estudos j� indicaram que seres humanos tendem a buscar e a reter informa��es negativas a respeito de outras pessoas, e os meios de comunica��o em massa satisfazem essa tend�ncia com um foco desproporcional em (not�cias sobre) pessoas se comportando mal”, escrevem.
“Sendo assim, as pessoas podem acabar se deparando com mais informa��es negativas do que positivas sobre a moralidade geral, e esse ‘efeito de exposi��o enviesada’ pode explicar por que as pessoas acreditam que a moralidade atual � relativamente baixa.”
Em segundo lugar, eles dizem que “numerosos estudos j� demonstraram que, quando as pessoas relembram eventos positivos e negativos do passado, os eventos negativos t�m mais probabilidade de serem esquecidos, lembrados de modo diferente ou de terem perdido seu impacto emocional.”
Os pesquisadores tamb�m conduziram experimentos pr�prios, perguntando diretamente a uma amostra de participantes: ‘qu�o gentis/boas as pessoas s�o hoje?’, em compara��o com diferentes momentos no passado. E, curiosamente, os participantes identificavam um decl�nio moral apenas na dura��o de suas pr�prias vidas, n�o antes de terem nascido.
“� como se fosse: ‘foi s� quando eu cheguei � Terra que (a moralidade) come�ou a piorar’”, diz Mastroianni.
Impactos pol�ticos e sociais

Mas por que importa se o decl�nio moral � ilus�rio ou n�o?
Mastroianni acredita que essa sensa��o pode ter consequ�ncias perigosas, inclusive na pol�tica.
No artigo cient�fico, ele e Gilbert citam uma pesquisa de opini�o realizada em 2015 nos EUA, um ano antes da elei��o presidencial, em que 76% dos entrevistados afirmavam que “lidar com a fal�ncia moral do pa�s” deveria ser uma das maiores prioridades do futuro governo.
“Os EUA enfrentam muitos problemas bem documentados, de mudan�as clim�ticas e terrorismo a injusti�a racial e desigualdade econ�mica - e, no entanto, a maioria dos americanos acredita que o governo deveria dedicar seus escassos recursos a reverter uma tend�ncia imagin�ria”, argumentam os pesquisadores.
Em outras palavras, se a fal�ncia moral for mais psicol�gica do que baseada em fatos, como combat�-la com pol�ticas p�blicas?
“Essa ideia de que as pessoas costumavam ser melhores umas com as outras - e n�o s�o mais - causa uma sensa��o muito ruim, que as pessoas ficam tentando desfazer”, detalha Mastroianni � BBC News Brasil.
“E isso � parte do perigo: voc� n�o consegue desfazer, porque a tend�ncia na realidade n�o existe. (...) O que existem s�o evid�ncias de que as pessoas agem do mesmo modo que a gera��o anterior. Ent�o quando acreditamos que vamos mudar a sociedade e trazer de volta o passado, ou a �poca em que as pessoas se respeitavam, a verdade � que n�o vamos conseguir. � como ligar o extintor de inc�ndio num pr�dio que n�o est� em chamas: voc� s� vai deixar todo mundo molhado.”
� um contexto que, na vis�o de Mastroianni, favorece pol�ticos autorit�rios, que ganham apelo tentando resgatar um passado glorioso que pode n�o ser fact�vel.
“Isso � exatamente o que aspirantes a d�spotas fazem: alardeiam que h� uma cat�strofe como forma de justificar suas medidas extremas”, afirma o pesquisador em seu blog.
Por fim, ele acha que essa percep��o tamb�m leva ao isolamento de pessoas ou de grupos, diante da resist�ncia maior em interagir com outros - aqueles que personifiquem essa suposta decad�ncia moral.
‘Sempre suspeitei disso’ x ‘tenho provas’
Desde que o artigo foi publicado na Nature, Mastroianni diz que tem recebido rea��es variadas de leitores.
“Tem gente que me escreve dizendo, ‘eu sempre suspeitei disso (que o decl�nio moral � uma ilus�o), obrigado por colocar isso na forma de dados. Vou mostrar ao meu cunhado e mostrar como ele estava errado’. Mas tamb�m tem gente que me diz: ‘tenho provas de que a moralidade est� decaindo, vejo muito mais cercas e muros no meu bairro, algo que n�o aconteceria se as pessoas estivessem sendo legais umas com as outras’”, afirma ele.
“Tamb�m observei isso nos dados que eu pr�prio coletei. (...) As pessoas que achavam que a sociedade piorou me diziam: ‘ah, agora existem as redes sociais, � t�o mais f�cil ser maldoso com algu�m que n�o est� na sua frente’. E as poucas pessoas que achavam que a sociedade melhorou diziam: ‘ah, agora existem as redes sociais, � mais f�cil perceber que os seres humanos n�o s�o t�o diferentes assim uns dos outros’. E ambas coisas s�o verdade. (...) Acho que ambas as rea��es refletem que as pessoas t�m suas pr�prias teorias sobre o mundo e elas apenas adequam as evid�ncias a essas teorias”.
*Com gr�ficos de Caroline Souza, da equipe de Jornalismo Visual da BBC
