Discurso negacionista, confus�o na divulga��o dos dados e intermin�veis cr�ticas � cobertura da imprensa diante de uma epidemia.
Tais caracter�sticas t�m sido atribu�das por especialistas � postura do governo Jair Bolsonaro em meio � pandemia do novo coronav�rus, mas postura semelhante foi adotada em um passado n�o muito distante: na pior epidemia de meningite enfrentada pelo Brasil nos anos 70, durante a ditadura militar.
M�dicos que vivenciaram a epidemia de meningite relatam � BBC News Brasil semelhan�as e diferen�as entre o passado e o presente. Na opini�o deles, Bolsonaro trilha caminho semelhante ao dos militares na d�cada de 70.
O Minist�rio da Sa�de, por sua vez, tem negado qualquer inten��o de esconder dados e voltou a divulgar os n�meros em conson�ncia com os do Conselho Nacional de Secret�rios de Sa�de (Conass), ap�s uma interrup��o que provocou cr�ticas.
A epidemia dos anos 70
Era abril de 1971 quando teve in�cio aquela que se tornaria a maior epidemia de meningite da hist�ria do Brasil. Os primeiros casos foram identificados no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de S�o Paulo. Meses depois, a propaga��o da enfermidade ganhou propor��es epid�micas.
O pa�s havia passado por dois surtos da doen�a anteriormente, em 1923 e em 1945, mas nenhum deles havia sido t�o grave.
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Durante a epidemia, o Brasil foi acometido por dois subtipos de meningite meningoc�cica: do tipo C, a partir de abril de 71, e do tipo A, em maio de 1974.
Os mais atingidos, a princ�pio, foram moradores de regi�es carentes, que tiveram sintomas cl�ssicos da doen�a, como dor de cabe�a, febre alta e rigidez na nuca. Nos bairros mais pobres, muitas pessoas morreram sem diagn�stico ou tratamento.
O avan�o da epidemia foi pouco noticiado. Isso porque era tempo de 'milagre econ�mico' e o governo militar n�o admitia a exist�ncia do problema sanit�rio. Na �poca, m�dicos foram proibidos de conceder entrevistas sobre o tema. Reportagens sobre a enfermidade foram censuradas. N�o havia dados oficiais.
"Desde o in�cio, os m�dicos alertaram as autoridades sobre a epidemia e a necessidade de a��es para que ela fosse contida. Mas os militares n�o tomavam medidas sobre o assunto", relembra o epidemiologista Eliseu Waldman, de 73 anos, que na �poca era residente no Instituto de Infectologia Em�lio Ribas, em S�o Paulo.

Em alguns pontos, os profissionais de sa�de que trabalharam durante a epidemia de meningite consideram que o per�odo atual � muito pior, em decorr�ncia de medidas do presidente e por se tratar de um v�rus de propaga��o muito r�pida. Em outros aspectos, ressaltam que a situa��o atual � melhor, como sob o ponto de vista da democracia, que impede que as principais informa��es sobre a covid-19 sejam ocultadas.
Para os m�dicos que atuaram no combate � meningite, no entanto, a postura atual de Bras�lia lembra a dos militares de cinco d�cadas atr�s.
"Estou revivendo algo que jamais imaginei que fosse acontecer de novo, no sentido sanit�rio e pol�tico", desabafa o infectologista Roberto Focaccia, de 74 anos, que atuou na linha de frente contra a epidemia de meningite.
Da meningite ao coronav�rus
Quando os casos de meningite come�aram a aumentar exponencialmente, o governo militar se preocupou em esconder a situa��o. Poucas pessoas sabiam do problema. Os ve�culos de comunica��o logo foram impedidos de informar sobre o assunto.
"Os epidemiologistas da �poca tiveram acesso �s notifica��es e viram que a incid�ncia de meningite estava muito acima do habitual. N�s, profissionais da sa�de, sab�amos da real situa��o, mas �ramos impedidos de falar com a m�dia", relata a epidemiologista Rita Barradas Barata, de 68 anos. No per�odo, ela era aluna do internato em medicina do Em�lio Ribas.
"A preocupa��o dos militares na �poca era com o 'milagre econ�mico'. Eles n�o queriam, em hip�tese nenhuma, associar um pa�s crescendo economicamente com o desgaste causado por uma epidemia", acrescenta Rita.
O descaso das autoridades com a epidemia causou mortes e subnotifica��es, apontam os profissionais de sa�de.
"A popula��o n�o sabia, a princ�pio, que tinha que tomar medidas, como evitar aglomera��es, para se prevenir da meningite. Isso n�o sa�a na m�dia, porque a ditadura n�o permitia. Foi uma �poca terr�vel", comenta a infectologista Marinella Della Negra, de 75 anos, que era residente do Em�lio Ribas na �poca.
"Essa tentativa de silenciamento impediu que a��es r�pidas e adequadas fossem tomadas", disse a jornalista Catarina Schneider, em entrevista � BBC News Brasil no fim de mar�o. Mestre em Comunica��o Social, ela � autora da tese 'A Constru��o Discursiva dos jornais O Globo e Folha de S.Paulo sobre a Epidemia de Meningite na Ditadura Militar Brasileira' (1971-1975).
A censura da �poca proibia mat�rias sobre o tema porque afirmava que elas seriam alarmistas e tendenciosas.
"Era muito f�cil ocultar dados na �poca, porque n�o havia um sistema de informa��o consolidado com levantamentos da sa�de p�blica", diz o infectologista Eliseu Waldman.
Os m�dicos passavam informa��es em "off" para os jornalistas, para alertar a popula��o. As poucas mat�rias publicadas sobre o assunto eram desmentidas pelas autoridades, que diziam que n�o se tratava de uma situa��o preocupante.
"Diziam que esconder isso era quest�o de Seguran�a Nacional. Por v�rias vezes, demos entrevistas a jornais e ped�amos para n�o nos identificar. No dia seguinte, havia uma receita de bolo ou uma poesia, em vez da reportagem", relembra Roberto Focaccia.
Os profissionais de sa�de tra�am um paralelo entre a situa��o vivida com a covid-19 e a da meningite nos anos 70.
"O presidente Bolsonaro quis esconder a real situa��o da pandemia (em refer�ncia ao per�odo, no come�o de julho, em que o Minist�rio da Sa�de deixou de divulgar dados consolidados de mortes por covid-19), como se fosse poss�vel. Hoje, todo mundo j� sabe o que estamos passando com o coronav�rus", diz Rita Barradas.
Uma das principais aliadas da popula��o, em meio � pandemia do novo coronav�rus, � a tecnologia. A internet se tornou pe�a importante no enfrentamento � covid-19.
"A diferen�a entre a pandemia de agora e a epidemia de meningite � que no passado havia uma censura muito grande e n�o era poss�vel veicular o que realmente estava acontecendo. Hoje n�o cabe mais a postura totalit�ria, principalmente com o advento da internet. O medo acabou e os profissionais de sa�de falam sobre o que est� acontecendo, apesar de o presidente tentar negar a gravidade da doen�a", declara Marinella Della Negra.
O negacionismo
Em 1973, a meningite chegou tamb�m nas �reas mais nobres e pessoas de alto poder aquisitivo passaram a morrer em decorr�ncia da meningite. O governo militar continuou negando a exist�ncia da epidemia.
O pico da epidemia no pa�s foi registrado em 1974. Na �poca, a propaga��o de outro sorotipo causou crescimento ainda maior de casos.
Al�m de S�o Paulo, ao menos outro seis Estados brasileiros, nas regi�es Sul e Sudeste, sofreram intensamente com a enfermidade. Havia, ao menos, 67 mil casos nas �reas mais afetadas, sendo 40 mil deles apenas em S�o Paulo.
O Instituto Em�lio Ribas, que era refer�ncia no tratamento, tinha 300 leitos dispon�veis, mas chegou a acompanhar cerca de 2 mil pacientes. "O sistema de sa�de n�o estava preparado para isso. Hospitais que n�o estavam ativados precisaram ser alugados pelo poder p�blico para receber os pacientes", relata Eliseu Waldman.
"Vi muita gente morrer em quatro ou cinco horas. Era uma coisa louca. N�o cabia mais gente no Em�lio Ribas. N�o havia mais �rea administrativa. Tudo virou espa�o para pacientes com meningite. Muitos pacientes dormiam no ch�o. Alguns seguravam o pr�prio soro", diz Roberto Focaccia.
"N�s, m�dicos, trabalh�vamos como loucos. Mor�vamos no hospital, praticamente", comenta Focaccia. Sobrecarregados, os profissionais de sa�de usavam capacetes, �culos e botas para se proteger. Assim como no contexto do novo coronav�rus, tamb�m houve registros de trabalhadores da sa�de contaminados com a meningite.
Com o aumento de casos, os pacientes menos graves passaram a ser levados outras unidades de sa�de de S�o Paulo. At� escolas foram adaptadas para receber doentes. Os mais graves permaneceram no Em�lio Ribas.
Sem informa��es, muitas pessoas desconheciam os cuidados necess�rios para se prevenir e n�o sabiam os sintomas da meningite. "Muita gente morreu por falta de informa��o. N�o houve press�o do governo para adotar medidas urgentes. As consequ�ncias da postura dos militares foram terr�veis", lamenta Focaccia.
Em mar�o de 1974, o general Ernesto Geisel assumiu a Presid�ncia do pa�s, no lugar do general M�dici. Ele nomeou o m�dico sanitarista Paulo de Almeida Machado para o Minist�rio da Sa�de.
Machado concedeu uma entrevista para a jornalista Eliane Cantanhede, na �poca rep�rter da revista Veja. Ele admitiu que o Brasil vivia uma epidemia, alertou a popula��o e ensinou medidas de higiene. No entanto, a entrevista foi vetada pela censura. O principal argumento era que as declara��es poderiam causar p�nico e n�o havia vacina para todos.
Ao comparar a epidemia do passado com a situa��o do novo coronav�rus, os m�dicos que atuaram no enfrentamento � meningite acreditam que a conduta negacionista de Bolsonaro, que chegou a classificar a covid-19 como uma "gripezinha", pode ser mais perigosa que a postura dos militares da d�cada de 70.
"Os militares tentavam reduzir a import�ncia da epidemia, mas n�o havia nenhum deles abra�ando algu�m ou incentivando que as pessoas se expusessem. Na �poca, apesar de n�o divulgarem o correto a fazer, n�o havia algu�m incentivando pr�ticas erradas, como temos hoje. Por exemplo, quando um presidente sai sem m�scara, sendo que a orienta��o � para us�-la, ele est� incentivando as pessoas a agirem errado", diz Marinella Della Negra.
Marinella tamb�m critica fala recente de Bolsonaro, que incentivou seus seguidores a invadirem hospitais e filmarem o que encontrarem no interior.
"� totalmente insano pedir para as pessoas entrarem em hospitais para filmar, sem ter conhecimento dos riscos disso. � preciso respeitar os pacientes e os profissionais de sa�de. Nem na ditadura foi sugerido algo parecido. � uma conduta fora da racionalidade. � uma aus�ncia total de respeito", assevera a infectologista.
O fim da epidemia
Em meados de 1974, o governo j� n�o conseguia mais esconder o grave problema sanit�rio. Na �poca, aulas foram suspensas e eventos foram cancelados, como os Jogos Pan-Americanos de 1975, que aconteceriam em S�o Paulo, mas foram transferidos para a Cidade do M�xico.
"Come�ou uma psicose coletiva e as pessoas ficaram com medo de se contaminar. Ningu�m passava mais em frente ao Em�lio Ribas. Os t�xis n�o paravam mais l�", relembra Focaccia.
Na �poca, assim como no per�odo atual, tamb�m havia as not�cias mentirosas sobre a epidemia, hoje conhecidas como fake news. Ainda que n�o houvesse redes sociais, os boatos eram propagados rapidamente por meio do boca a boca. Uma dessas mentiras dizia que uma pessoa poderia contrair meningite apenas ao passar na rua do Em�lio Ribas, mesmo sem proximidade com qualquer pessoa infectada.
"As fake news sempre s�o desinformativas. Em meio a uma pandemia, como agora, � um crime contra a sa�de p�blica. � t�o grave quanto a falta de informa��o, pois ambos levam a popula��o a condutas de risco", pontua Marinella Della Negra. As redes sociais e aplicativos de mensagem colaboram atualmente para a r�pida propaga��o das fake news, que t�m alcance maior que os boatos do passado. Em raz�o disso, especialistas ressaltam a necessidade de buscar informa��es corretas e em fontes confi�veis.
As not�cias oficiais sobre a epidemia de meningite, confirmadas pelo governo militar, come�aram a ser veiculadas somente no come�o de 1975. Isso porque o Brasil havia assinado, no ano anterior, um acordo com o Instituto Pasteur M�rieux e importou cerca de 80 milh�es de doses de vacina contra a meningite.
Os n�meros oficiais sobre a doen�a passaram a ser divulgados pelo governo militar para estimular a popula��o a aderir � Campanha Nacional de Vacina��o Contra a Meningite Meningoc�cica (Camem), que teve in�cio em abril de 75.
Em menos de uma semana de campanha, cerca de 90% da popula��o brasileira foi vacinada. "Fizeram uma opera��o militar para imunizar as pessoas", comenta Eliseu Waldman. A imuniza��o era feita por meio de uma pistola de vacina��o.
"Mas na �poca da vacina��o, a epidemia estava em franco decl�nio, porque a popula��o j� estava naturalmente imunizada", diz Focaccia � BBC News Brasil.
Os n�meros sobre as mortes causadas pela epidemia (de 1970 a 75) s�o divergentes. H� levantamentos que apontam para 1,6 mil apenas em S�o Paulo. J� uma edi��o do jornal O Globo, de 30 de dezembro de 74, diz que foram 2,5 mil mortos em S�o Paulo, 304 no Rio de Janeiro e 111 no Rio Grande do Sul.
"Os dados da epidemia foram minimizados, assim como acontece agora com a covid-19. Na �poca, computavam apenas testes com cultura positiva, mas a maioria era falso negativo, porque muitos pacientes se automedicavam com antibi�ticos para a meningite e isso falseava os resultados do exame de cultura do l�quor (o l�quido da espinha) ou de sangue", relata Focaccia.

'Situa��o muito pior'
Enquanto a epidemia de meningite demorou anos para ser controlada, a pandemia do novo coronav�rus segue permeada por incertezas. Apesar de haver diversos testes pelo mundo, ainda n�o h� vacinas ou medicamentos com efic�cia comprovada contra o Sars-Cov-2, nome oficial do v�rus.
Do ponto de vista sanit�rio, a epidemiologista Rita Barradas Barata cita que o Sars-Cov-2 traz mais preju�zos que a epidemia de meningite, pois se trata de um v�rus com r�pida propaga��o.
"Os primeiros casos de meningite foram registrados no come�o do s�culo passado. Por isso, muitas pessoas desenvolveram imunidade ao longo da vida. Al�m disso, j� havia tratamento indicado no per�odo da epidemia, apesar de a vacina ter chegado depois ao pa�s. Mas o novo coronav�rus circula pela primeira vez entre humanos, ent�o ningu�m tem imunidade ou mem�ria relacionada a ele, por isso a propaga��o � muito r�pida", explica.
Sob o aspecto pol�tico, ela ressalta a import�ncia de vivermos em um per�odo de democracia. No entanto, avalia que grande parte da conduta de Bolsonaro � mais prejudicial para os brasileiros que as medidas adotadas pelos militares no combate � epidemia de meningite.
"H� coisas que nem na ditadura aconteceram. Na epidemia de meningite, nenhum profissional de sa�de recebeu ordem para tratar um paciente assim ou assado. Os m�dicos tinham liberdade para seguir o tratamento que consideravam adequado", declara, em refer�ncia � orienta��o do governo Bolsonaro para o tratamento com cloroquina em pacientes com a covid-19.
Rita considera as a��es de Bolsonaro preocupantes. Em todo o mundo, o presidente tem sido criticado em raz�o da postura adotada no enfrentamento � pandemia. Com mais de 53 mil �bitos, o Brasil � o segundo com mais mortes pelo novo coronav�rus.
"� muito bom termos a liberdade de imprensa, que permite que as pessoas saibam o que est� acontecendo. A ditadura foi um per�odo horr�vel. Mas n�o havia nada como o que est� acontecendo agora, em rela��o � postura do presidente. O que estamos vivendo hoje � algo que nunca vi", diz.
"N�o h� um comando. O Minist�rio da Sa�de est� tomado por diversos militares. Na �poca da epidemia de meningite, os m�dicos sanitaristas eram os respons�veis por avaliar as medidas que seriam tomadas. Mas agora, nem os m�dicos s�o ouvidos mais", critica Rita.
Em meio � pandemia, o Brasil est� h� um m�s sem ministro da sa�de, desde a sa�da do m�dico Nelson Teich. Ele deixou a pasta por se recusar a contraria evid�ncias cient�ficas para relaxar o isolamento social e recomendar o uso da cloroquina no tratamento da covid-19, como queria Bolsonaro. Desde ent�o, o Minist�rio da Sa�de � comandado por um militar que est� interinamente na fun��o, o general Eduardo Pazuello.
"Nunca imaginei que fosse ver algo assim. � uma coisa assustadora. Sinceramente, fico deprimida com os rumos que as coisas est�o tomando no pa�s", lamenta Rita.
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