O texto foi corrigido �s 10h32 de 10 de julho de 2020*.
Pesquisadores de pelo menos quatro pa�ses, incluindo o Brasil, apontaram a presen�a do novo coronav�rus em amostras de esgoto coletadas semanas ou meses antes do primeiro caso registrado oficialmente na cidade chinesa de Wuhan, epicentro da pandemia de covid-19.
Mas o que essas descobertas de v�rus nas fezes mudam sobre o que sabemos do v�rus Sars-CoV-2?
Cientistas indicam tr�s eixos principais:
- monitoramento: detec��es no esgoto podem servir como ferramenta ampla e barata de vigil�ncia do avan�o da covid-19; h� ao menos 15 pa�ses onde se estuda ou se adota essa estrat�gia
- poss�vel risco � sa�de: presen�a do material gen�tico do v�rus nas fezes indica que o esgoto pode ser uma via de cont�gio
- origem da pandemia: o v�rus pode ter circulado bem antes do que afirma a cronologia oficial
Em rela��o ao terceiro ponto, o estudo que mais chamou a aten��o foi liderado por pesquisadores da Universidade de Barcelona. Segundo eles, havia presen�a do novo coronav�rus em amostras congeladas coletadas na Espanha de 15 de janeiro de 2020 (41 dias antes da primeira notifica��o oficial no pa�s) e de 12 de mar�o de 2019 (nove meses antes do primeiro caso reportado na China).
Mas como um v�rus com potencial pand�mico poderia ter circulado sem chamar a aten��o ou criar uma explos�o de casos, como ocorreu em Wuhan? Especialistas citam ao menos cinco hip�teses.
Uma, � que pacientes podem ter recebido diagn�sticos errados ou incompletos de doen�as respirat�rias, algo que teria contribu�do para o espalhamento inicial da doen�a. Outra � que o v�rus n�o tenha se espalhado com for�a a ponto de originar um surto.
H� tamb�m duas possibilidades de problemas na an�lise: uma eventual contamina��o da amostra ou um resultado falso positivo, por causa da similaridade gen�tica com outros v�rus respirat�rios ou de falhas no kit de teste.
Por fim, h� quem fale em um v�rus � espera de ativa��o. Tom Jefferson, epidemiologista ligado ao Centro de Medicina Baseada em Evid�ncias da Universidade de Oxford, afirmou ao ve�culo brit�nico The Telegraph que h� um n�mero crescente de evid�ncias que apontam que o Sars-CoV-2 estava espalhado pelo mundo antes de emergir na �sia. "Talvez estejamos vendo um v�rus dormente que foi ativado por condi��es ambientais."
Para o virologista Fernando Spilki, presidente da Sociedade Brasileira de Virologia, � preciso aguardar mais estudos sobre o tema antes de tirar qualquer conclus�o sobre a incid�ncia do v�rus meses antes da origem conhecida da pandemia, em dezembro.
"Todos estes resultados t�m de ser avaliados com cautela. A pr�pria caracter�stica do Sars-CoV-2 de induzir casos de bastante gravidade e letalidade relativamente alta na popula��o torna improv�vel que este v�rus circule em uma regi�o sem evid�ncia de casos cl�nicos."
O que afirma a pesquisa liderada pela UFSC?
A equipe liderada por pesquisadores da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) analisou seis amostras de 200 ml de esgoto bruto congelado, coletadas em Florian�polis de 30 de outubro de 2019 a 4 de mar�o de 2020.
No artigo, que ainda n�o foi analisado por revisores acad�micos, os pesquisadores afirmam que a presen�a do v�rus foi detectada a partir de 27 de novembro. Naquela amostra havia, segundo eles, 100 mil c�pias de genoma do v�rus por litro de esgoto, um d�cimo da identificada na amostra de 4 de mar�o. Santa Catarina registraria oficialmente os dois primeiros casos em 12 de mar�o, em Florian�polis.
Segundo os pesquisadores, o v�rus foi identificado nas amostras de esgoto por meio do teste RT-PCR, capaz de detectar a presen�a do Sars-CoV-2 a partir de 24 horas ap�s a contamina��o do paciente. Esse teste, cuja sigla significa transcri��o reversa seguida de rea��o em cadeia da polimerase, basicamente transforma o RNA (material gen�tico) do v�rus em DNA para identificar sua presen�a ou n�o na amostra examinada.

"Isso demonstra que o Sars-CoV-2 circulava na comunidade meses antes de o primeiro caso ser reportado" no continente americano, escrevem os autores do artigo.
A bi�loga Gislaine Fongaro, l�der da pesquisa e professora do departamento de microbiologia, imunologia e parasitologia da UFSC, afirmou que os primeiros resultados despertaram ceticismo na equipe. Por isso, acionaram outros departamentos da universidade a fim de rechecarem e repetirem todos os testes com diversos marcadores virais (para evitar que outros v�rus parecidos confundissem a detec��o, por exemplo).
Segundo ela, a presen�a do v�rus meses antes do registro oficial pode ser explicada, por exemplo, pelo fato de que as pessoas podem ou n�o ter ficado doentes ou atribu�do os sintomas a outras doen�as. Mas, de acordo com Fongaro, apenas estudos futuros podem explicar como o v�rus foi parar no esgoto de Florian�polis em novembro.
Um sequenciamento gen�tico do v�rus encontrado no esgoto poderia, por exemplo, ser comparado ao outros sequenciamentos feitos ao redor do mundo a fim de estimar a data de origem precisa do Sars-CoV-2 encontrado.
Quando a pandemia de fato come�ou?
A cronologia oficial da pandemia de covid-19 tem mudado ao longo do tempo porque ainda h� muito a ser descoberto sobre a doen�a, o modo como ela se espalha e, principalmente, sua origem. N�o est� claro ainda como e quando o v�rus Sars-CoV-2 passou a infectar a esp�cie humana.
H� consenso entre cientistas de que o primeiro surto ocorreu em um mercado de Wuhan que vendia animais selvagens vivos e mortos. Mas pesquisadores n�o sabem se o v�rus surgiu ali ou "se aproveitou" da aglomera��o para se espalhar de uma pessoa para outra. "Se voc� me pergunta qual � a maior possibilidade, digo que o v�rus veio de mercados que vendem animais selvagens", afirmou Yuen Kwok-yung, microbiologista da Universidade de Hong Kong, � BBC.

As lacunas persistem. Os primeiros casos de covid-19 foram reportados oficialmente no fim de dezembro, mas um estudo de m�dicos de Wuhan, publicado em janeiro pela revista m�dica The Lancet, descobriu posteriormente que o primeiro caso conhecido de covid-19 em um humano havia ocorrido semanas antes. Trata-se de um idoso de Wuhan que n�o tinha nenhum v�nculo com o mercado p�blico.
A cronologia da pandemia no Brasil tamb�m pode mudar. O primeiro diagn�stico oficial no pa�s ocorreu em 26 de fevereiro, um empres�rio de 61 anos de S�o Paulo que retornava de uma viagem � It�lia, onde come�ava a surgir uma explos�o de casos.
Mas an�lises feitas por pesquisadores da Funda��o Oswaldo Cruz (Fiocruz) apontam ao menos um caso de Sars-Cov-2 no Brasil um m�s antes, entre 19 e 25 de janeiro. O v�rus tamb�m teria circulado entre os habitantes do pa�s um m�s antes do que o governo federal estimava, segundo a institui��o.
Para chegar a essas conclus�es, a Fiocruz se baseou em dois pontos, principalmente. A an�lise retroativa de amostras coletadas de pacientes em meses anteriores e a compara��o do n�mero de pessoas com doen�as respirat�rias sem causa aparente em 2020 com anos anteriores.
Como ent�o sanar essas lacunas? H� quem defenda investiga��es � moda antiga. "Esses surtos precisam ser investigados adequadamente com as pessoas in loco, um a um. Voc� precisa fazer o que John Snow fez. Voc� questiona as pessoas e come�a a construir hip�teses que se encaixam nos fatos, e n�o o contr�rio", defendeu o epidemiologista Tom Jefferson, ligado � Universidade de Oxford, em entrevista ao Telegraph.
O m�dico John Snow (1813-58) � considerado um dos fundadores da epidemiologia moderna ao sair a campo para investigar um surto de c�lera em Londres em 1854 a doen�a havia matado dezenas de milhares de pessoas na cidade nas duas d�cadas anteriores.
Ele n�o aceitava a teoria mais difundida � �poca, de que o cont�gio se dava pelo "ar podre e viciado". Em sua c�lebre an�lise de dados, Snow entrevistou moradores, mapeou caso a caso de modo pioneiro e identificou que a causa do surto era na verdade uma fonte p�blica de �gua contaminada por dejetos. A descoberta gerou uma revolu��o nas investiga��es de espalhamento de doen�as.
� poss�vel haver cont�gio de Sars-CoV-2 por meio do esgoto?
A presen�a do novo coronav�rus nas fezes levanta a possibilidade de cont�gio por meio do esgoto. Em 2003, durante a pandemia de outro v�rus Sars-CoV, a infec��o de centenas de moradores em um mesmo pr�dio de Hong Kong foi atribu�da a vazamentos na tubula��o de esgoto.

Na pandemia atual, ainda n�o h� evid�ncias de que isso tenha ocorrido ou de que o Sars-CoV-2 esteja vi�vel para transmiss�o ap�s ser excretado nas fezes. Tampouco h� recomenda��es oficiais para usar �gua sanit�ria a fim de conter o cont�gio via esgoto, conforme tem circulado em grupos de WhatsApp. A contamina��o ocorre basicamente por via respirat�ria.
Estudos apontam que o sistema de tratamento do esgoto � capaz de eliminar a presen�a do v�rus, mas a prec�ria situa��o sanit�ria de pa�ses como o Brasil pode levar ao despejo de uma enorme carga viral em rios sem tratamento adequado. Segundo dados do Sistema Nacional de Informa��es sobre Saneamento de 2018, apenas 46% do esgoto gerado no pa�s s�o tratados. A falta de saneamento no Brasil gera mais de 300 mil interna��es hospitalares por ano, mas ainda n�o � poss�vel afirmar que a presen�a de coronav�rus no esgoto represente um risco � sa�de da popula��o.
O Sars-CoV-2 pode aparecer nas fezes de at� metade dos pacientes de covid-19, entre eles, os que tiveram diarreia, sintoma reportado por 1 a cada 5 pacientes. Alguns estudos apontam que, em geral, o v�rus aparece nas fezes cerca de uma semana depois dos sintomas e pode permanecer por mais cinco semanas ap�s a recupera��o.
Segundo pesquisadores, o m�todo de monitorar a presen�a do v�rus na rede de esgoto de uma cidade pode alertar a exist�ncia de um surto de sete a dez dias antes do registro oficial. Um dos pontos positivos dessa abordagem � monitorar tamb�m pacientes sem sintomas ou que n�o foram testados.
Em Belo Horizonte, por exemplo, um projeto-piloto da Ag�ncia Nacional de �guas (ANA) analisa amostras de esgoto e aponta que o n�mero de infectados pode ser 20 vezes maior que o de casos confirmados oficialmente.
O que d� mais para analisar no esgoto? Drogas, disparidade social e rem�dios
A carreira de "epidemiologista de �guas residuais", que se disseminou nas �ltimas duas d�cadas ao redor do mundo, est� em expans�o nos �ltimos anos.
Uma das principais fun��es desse profissional � descobrir, por exemplo, como o n�vel do uso de drogas ilegais calculado em abordagens tradicionais, como question�rios, pode ser comparado com as evid�ncias mais diretas encontradas nos sistemas de esgoto. E assim apontar subnotifica��es, entre outras informa��es.
A t�cnica n�o mira indiv�duos, mas informa��es sobre localidades, o que poderia alertar autoridades sobre a efici�ncia de campanhas e servi�os de sa�de p�blica em uma determinada regi�o, bem como se est�o empregando os recursos policiais adequadamente.
Al�m do consumo de drogas, essa an�lise de part�culas em esgotos pode servir para an�lise de h�bitos ligados a alimentos e rem�dios.
Um laborat�rio da Universidade de Queensland, na Austr�lia, por exemplo, realizou coletas em esta��es de tratamento de esgoto de todo o pa�s a fim de analisar h�bitos alimentares e de consumo de medicamentos de diferentes comunidades.
E o resultado? Em linhas gerais, os pesquisadores descobriram que, quanto mais rica a comunidade, mais saud�vel � sua dieta. Nos estratos socioecon�micos mais altos, o consumo de fibras, c�tricos e cafe�na era maior. Nos mais baixos, medicamentos prescritos apresentaram uso significativo.
Por outro lado, o uso de antibi�ticos � distribu�do de maneira bastante uniforme entre diferentes grupos socioecon�micos, indicando que o sistema de sa�de subsidiado pelo governo est� fazendo seu trabalho.
*A vers�o anterior levava em conta a circula��o do virus na Fran�a j� em dezembro de 2019, mas esta an�lise foi feita com base em amostras colhidas de pacientes, e n�o de esgoto.
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