(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

A m�dica brasileira que contraiu COVID-19 e foi salva pelo m�todo de ventila��o que ela ajudou a criar

A intuba��o da pneumologista da USP Carmen Valente Barbas abalou a moral de m�dicos que combatiam coronav�rus rec�m-chegado ao Brasil


postado em 13/07/2020 11:18 / atualizado em 13/07/2020 11:57


Carmen Valente Barbas é conhecida internacionalmente por sua contribuição para o aperfeiçoamento de técnicas de ventilação mecânica(foto: Arquivo pessoal/Carmen Barbas)
Carmen Valente Barbas � conhecida internacionalmente por sua contribui��o para o aperfei�oamento de t�cnicas de ventila��o mec�nica (foto: Arquivo pessoal/Carmen Barbas)

Em meados de abril, o conceituado patologista da Universidade de S�o Paulo (USP) Paulo Saldiva falava ao vivo na TV sobre a epidemia de covid-19 quando n�o se conteve e come�ou a chorar em frente �s c�meras.

"Naquela �poca, tinha gente negando a exist�ncia ou minimizando o impacto da doen�a, ent�o fui dizer para as pessoas se cuidarem porque n�s da sa�de est�vamos pagando um pre�o alto. A� lembrei-me da Carmen e de outras pessoas queridas e me descontrolei um pouco", diz Saldiva, m�dico e professor com 40 anos de experi�ncia, � BBC News Brasil.

Para muitos na comunidade de m�dicos atuando nos fronts de batalha contra a covid-19 no pa�s, o choro de Saldiva talvez dispensasse explica��o.

A not�cia da interna��o da pneumologista Carmen Valente Barbas circulara dentro e fora do Brasil, abalando a moral das tropas na guerra contra um inimigo pouco conhecido.

Isso porque a m�dica dos hospitais das Cl�nicas e Albert Einstein, pesquisadora e professora com 60 anos de idade e mais de 35 de carreira, � uma sumidade internacional em ventila��o mec�nica, usada no tratamento de casos graves de Covid-19.

Na reportagem a seguir, com depoimentos da pr�pria Carmen Barbas e de colegas, confira a hist�ria de como uma mulher que dedicou a carreira a salvar vidas e formar m�dicos teve sua vida salva pelas t�cnicas que ajudou a criar - e pelos m�dicos que treinou.

Reconhecimento internacional

Filha do tamb�m pneumologista e ex-professor da Faculdade de Medicina da USP Jo�o Barbas Valente, Carmen seguiu os passos do pai. Ela se formou na USP e ali iniciou, em 1995, seu doutorado em ventila��o mec�nica.

Em 1998, um estudo cl�nico liderado por ela e pelo colega Marcelo Amato foi publicado na New England Journal, revista cient�fica americana de grande impacto.

At� ent�o, as chances de um paciente com doen�a pulmonar aguda morrer ao receber ventila��o mec�nica eram altas.

Em sua pesquisa, Carmen e seu grupo levantaram a hip�tese de que a pr�pria ventila��o pudesse estar danificando o pulm�o dos pacientes.

"Est�vamos estudando a ventila��o mec�nica em pacientes com S�ndrome do Desconforto Respirat�rio Agudo, a SDRA", diz Carmem � BBC News Brasil. "Na �poca, a mortalidade dessa s�ndrome era 70%, ent�o, todo mundo que trabalhava em terapia intensiva ficava desanimado, porque voc� ventilava o paciente e 70% deles morriam."

Naquele tempo, explica, pacientes com a s�ndrome eram ventilados com o mesmo volume corrente - o volume de ar que entra e sai do pulm�o durante a ventila��o mec�nica - usado em cirurgias.

"Numa cirurgia, quando voc� faz uma anestesia geral, voc� intuba e ventila o paciente. S� que o pulm�o lesado pela SDRA tem uma complac�ncia mais baixa, ele � mais duro. Quando voc� colocava volume corrente alto, isso gerava press�es muito altas no sistema respirat�rio e acabava lesando mais o pulm�o."

Carmen e seu grupo passaram a ventilar esses pacientes com um volume corrente mais baixo, entre outros ajustes.

Ao final do estudo cl�nico, o n�mero de mortes entre pacientes tratados com a nova t�cnica caiu para 40%. Em 2000, um grande estudo americano confirmou, tamb�m na New England Journal, que a abordagem do grupo da USP era muito melhor.

Desde ent�o, o �ndice de mortes de pacientes com SDRA caiu ainda mais, para 30%. E a equipe liderada por Carmen e Amato ganhou voz internacional, ajudando a transformar a ventila��o mec�nica no mundo.


Carmen Barbas seguiu os passos do pai, também pneumologista(foto: Arquivo pessoal/Carmen Valente)
Carmen Barbas seguiu os passos do pai, tamb�m pneumologista (foto: Arquivo pessoal/Carmen Valente)

A t�cnica � conhecida hoje como Ventila��o Protetora Pulmonar.

"Carmen e sua equipe s�o um dos l�deres na comunidade global (de intensivistas e pneumologistas)", diz � BBC News Brasil o italiano Paolo Pelosi, m�dico intensivista e professor da Universidade de G�nova, na It�lia, colega e amigo da m�dica h� 20 anos.

O tratamento de pacientes em Unidades de Terapia Intensiva (UTIs) � complexo, ent�o s�o necess�rias v�rias estrat�gias diferentes, explica.

"A t�cnica proposta por Carmen � parte de um conjunto de abordagens discutidas e aplicadas no mundo."

O que Carmen talvez jamais esperasse � que um dia seria salva por essa t�cnica.

Chegada do coronav�rus

Em mar�o de 2020, m�dicos brasileiros come�avam a se dar conta de que o novo coronav�rus era realmente perigoso.

"Estudando v�rus desde muitos anos, a gente v� que esse novo v�rus � muito diferente, muito agressivo, sobrevive em temperaturas muito altas, o que n�o � normal para v�rus respirat�rios", diz Carmen.

Ela conta que chegou at� a escrever um artigo para a Sociedade Paulista de Terapia Intensiva esclarecendo a popula��o sobre o coronav�rus.

Por sua idade, e por ser hipertensa, Carmen estava no grupo de risco.

"Estava tomando todas as medidas preventivas, atendendo pacientes de m�scara, n�o deixando eles chegarem muito perto. Com colegas, fui uma das primeiras a dizer, 'n�o chega perto, vamos manter dist�ncia'. Parei de beijar os colegas, de dar a m�o para os pacientes, sempre com o �lcool gel pendurado na bolsa."

Os primeiros sintomas apareceram no dia 19 de mar�o.

"Comecei a ter um pouquinho de dor de garganta, um pouquinho de tosse, uma dor no corpo bastante importante."

Ela n�o estava cuidando de pacientes com coronav�rus. Mas come�ou a ficar muito cansada.

"Qualquer coisa que eu fazia era uma fadiga absurda. 'Tem alguma coisa estranha acontecendo', eu falei."

Carmen foi ao hospital pedir para ser testada. Sem os sintomas cl�ssicos - n�o tinha febre nem oxigena��o baixa - teve de insistir. O teste foi feito no dia 23. O resultado chegou no dia 27: a m�dica contra�ra a Covid-19.

"Vi no computador, positivo. Telefonei para os colegas pedindo para ser internada porque eu estava muito cansada."


Gustavo Faissol Janot, chefe da equipe que intubou e cuidou de Carmen durante sua internação na UTI do hospital Albert Einstein(foto: Arquivo pessoal/Gustavo Faissol Janot)
Gustavo Faissol Janot, chefe da equipe que intubou e cuidou de Carmen durante sua interna��o na UTI do hospital Albert Einstein (foto: Arquivo pessoal/Gustavo Faissol Janot)

Dilema na UTI

Carmen foi para o hospital Albert Einstein, onde trabalha h� mais de 30 anos como intensivista. Inicialmente, seu estado n�o era cr�tico, ent�o foi encaminhada � enfermaria. Mas como � comum em pacientes com Covid-19, seu quadro se agravou rapidamente.

"Fui internada no dia 27 � noite. Dia 29 de manh� j� me levaram para a UTI e me intubaram porque eu estava com um quadro de insufici�ncia respirat�ria grave."

Ela tinha dedicado a carreira aos pacientes, ao ensino e � ci�ncia. Agora, Carmen confiava sua pr�pria vida � t�cnica que ajudara a desenvolver e aos m�dicos que treinara.

"Fui para a UTI. Os colegas j� estavam todos l�, pessoas conhecidas", lembra Carmen.

"Quando voc� est� se sentindo mal, quer aliviar aquilo. Eu estava t�o desconfort�vel, com tanta falta de ar, que na hora que fui anestesiada, aquilo me aliviou."

Antes de "apagar", diz, ouviu as palavras da anestesista Roseny Rodrigues:

"Pode ficar sossegada porque vamos cuidar muito bem da senhora."

Na lideran�a da equipe que iria intubar e cuidar da ventila��o mec�nica de Carmen estava um ex-aluno de doutorado da m�dica, o intensivista e cl�nico geral carioca Gustavo Faissol Janot. Ele trabalha com Carmen h� 16 anos.

"A Carmen sempre foi nossa grande mentora. V�-la doente, com necessidade de intuba��o, foi um dos momentos mais dif�ceis, sen�o o mais dif�cil, da minha carreira", diz Janot � BBC Brasil.

A press�o sobre ele foi t�o grande que Janot decidiu sair da sala.

"Nesse momento, dada minha proximidade com ela, pedi para n�o estar presente na intuba��o", diz.

"Quando voc� tem envolvimento emocional com a pessoa, tende a evitar fazer procedimentos invasivos porque isso pode mudar a forma como voc� faz o procedimento e colocar o paciente em risco", explica.

Roseny Rodrigues assumiu a tarefa.

Feita a intuba��o, Janot retornou � UTI.

Agora, segundo os preceitos da Ventila��o Protetora Pulmonar, era preciso ajustar o respirador para ventilar gentilmente o pulm�o da paciente - evitando danos para o �rg�o - e monitorar cuidadosamente seu progresso, 24 horas por dia.

Foi dif�cil dormir naquela noite, lembra Janot.

"Meu pensamento n�o sa�a da UTI. �s 3 da manh�, acordei e dei um pulo da cama. Eu tinha sonhado com a Carmen dizendo, 'vai checar meus exames, n�o vai me deixar'. Ent�o fui ao computador checar os exames da madrugada."

A not�cia reverbera no exterior

Nesse mesmo domingo, em G�nova, na It�lia, o colega e amigo de Carmen Paolo Pelosi recebeu uma mensagem no celular.

"Todas as noites, eu conversava com amigos no mundo inteiro para saber como a pandemia estava evoluindo", diz Pelosi. "Na It�lia, tivemos covid-19 25 dias antes dos outros pa�ses e eu ficava dando suporte aos colegas."

"Ent�o, chegou uma mensagem de um colega no Brasil. J� era quase meia noite: Carmen foi internada e vai ser intubada. Uau, como assim?", lembra Pelosi.

"Quando voc� trata um paciente, � como se estivesse protegido, aquilo n�o vai atingir voc�. � um recurso psicol�gico, uma atitude que te permite reagir �quela situa��o", explica. "Mas quando acontece com uma amiga e colega, � como se estivesse acontecendo com voc�."

Gustavo Janot tenta explicar o sentimento de consterna��o que tomou conta de muitos m�dicos - entre eles, o experiente Paulo Saldiva, ex-professor de Carmen, que se emocionara no programa de TV:

"Primeiro, pela pessoa que ela �, de bom cora��o, incans�vel em ensinar e ajudar", diz.

"Segundo, pelo que ela representa na ventila��o mec�nica. Terceiro, porque ela � uma de n�s. E n�s, m�dicos, na linha de frente, todos ficamos com medo."

Com a experi�ncia adquirida em mais de 30 anos de pr�tica e pesquisa, Carmen Valente era preciosa demais para as equipes de m�dicos que brigavam na linha de frente contra a covid-19. E ningu�m podia contar com ela agora.

"Quem n�o queria poder perguntar para ela o que fazer naquela hora?", diz Janot.

"Hoje, temos uma experi�ncia de meses. N�o s� nossa, mas dos europeus, americanos, canadenses. H� uma grande troca de informa��es na comunidade cient�fica nesse sentido", explica. "Muitas revistas de alta relev�ncia cient�fica liberaram o conte�do de covid-19 de gra�a, ent�o hoje � muito f�cil voc� ter acesso a informa��es que podem mudar o cuidado na linha de frente."

Carmen Valente saiu da ventila��o mec�nica ap�s uma semana, mas continuou internada mais 18 dias. Nesse per�odo, choveram mensagens aliviadas.

Uma madrugada, recebeu visita do colega e amigo Marcelo Amato, que vinha acompanhando seu caso de perto.

"Me lembro que j� estava extubada, ele apareceu de madrugada e ficou conversando comigo. Me contou dos colegas internacionais que tinham mandado mensagens. Tem um m�dico que sempre ajudou a gente, trabalha nos EUA, mora em Miami. Ele (Amato) falou que ele (o colega americano) chorava que nem crian�a quando soube que eu estava intubada pelo coronav�rus."

"Nossa, chorou?", foi a resposta de Carmen. Ela ainda n�o entende tanta emo��o entre os colegas.

"Quando acordei, estava na semi-intensiva, tocou meu telefone no v�deo. Era um p�s-graduando meu que tem mais de 40 anos. Ele chorava, 'que bom que a senhora est� viva!'. 'Nossa, mas n�o precisa chorar desse jeito!'"

De volta ao trabalho

Carmen recebeu alta do hospital no dia 20 de abril. No in�cio de junho, sem apresentar sequelas, mas ainda fazendo fisioterapia, voltou ao trabalho.

Ela diz que n�o sabe como contraiu a covid-19, mas n�o acha que foi durante atendimento.

"(Acho que peguei o v�rus de) algu�m que estava contaminado assintom�tico e que chegou muito perto, ou dentro do elevador no hospital", conta.

Por isso, todo cuidado � pouco. Ela est� atendendo pacientes com coronav�rus, mas usa todos os equipamentos de prote��o individual, os EPIs.

"Eles (os cientistas) n�o t�m certeza se a defesa que voc� adquire depois que fica doente � permanente e se ela te defende se voc� tomar uma carga muito alta (do v�rus)."

"�s vezes, chego nos lugares e as pessoas v�m para me beijar. Eu digo, n�o. 'Como n�o, voc� j� teve!' Mas at� a gente ter certeza das coisas, vamos manter o isolamento."

Carmen brinca, dizendo que ficou "meio neura" depois do seu encontro com o coronav�rus.

"Acho que o grande problema desse v�rus � a gente n�o saber onde ele est�", reflete a m�dica.

"A gente n�o sabe onde est�o os assintom�ticos, o grande perigo s�o os assintom�ticos que est�o positivos. Est�o circulando. A gente tem que fazer testagem, diagnosticar quem est� portador do v�rus e essas pessoas ficarem isoladas por 14 dias at� diminuir a transmiss�o."

Enfrentamento � Covid-19 no Brasil

Convidada a opinar sobre pol�ticas de combate � pandemia no Brasil, Carmen fez algumas recomenda��es.

Primeiro, precisamos esclarecer a popula��o.

"Os servi�os de imprensa e o governo t�m que ser muito transparentes. A gente v� que est� acontecendo algum problema. N�o est�o querendo ver a realidade das coisas", diz.

"� muito importante ver a realidade das coisas e ser transparente."

"A popula��o precisa entender que tem um v�rus que � altamente infectante, que 5% v�o evoluir para a intuba��o. S� 5%."

"Acho que isso tranquiliza a popula��o. Mas a popula��o precisa saber que est� passando a doen�a."

Com a popula��o fazendo a sua parte, resta organizar melhor o atendimento e treinar os profissionais, come�ando com a triagem dos doentes.

"O paciente que est� com dor no corpo e com febre n�o precisa ficar internado, s� precisam ficar internados os 15% que t�m esse quadro respirat�rio mais grave", explica.

O pr�ximo passo � formar as equipes que v�o intubar e ventilar os 5% desse grupo que v�o precisar ir para a UTI.

"A gente precisa de pessoas que saibam intubar, que s�o os anestesistas - todo hospital tem anestesista que intuba para procedimento cir�rgico, ent�o eles poderiam ajudar as equipes do Pronto Socorro e da Terapia Intensiva na hora de intubar", sugere.

"Tamb�m precisamos dos radiologistas para fazer ultrassom de t�rax e tomografia para detectar quem est� com a doen�a pulmonar."

Finalmente, � preciso treinar os m�dicos das UTIs.

"E temos de treinar os intensivistas. Precisam saber que a coisa � s�ria e que tem algumas coisas que precisam ser feitas para evitar les�o pulmonar", explica.

Carmen diz que tanto no Hospital das Cl�nicas quanto no Albert Einstein a mortalidade entre intubados — o dado � de junho — estava abaixo de 20%.

"Voc� consegue aprender se tiver treinamento. Precisa ter essa boa vontade, de treinar", conclui.

  • J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)