Se a pandemia de coronav�rus mudou a paisagem urbana das grandes cidades, deixando ruas de todo o pa�s vazias, por outro aumentou o n�mero de animais dom�sticos abandonados.
Seja pela crise, pelo medo de que c�es e gatos transmitam o coronav�rus ou pela mudan�a de vida causada pela pandemia, mais donos de animais de estima��o est�o se desfazendo dos seus outrora melhores amigos.
O cen�rio � confirmado por organiza��es n�o-governamentais, pelo Conselho Federal de Medicina Veterin�ria e at� mesmo pela SaferNet Brasil, organiza��o que monitora conte�dos que violam direitos na internet.
Diretor da ONG C�o Sem Dono, Vicente Define Neto relata � BBC News Brasil que desde o agravamento da pandemia no Brasil tem recebido cerca de 200 e-mails por dia. Em geral, de gente interessada em encontrar novos donos para seus pets. Segundo ele, � um aumento de 40% da procura anterior ao per�odo.
"� um n�mero absurdo", comenta. "E como as ONGs est�o todas lotadas, certamente s�o animais que acabar�o sendo abandonados posteriormente."
De acordo com ele, os motivos relatados por quem o procura s�o, quase sempre, relacionados ao novo coronav�rus ou a crise decorrente da pandemia. "Entre os fatores, est�o a perda de emprego e gente que est� indo morar de favor com algum parente e n�o tem como levar o animal."
Fundadora da ONG C�o Sem Fome, Glaucia Lombardi diz � reportagem que tem deparado com cinco vezes mais casos de abandonos de c�es do que o normal.
"Estamos vivendo uma situa��o extremamente complicada, complexa e que n�o tem prazo para se normalizar", ressalta. Em alguns casos, � a devolu��o de um animal adotado anteriormente. E at� mesmo cachorros de ra�a definida, que raramente apareciam nos abrigos, est�o sendo deixados para tr�s por seus donos.
"O abandono de c�es sempre foi o maior dos problemas que enfrentamos", afirma ela. "Temos de conviver com o desafio de animais largados em pra�as, estradadas ou desovados nas portas de ONGs ou protetores."

Cortes de gastos
Para Lombardi, o cen�rio parecia bom no come�o da pandemia, quando as pessoas at� procuraram adotar mais, "pensando em ter uma companhia" no per�odo de isolamento.
"Ent�o, vieram as p�ssimas not�cias", avalia. "Houve a tr�gica mentira disseminada de que os c�es transmitiam a covid-19. Depois, os problemas econ�micos e, da mesma forma como foram cortados gastos extras em todas as fam�lias, muitas tamb�m optaram por n�o ter mais seus animais de estima��o."
H� ainda o caso de animais de estima��o cujos donos entraram na extensa lista de v�timas da covid-19. "Meu pai morreu e a gente n�o quer o cachorro", exemplifica ela. "Esse motivo foi o que mais cresceu em tempos de pandemia. Com o n�mero de mortos aumentando, o n�mero de animais de companhia que foram descartados pelos familiares dessas pessoas disparou."
Procurado pela BBC News Brasil, o Conselho Federal de Medicina Veterin�ria (CFMV) afirma que "avalia de forma preocupante a situa��o do abandono de animais de estima��o nesta fase de pandemia".

A reportagem procurou a Divis�o de Vigil�ncia de Zoonoses (DVZ) de S�o Paulo, �rg�o da Secretaria Municipal de Sa�de, para confirmar a tend�ncia.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a institui��o informou que s� recolhe animais abandonados em vias p�blicas quando estes representam risco para a sa�de p�blica e indicou que o trabalho �, na maior parte das vezes, realizado por ONGs.
"S�o considerados riscos para sa�de p�blica: a suspeita de portar ou transmitir zoonoses de relev�ncia, como a raiva ou esporotricose; animais agressivos com hist�rico de atacar ou morder pessoas; animais que tenham invadido institui��es p�blicas, desde que se enquadrem nos riscos citados; animais em sofrimento nas vias p�blicas quando necess�ria a realiza��o de indu��o de morte sem dor (eutan�sia)", esclarece a divis�o, em nota.
Considerando essas atua��es espec�ficas da DVZ, o n�mero de c�es recolhidos de mar�o a julho deste ano � inferior ao mesmo per�odo do ano passado 145 versus 216. Mas os dados deste m�s podem indicar uma tend�ncia de alta. Em julho de 2019 foram retirados pelo �rg�o 33 cachorros das ruas de S�o Paulo. Neste m�s de julho, at� o dia 27, o n�mero j� era de 57.
Maus tratos
Dados obtidos com exclusividade junto � organiza��o SaferNet Brasil tamb�m indicam um aumento de conte�dos na internet demonstrando ou incitando maus tratos a animais durante o per�odo da pandemia.
Entre 15 de mar�o de 30 de junho deste ano foram registradas pela entidade 482% mais den�ncias sobre o tema em compara��o com o mesmo per�odo do ano passado.
De acordo com relatos dos ativistas, o estresse causado pela situa��o atual de isolamento social, confinamento e toda a negatividade resultante da pandemia pode encontrar no animal um bode expiat�rio.

Orienta��es
"O abandono acarreta em preju�zos para a sa�de p�blica, j� que pode ocorrer um aumento nos casos de zoonoses, como a raiva, a leishmaniose, esporotricose, verminoses, entre outras", ressalta a m�dica veterin�ria Kellen Oliveira, presidente da Comiss�o Nacional de Bem Estar Animal do CFMV e professora da Universidade Federal de Goi�s.
"Ainda pode aumentar a popula��o de rua, j� que muitos n�o s�o castrados e se reproduzem livremente. Al�m, � claro, de acidentes automobil�sticos, brigas entre os animais e mordidas em humanos."
Oliveira afirma que o conselho tem acompanhado junto a ONGs, centros de controles de zoonoses e bombeiros a situa��o atual no Brasil. "Eles t�m relatado o aumento no n�mero de chamadas para resgates de animais doentes, f�meas gestantes ou rec�m-paridas, ou mesmo animais atropelados", diz.
A veterin�ria lembra que, de acordo com os estudos cient�ficos atuais, n�o h� evid�ncias de que um animal de estima��o transmita a nova doen�a para um humano.
"At� o momento, n�o h� dados cient�ficos de que animais de estima��o, como c�es e gatos, transmitam a covid-19. Os relatos existentes de animais que contra�ram a doen�a ocorreram, em sua maioria, por transmiss�o de um humano doente para o animal", ressalta a veterin�ria.
H� recomenda��es para fam�lias que t�m animais de estima��o sobre como agir em caso de algu�m com sintomas ou diagn�stico positivo para o coronav�rus. "Afastar-se do animal, evitar tocar, beijar, espirrar tossir pr�xima ao animal, at� a resolu��o do problema", enumera Oliveira.
J� no caso de quem est� convencido que se desfazer do bicho � a melhor solu��o, os ativistas acreditam que h� pouco o que fazer. "Sobre abandono ou devolu��o de um animal adotado n�o h� muito o que orientar", admite Lombardi.
"Quando a pessoa chega para a ONG ela j� est� convicta da decis�o. Nunca tivemos um caso de conseguir reverter o processo. A pessoa se coloca no papel de v�tima, tentando nos convencer que sua raz�o � justa e ainda achando que est� fazendo um favor em nos trazer o c�o em vez de abandon�-lo em qualquer estrada."
Ela ressalta que "abandono de animais � crime, previsto por lei". "Mas apesar disso o que mais sofremos � amea�as e sabemos que se n�o for acolhido por n�s, ser� descartado para morrer em qualquer lugar, colocado no lixo ainda vivo, jogado no rio ou amarrado no meio do mato para morrer de fome e sede, s� para citar algumas situa��es corriqueiras com as quais nos deparamos", relata.

Abrigos
A situa��o de ONGs e abrigos para animais sofre os efeitos econ�micos da pandemia. Com cerca de 600 animais, a Uni�o Internacional Protetora dos Animais (UIPA), em S�o Paulo, mant�m-se basicamente gra�as a uma cl�nica veterin�ria.
"O movimento despencou [ap�s o in�cio da pandemia] e ficamos assustados", conta � reportagem Vanice Teixeira Orlandi, presidente da institui��o. "Ent�o experimentamos muita solidariedade das pessoas, recebemos bastante doa��o de ra��o e fizemos uma vaquinha, conseguindo arrecadar 25 mil reais."
Ativistas e especialistas lembram, contudo, que conseguir descartar um animal em um abrigo n�o � menos grave do que abandon�-lo. "Eles s�o seres sencientes, ou seja, t�m capacidade de sentir e, com isso, o abandono ou troca de fam�lia pode gerar traumas e, consequentemente, o desenvolvimento de determinadas compuls�es como ansiedade e agressividade", explica a veterin�ria Oliveira.
"Pedimos sempre para que as pessoas tenham um pouco de paci�ncia com seus animais. Em abrigo ele n�o vai ter uma vida boa, vai ter uma vida dif�cil. Quando ele entra em um abrigo, vai ter de disputar espa�o com outros c�es, e com a lota��o m�xima de tanto abandono recente, isso vai ser ainda pior", afirma Define Neto.
Lombardi lembra que h� uma "certa cultura" de que "abandonar em um abrigo n�o � abandono".
"Se isso alivia erroneamente a crise de consci�ncia da pessoa, eticamente n�o h� nenhuma diferen�a. Continua sendo abandono e dos mais cru�is. Imagina um animal que conheceu minimamente o que � ter uma casa, se ver jogado em uma baia de abrigo, tendo que disputar espa�o, comida, muitas vezes escassa, e aten��o com dezenas de outros c�es. Muitos morrem de depress�o, ou de doen�as causadas pelo conv�vio coletivo, que o c�o n�o tem imunidade", argumenta.
"Outros morrem porque n�o conseguem se adaptar � nova vida, n�o conseguem se alimentar, ou acabam se envolvendo em brigas, muitas vezes fatais."

A C�o Sem Fome tamb�m relata problemas com as contas durante esse per�odo. "Houve um aumento significativo de gastos com os animais, tanto os que j� t�nhamos cerca de 500 como os que entraram. E, ao mesmo tempo, uma extrema redu��o nas doa��es e em qualquer ajuda que poder�amos ter", conta Lombardi, relatando que o trabalho triplicou "e est� incrivelmente complicado".
"As doa��es sofreram uma queda imensa, tanto em dinheiro como em produtos ra��o, vacinas, castra��o, material de higiene, cobertores, jornais", diz ela. "Temos not�cias de protetores que est�o dando um dia de ra��o e um, ou at� dois, de p�o para os animais. Ningu�m d� conta de tanto abandono."
Define Neto conta que a C�o Sem Dono tamb�m est� sofrendo financeiramente. Cerca de 30% dos doadores fixos mensais decidiu suspender os pagamentos por conta da crise do coronav�rus. "Estamos nos virando do jeito que d�", diz.

Ado��es
Para piorar o cen�rio, as tradicionais feiras de ado��o n�o est�o ocorrendo de forma presencial por conta da pandemia. A solu��o tem sido recorrer � internet. A C�o Sem Dono montou um sistema batizado por eles de delivery.
"A pessoa escolhe o animal em nosso site, fazemos a entrevista por WhatsApp, verificamos as informa��es com o Google Dando certo, levamos o animal at� a casa da pessoa", resume Define Neto.
Quando tem sido procurado por aqueles que querem se desfazer dos seus bichos de estima��o, esta � a orienta��o que ele procura dar: tire uma foto bonita e publique nas redes sociais.
"Infelizmente, a maior parte n�o faz isso. A gente at� oferece a ajudar a divulgar, mas n�o adiante: a maioria n�o faz por vergonha dos amigos e parentes", comenta ele.
A UIPA afirma que a pandemia tem feito aumentar a procura por ado��es. Segundo Orlandi, houve um aumento de interesse em 400% resultando em duas vezes mais ado��es realmente efetivadas.
"Momentos de crise fazem com que as pessoas adquiram novos h�bitos. E a ideia de um animal de estima��o, para muitos, est� relacionada a uma companhia, a uma casa mais alegre. Isso favorece", acredita Orlandi.

�rg�o da prefeitura de S�o Paulo que promove a ado��o de animais abandonados, a Coordenadoria de Sa�de e Prote��o ao Animal Dom�stico (Cosap) relata que neste ano conseguiu viabilizar a ado��o de 71 cachorros e 118 gatos, dados at� o m�s de junho. Segundo a assessoria de imprensa da institui��o, o n�mero � inferior ao mesmo per�odo de 2019.
"No in�cio da pandemia, a coordenadoria percebeu um aumento expressivo no n�mero de visitas de fam�lias a sede, por�m, infelizmente, foi notado que a inten��o das visitas era somente de passeio, e n�o de adotar um animal", informa, em nota enviada � BBC News Brasil, a institui��o.
"Visando � prote��o de todos, a Cosap fechou a sede para visitas, evitando aglomera��es e pensando em novas maneiras dos interessados conhecerem os animais que aguardavam ado��es. Assim, foi implantado o sistema que permite ao mun�cipe ver fotos, conhecer um pouco melhor a personalidade de cada animal, preencher um formul�rio com as suas caracter�sticas do adotante e, ap�s essa triagem, agendar uma visita pessoal. Atualmente, cerca de 90% das pessoas que agendam visitas no centro, adotam um animal."
Atualmente, a Cosap tem 236 animais dispon�veis para ado��o 160 c�es, 69 gatos, cinco cavalos e dois porcos.
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