
A desigualdade social passou a dar pistas sobre o que aconteceu na primeira onda da doen�a em Manaus e o que est� acontecendo com o aumento de casos que a cidade enfrenta atualmente.
Em resumo, dados e especialistas apontam que o v�rus chegou � cidade com as classes mais abastadas em rotas internacionais e nacionais e depois se espalhou com for�a pelos bairros mais pobres. Hospitais p�blicos e cemit�rios ficaram lotados. As mortes em casa mais que dobraram.
Quando passou o pico da doen�a, que matou quase 3 mil pessoas, e a cidade se reabriu, foram os mais abastados que come�aram a encher leitos de hospitais privados em propor��o cada vez maior porque lhes faltam duas coisas: distanciamento social, que antes os salvou mas depois deixaram de praticar, e anticorpos, que o isolamento inicial impediu que desenvolvessem.
Mas para entender como a cidade chegou a uma trag�dia que agora se repete, � preciso voltar ao in�cio da pandemia. O primeiro caso oficial na capital do Amazonas surgiu em 13 de mar�o. Uma mulher de 39 anos que voltou infectada de Londres e procurou um hospital particular ao sentir os sintomas. N�o chegou a ser internada.
At� o in�cio de abril, a COVID-19 estava concentrada nas classes mais ricas de um Estado onde 85% da popula��o depende da rede p�blica de sa�de (SUS). Naquela �poca, 57% das interna��es por doen�as respirat�rias estavam em hospitais particulares de Manaus.
Era quest�o de tempo at� o cen�rio se inverter.
Apesar da trag�dia, a cidade n�o adotou um bloqueio total � circula��o de pessoas, como fizeram a China e a It�lia nos momentos mais cr�ticos.
O prefeito de Manaus, Arthur Virg�lio Neto (PSDB), resistiu � medida, recomendada � �poca por especialistas e autoridades do Minist�rio P�blico. Dizia temer conflitos armados nas ruas, e adotou outras medidas de restri��o.
Mesmo com lojas, empresas e escolas fechadas, as condi��es de vida em Manaus ajudaram a acelerar o avan�o da doen�a.
A maioria dos manauaras vive em favelas, mora em casas com mais de 3 pessoas, circula em transportes p�blicos lotados e depende de trabalhos informais para sobreviver. Quase 10% dos domic�lios n�o t�m �gua encanada. E como em outras capitais brasileiras, essa parcela menos favorecida da popula��o n�o teve op��o al�m de seguir a vida como era poss�vel, apesar da pandemia.
O distanciamento social, calculado pela empresa InLoco a partir de dados de telefones celulares, nunca passou de 60% da popula��o do Amazonas, mesmo no auge da pandemia.
E se no in�cio de abril a minoria das interna��es estava em hospitais p�blicos, no in�cio de junho, representavam mais de 80% do total.

Foi por volta dessa �poca que o n�mero de infec��es come�ou a cair, e n�o se sabe bem direito por qu�. A cada dia havia menos pessoas doentes, internadas e mortas pela COVID-19.
As explica��es � �poca para o recuo da pandemia, que ainda s�o hip�teses, falam principalmente em duas coisas: 1. efeitos positivos de distanciamento f�sico e uso de m�scara e 2. imunidade coletiva (ou de rebanho).
De acordo com essa segunda explica��o, haveria tanta gente doente que o v�rus n�o teria conseguido mais se espalhar e matar com for�a (algo similar ao que acontece quando as pessoas s�o vacinadas em massa).
Tanta gente quanto? Por causa da falta de testes e estrutura para analisar esses exames, pesquisadores tentam h� meses dimensionar o real tamanho da pandemia na cidade e no Brasil como um todo.
Os n�meros oficiais apontam para 2,6 mil mortes e 53 mil infectados em Manaus desde mar�o, ou 2% dos 2,2 milh�es de habitantes.
Dados de cart�rios, no entanto, mostram um n�mero de mortos na cidade durante a pandemia que supera a m�dia hist�rica. � o que se chama de mortes em excesso. Esse total aumentou quase 50% de 2019 para 2020, ou de 6.398 para 9.420.
E um estudo recente, coordenado pela imunologista Ester Sabino, professora e diretora do Instituto de Medicina Tropical da Universidade de S�o Paulo (USP), estimou que n�o foram apenas 2%, mas sim 66% dos habitantes de Manaus os contaminados pelo v�rus. Ou seja, 1,5 milh�o de pessoas infectadas.
"Embora interven��es n�o farmac�uticas, al�m de uma mudan�a no comportamento da popula��o, possam ter ajudado a limitar a transmiss�o do Sars-CoV-2 em Manaus, a taxa de infec��o excepcionalmente alta sugere que a imunidade de rebanho desempenhou um papel significativo na defini��o do tamanho da epidemia."
O fato � que o recuo da pandemia durou pouco em Manaus. O com�rcio reabriu em junho, s� que em agosto o n�mero de pessoas infectadas voltou a crescer e especialistas passaram a defender medidas r�gidas de distanciamento social. Mas n�o se sabe o que est� acontecendo e nem se h� ou n�o uma segunda onda de casos na cidade.
E afinal, se Manaus atingiu de fato o patamar de imunidade coletiva, por que o v�rus voltou a se espalhar? S�o as mesmas pessoas sendo infectadas de novo? Se as pessoas podem ser reinfectadas, faz sentido falar em imunidade coletiva?
A desigualdade social novamente pode dar algumas pistas.

Covid-19 em bairros ricos e hospitais particulares
A maior m�dia de novos casos num per�odo de 24 horas foi atingida em Manaus em 29 de maio: 646. O ponto mais baixo desde ent�o foi em 12 de julho: 180. Em 1º de outubro, a m�dia di�ria est� em 456. � o maior n�mero desde 5 de junho.
Em 29 de abril, morriam 63 pessoas por dia na cidade, segundo dados oficiais. Hoje s�o 4. Em 24 de abril, 98 pessoas eram internadas diariamente. Agora s�o 11.
O problema � que esses n�meros n�o mostram os diferentes perfis das pessoas atingidas em cada fase. Vale lembrar que mais de 60% da popula��o do Amazonas recebeu o aux�lio emergencial do governo federal, o quinto maior �ndice do pa�s.
Se as classes menos favorecidas foram amplamente afetadas no �pice da pandemia em Manaus, entre abril e junho, agora, a doen�a parece se voltar novamente para os mais ricos, que eram a maioria bem no in�cio da pandemia. Naquela �poca, s� havia casos importados de viajantes que chegavam doentes � cidade.
A Funda��o de Vigil�ncia Sanit�ria do Amazonas afirmou que, em an�lise da incid�ncia do coronav�rus por bairro em Manaus, em agosto, houve "um crescimento no n�mero de casos em bairros como Ponta Negra e Adrian�polis, em sua maioria habitado por pessoas com maior poder aquisitivo".
Segundo a presidente do �rg�o, Rosemary Pinto, o Estado enfrenta "um aumento de casos pontuais em aglomerados, principalmente nas classes A e B".
Outro indicador � a ocupa��o de leitos em hospitais privados. A propor��o da rede privada era de 55% em 6 de abril, chegou a 7% de 18 de junho e agora est� em 41% do total de pessoas internadas com doen�as respirat�rias.
Mas e a imunidade de rebanho? O aumento de casos significa que esse patamar n�o foi atingido?

Segundo a imunologista Ester Sabino, que coordenou o estudo que apontou que 66% dos habitantes de Manaus j� haviam sido infectados e que a cidade havia atingido a imunidade de rebanho, esse patamar n�o significa que a pandemia acabou.
Em seu perfil no Twitter, ela explicou que imunidade de rebanho significa que o espalhamento do v�rus vai ser cada vez menor, mesmo sem outras medidas de conten��o, como o uso de m�scaras. "Mas n�o quer dizer que as pessoas n�o expostas previamente n�o ir�o se infectar."
Segundo ela, quando se atinge esse patamar de imunidade de rebanho, a taxa de cont�gio (R) n�o passa de 1 mesmo sem outras medidas de conten��o, como uso massivo de m�scaras.
Ou seja, antes da imunidade de rebanho ser atingida, estima-se que, em m�dia, 100 pessoas infectadas transmitam o v�rus para 250 pessoas. Depois, 100 pessoas infectadas transmitir�o o v�rus para menos de 100 pessoas, e esse n�mero vai caindo ao longo do tempo.
Para especialistas ouvidos pela reportagem, uma boa parte das pessoas que n�o foram expostas previamente ao v�rus em Manaus est� justamente nas classes mais abastadas.
"O grupo que tem acesso a hospitais privados galgou menor 'imunidade parcial' que a parcela mais pobre, que depende do SUS. Estudos de seropreval�ncia (propor��o da popula��o que j� teve contato com o v�rus) j� feitos em S�o Paulo e no Maranh�o demonstraram que as pessoas com maior renda se protegeram melhor da COVID. Portanto esse grupo seria mais vulner�vel durante uma segunda onda, ao relaxarem suas medidas de isolamento", afirmou Bruce Walker Nelson, bi�logo e professor do Instituto Nacional de Pesquisas da Amaz�nia.
Para a f�sica Patricia Magalh�es, pesquisadora da Universidade de Bristol, no Reino Unido, e integrante do grupo de cientistas A��o Covid-19, Manaus deve estar vivenciando um fen�meno que ela caracteriza como estouro de bolhas de prote��o.
"Bolhas de prote��o ocorrem quando o v�rus, depois de circular por bastante tempo num determinado ambiente, passa a ter dificuldade de encontrar algu�m suscet�vel para infectar. Ou porque est� cercado de pessoas doentes ou imunes. O distanciamento social e o uso de m�scaras ajudam a perpetuar essa situa��o em que o v�rus tem dificuldade de circular. Mas com o aumento excessivo da circula��o, abertura do com�rcio, de bares e das escolas, h� um aumento de circula��o de pessoas suscet�veis e a� essa bolha pode estourar e o v�rus pode atingir regi�es e grupos que tiveram muito pouco contato com o v�rus no primeiro momento. E a� um novo surto come�a."
O pesquisador Ricardo Parolin Schnekenberg, que v� imunidade de rebanho como sinal de incompet�ncia e n�o como m�rito de pol�tica de sa�de, afirma que h� ainda uma grande lacuna em todas essas hip�teses sobre Manaus. Afinal, n�o sabemos como funciona a defesa do corpo contra a COVID-19.
"Estudos mostram que o n�mero de anticorpos das pessoas que tiveram contato com covid-19 caem ao longo do tempo. Mas ainda n�o temos certeza se essas pessoas continuar�o protegidas contra novas infec��es, se elas perder�o total ou parcialmente a prote��o ou se ter�o resposta imunol�gica mais r�pida quando enfrentarem o v�rus novamente. N�o h� certeza sobre nada, e h� casos comprovados de reinfec��o em pacientes por todos os lados", disse Schnekenberg, doutorando em neuroci�ncias cl�nicas na Universidade de Oxford e parte do grupo de estudos do Imperial College de Londres para COVID-19.
H� ou n�o uma segunda onda no Amazonas?
O governo do Amazonas aponta que o aumento de interna��es hospitalares "� reflexo das aglomera��es, cada vez mais frequentes, ocasionadas por uma parcela significativa da popula��o que n�o adotou e, cada vez mais, est� abandonando as medidas n�o farmacol�gicas preconizadas (como distanciamento social, n�o aglomera��o, uso constante de m�scara e lavagem frequente das m�os)".
E segundo a Funda��o de Vigil�ncia Sanit�ria do AM, o problema se concentra em balne�rios, bares, casas noturnas, festas de anivers�rio, casamentos e conven��es partid�rias �s v�speras das elei��es municipais. As autoridades dizem que a transmiss�o v�rus se d� entre pessoas de 30 a 49 anos, mas quem acaba internado s�o "os maiores de 60 anos e aqueles com comorbidades, que entraram em contato com quem se exp�s em aglomera��es".
O avan�o da doen�a no Estado levou a um racha entre pesquisadores da Funda��o Oswaldo Cruz (Fiocruz).
H� duas diverg�ncias principais: se o aumento de casos j� configura uma segunda onda, e quais medidas de conten��o deveriam ser adotadas pelas autoridades para evitar o espalhamento da doen�a.
O imbr�glio come�ou no fim de setembro, quando o epidemiologista Jesem Orellana afirmou em entrevista ao canal GloboNews que o Estado deveria adotar um lockdown para conter a pandemia. Ou seja, instituir um bloqueio rigoroso � circula��o de pessoas e � abertura do com�rcio, entre outros pontos.
"Para voc� conseguir conter a circula��o do v�rus n�o h� outra solu��o que n�o seja o lockdown e o lockdown rigoroso em que voc� consiga fazer uma fiscaliza��o efetiva da mobilidade intermunicipal, tanto da parte de transporte transporte coletivo quanto do transporte privado das pessoas, reduzir os hor�rios de restaurantes, de bares e proibir eventos p�blicos. Sem isso, voc� n�o consegue reduzir de forma significativa a circula��o viral. E a�, na verdade, o que se faz � desacelerar a propaga��o", disse Orellana.
A declara��o gerou rea��o do governo do Estado, que refutou a possibilidade de adotar um lockdown.
"Nem passa pela minha cabe�a a possibilidade de 'lockdown', de fechar tudo aqui no Estado. N�s conseguimos avan�ar muito, o Amazonas � refer�ncia hoje no combate � covid-19", declarou o governador do AM, Wilson Lima (PSC).
Em seguida, a Fiocruz declarou que Orellana n�o falava em nome da institui��o e divulgou em 30/9 uma nota t�cnica assinada por um grupo de nove pesquisadores.
O documento recomenda uma s�rie de medidas de combate ao novo coronav�rus, mas n�o fala em segunda onda nem em lockdown.
"Entendemos que a atual situa��o vivenciada pelo Estado do Amazonas e em particular na sua capital, Manaus, em rela��o a ocorr�ncia da COVID-19, seja perfeitamente revers�vel, com a implementa��o/ implanta��o de medidas que visem a diminui��o dos contatos entre as pessoas; o refor�o das medidas de prote��o individual e coletiva; aumento na capacidade da testagem de casos suspeitos e contatos; o aumento da sensibilidade da vigil�ncia epidemiol�gica local com amplia��o da capta��o de suspeitos atrav�s da demanda passiva e busca ativa de casos, identificar e testar contatos, constituindo as cadeias de transmiss�o."
Em entrevista � Ag�ncia Brasil, Marcelo Gomes, pesquisador em sa�de p�blica da Fiocruz e coordenador do InfoGripe, que monitora os casos de COVID-19 e outras s�ndromes respirat�rias, afirmou que ainda � cedo para falar em segunda onda ou imunidade de rebanho no Amazonas.
"A gente n�o pode afirmar com certeza que Manaus j� est� com imunidade de grupo. Existem alguns trabalhos sugerindo isso, mas s�o resultados com limita��es e incertezas e, portanto, devem ser interpretados com muita cautela."
Para Orellana, "alguns cientistas e pol�ticos" em Manaus insistem em gerenciar "de forma t�o prec�ria a epidemia num contexto que mais se assemelha a um experimento natural, onde se tenta a qualquer custo alcan�ar a chamada imunidade de rebanho por incompet�ncia" e o "caldeir�o da morte encheu".
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