(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

Coronav�rus: como o mundo pode se curar do 'trauma coletivo' da pandemia de covid-19

Quando a pandemia acabar, como devemos processar as mem�rias do que aconteceu?


27/02/2021 15:38

Estamos vivendo o primeiro evento global de trauma coletivo em d�cadas. � sem d�vida o primeiro desde a Segunda Guerra Mundial, e provavelmente o primeiro dessa gravidade da sua vida.

No momento em que esta reportagem � publicada, mais de 2,5 milh�es de vidas haviam sido perdidas, sendo mais de 252 mil delas no Brasil, n�mero que aumenta aos milhares a cada dia. A economia global, as complexas redes de rela��es internacionais, a sa�de mental individual, o vai e vem da vida cotidiana: nada foi poupado durante a pandemia.

Quando pensamos em covid-19, no entanto, o "trauma" pode n�o ser a primeira coisa que vem � cabe�a, quanto mais "trauma coletivo". Outras refer�ncias econ�micas, pol�ticas, ecol�gicas, cient�ficas podem parecer mais adequadas.

E mesmo dentro do campo da sa�de mental, "trauma" n�o costuma ser o tema preferido nas discuss�es da m�dia, que se concentram mais em outros problemas como depress�o, ansiedade, solid�o e estresse.

Trauma � um conceito muito mais sutil do que muitos de n�s imaginam. N�o � apenas uma palavra para algo extremamente estressante. Nem sempre s�o provenientes de choques breves e acentuados, como acidentes de carro, ataques terroristas ou tiroteios.

E trauma n�o � a mesma coisa que transtorno de estresse p�s-traum�tico (TEPT). Trauma � sobre eventos e seus efeitos na mente.

Mas o que o distingue de algo meramente estressante � como nos relacionamos com esses eventos em um n�vel profundo.

Depois que a pandemia acabar, os efeitos do trauma coletivo que ela infligiu v�o permanecer nas sociedades por anos.

Como podemos entender esse efeito mental? E o que a ci�ncia do trauma sugere que devemos e n�o devemos fazer para nos curar?

O trauma pode ser entendido como uma ruptura na "constru��o de significado", diz David Trickey, psiquiatra e representante do Conselho de Trauma do Reino Unido.

Quando "a maneira como voc� se v�, a maneira como voc� v� o mundo e a maneira como voc� v� as outras pessoas" s�o abaladas e reviradas por um evento e surge uma lacuna entre seus "sistemas de orienta��o" e esse evento o estresse simples se transforma em trauma, frequentemente mediado por sentimentos fortes e prolongados de impot�ncia.

At� mesmo nossas trag�dias mais cotidianas podem gerar traumas. Ser demitido de um emprego, por exemplo, pode ser altamente traum�tico.

A identidade de algu�m, a base do "GPS pessoal", muitas vezes est� ligada ao trabalho e sua realiza��o.

Um trabalho proporciona autoestima, prop�sito e uma rede social, al�m de englobar as atividades de grande parte da vida. Ser demitido inesperadamente subverte tudo isso. O estresse se acumula e o sistema nervoso � colocado em estado de alerta m�ximo.

A resili�ncia mental, o �leo que movimenta nossa m�quina cognitiva e nos faz seguir em frente no estresse, se esgota.

E se nada preencher a lacuna nada externo para definir e avaliar o seu valor, nenhuma outra raz�o para continuar, nada para explicar o "porqu�, como e para que" de cada dia por algum tempo, a pessoa pode ficar � deriva.

� preciso atualizar e reformular suas cren�as e senso de identidade, uma nova rodada de "constru��o de significado" para superar o impacto do trauma.

O trauma n�o � necessariamente proporcional � intensidade de um evento. Algumas pessoas v�o processar o que aconteceu melhor do que outras e, como Trickey aponta, nossa constru��o de significado n�o � uniforme.

Al�m de n�o haver necessariamente uma rela��o entre a for�a aparente de nossos sistemas de cren�as e sua aplica��o no trauma, "isso pode realmente depender do tipo de dia que voc� est� tendo", diz Trickey.

"� realmente dif�cil descobrir o que ser� traum�tico para quem."

Quando o trauma se torna viral

No entanto, mesmo com uma compreens�o melhor do trauma, a ideia de um "trauma coletivo" pode levantar algumas quest�es.

Se o trauma tem a ver com a interface de eventos e mentes individuais, o que torna poss�vel um trauma coletivo? Os pr�prios grupos podem ficar traumatizados? E por que a covid-19 pode ser um estudo de caso?

Em seu n�vel mais simples, um trauma coletivo ocorre quando o mesmo evento, ou s�rie de eventos, traumatiza um grande n�mero de pessoas em um intervalo de tempo compartilhado.

E embora n�o tenha a intensidade expl�cita e acelerada de uma guerra ou ataque terrorista, a covid-19 �, em muitos aspectos, um caso cl�ssico.

Obviamente, a pandemia est� gerando um luto em grande escala. A morte traumatiza sempre e em toda parte.

Para os entes queridos, a r�pida deteriora��o observada em alguns casos de covid-19 quando pacientes inicialmente com sintomas leves s�o levados � morte em poucos dias dificulta a prepara��o emocional. A restri��o de visitas no hospital torna a despedida e as conversas complicadas.

Os rituais de luto que se seguem � morte tamb�m foram virados do avesso, com funerais com distanciamento social e redu��o do n�mero de participantes.

Os lembretes cont�nuos do v�rus podem desencadear mem�rias t�xicas e traumatizar novamente. Magdalena Zolkos, fil�sofa da Universidade Goethe em Frankfurt, na Alemanha, coloca a quest�o da seguinte forma: com "a incapacidade coletiva de processar no presente", os mortos "podem voltar a assombrar, mas tardiamente".

Nas enfermarias dos hospitais, m�dicos e enfermeiras enfrentam um potencial traum�tico consider�vel. De acordo com uma pesquisa, depois de trabalharem em isolamento com pacientes graves, cerca de 20% dos profissionais de sa�de enfrentam efeitos p�s-traum�ticos.

Cercados diariamente pela morte, recursos limitados e imagens v�vidas de tubos e m�quinas de suporte � vida, esses profissionais enfrentam um elemento adicional de trauma por "dano moral": quando sua pr�pria identidade de seres humanos �ticos � levada ao limite por decis�es sobre quem vive e morre.

Pegar um caso grave com cerca de um quinto dos milh�es de pacientes com o v�rus necessitando interna��o tamb�m pode ser um trauma consider�vel.

Os encontros aterrorizantes com a morte, a devasta��o dos entes queridos e os pr�prios sintomas caracter�sticos da doen�a podem ser opressores.

"Ser incapaz de respirar � o evento mais traum�tico que voc� pode imaginar", diz Metin Basoglu, fundador da faculdade de estudos de trauma da Universidade King's College London, no Reino Unido.

"Simplesmente porque n�o h� nada que voc� possa fazer a respeito. Quando voc� fica sem ar, � um excelente exemplo de impot�ncia."

Essa � uma sensa��o que frequentemente leva o estresse intenso para o reino do trauma.

O que torna o trauma da covid-19 verdadeiramente "coletivo", no entanto, � seu impacto em toda a popula��o incluindo aqueles que nunca ir�o pegar o v�rus ou at� mesmo conhecer pessoas que tenham sido infectadas.

Para muitos, a perspectiva de contrair uma doen�a mortalmente invis�vel, embora n�o realizada, � �bvia e intrinsecamente assustadora.

E convida ao que os pesquisadores chamam de "medo interoceptivo": quando nossa fonte de estresse n�o � uma amea�a �bvia no ambiente externo, mas nossa interpreta��o dos processos mec�nicos do corpo (provavelmente normais).

Al�m disso, em compara��o com a estagna��o da vida em lockdown, � dif�cil de compreender a propaga��o exponencial do v�rus. Nosso pr�prio senso da vida real e seus ritmos s�o interrompidos, e abundam os relatos n�o-cient�ficos de tempo distorcido, "um ano de n�voa", e distra��o mental.

A aten��o constante no notici�rio sobre covid-19 tamb�m n�o ajuda. A transmiss�o e repeti��o de not�cias pand�micas, embora necess�rias, trazem o risco de "trauma vic�rio", quando hist�rias assustadoras desencadeiam sentimentos de estresse traum�tico naqueles que n�o contra�ram a doen�a.

Por exemplo, uma pesquisa feita com psicoterapeutas que ouviram relatos de pacientes sobre experi�ncias traum�ticas na pandemia mostrou que cerca de 15% sentiam "n�veis elevados" de trauma vic�rio, com a m�dia dos entrevistados enfrentando ainda "n�veis moderados".

O fato de o ambiente n�o ser obviamente amea�ador tamb�m � parte do problema. O mundo comum amigos, fam�lia, vizinhos e lugares, que constituem a normalidade ainda parece o mesmo, mas foi reformulado como um espa�o repleto de perigos f�sicos.

Os fundamentos da nossa vis�o de mundo as mesmas coisas para as quais nos voltamos quando estamos sob press�o de amea�as mais tang�veis s�o minados. � um Catch-22 (express�o cunhada pelo escritor americano Joseph Heller, para se referir a dilemas paradoxais sem sa�da) num n�vel b�sico.

O dilema tamb�m � mais pr�tico. Em tempos de trauma coletivo, seja durante ataques de foguetes em Israel e na Palestina, ou turbul�ncia nas universidades de Hong Kong, a evid�ncia � clara de que reuni�es comunit�rias e redes sociais s�o essenciais para uma recupera��o adequada.

Com a covid-19, no entanto, encontrar outras pessoas � exatamente o que espalha o v�rus. O tratamento para o trauma coletivo em um dos casos, � o problema no nosso.

De forma mais tang�vel, a desacelera��o econ�mica global gerada pela covid-19 e os lockdowns levaram milh�es de pessoas para tempos desconhecidos. Fal�ncia, desemprego, planos de vida abalados: os resultados da recess�o de 2008 indicaram um aumento claro e cr�nico na sa�de mental.

"Se uma pessoa est� desempregada, � uma crise de sentido pessoal ", diz Gilad Hirschberger, psic�logo social do Centro Interdisciplinar Herzliya, em Israel.

"Mas quando uma grande porcentagem da popula��o deste pa�s n�o trabalha mais, isso se torna uma crise de sentido [para o sistema]."

Para quem ainda tem emprego, as recentes transi��es para o trabalho remoto podem ser sutilmente traum�ticas.

"A defini��o de quem eles s�o muda", explica Hirschberger.

A exposi��o das crian�as a traumas coletivos vic�rios e n�o vic�rios � especialmente cr�tica. Como suas �ncoras narrativas s�o menos concretas do que as dos adultos, as crian�as s�o, ao mesmo tempo, mais adapt�veis, mas tamb�m mais sens�veis.

"Elas poderiam desenvolver uma vis�o de mundo bastante assustadora", diz Trickey, do Conselho de Trauma do Reino Unido.

"Sabe como �: 'Meus pais n�o est�o lidando bem com a situa��o; o mundo n�o � seguro; e as pessoas que deveriam cuidar de n�s, n�o est�o fazendo seu trabalho'. Isso leva, se n�o formos cuidadosos, a uma colora��o permanente da sua vis�o das coisas."

"Costumo pensar nisso como uma lente. Voc� tem uma lente atrav�s da qual v� o mundo, voc� mesmo e outras pessoas. E os eventos v�o colorir essas lentes. [Com bastante estresse], mesmo quando esses eventos terminam, algumas pessoas ficam com as lentes coloridas."

Se algumas crian�as ficarem traumatizadas no longo prazo, a covid-19 corre o risco de ser um fen�meno intergeracional, uma vez que elas crescerem e tiverem seus pr�prios filhos.

Elas podem transmitir seu trauma encorajando a imita��o inconsciente, o condicionamento deliberado e consciente, ou at� mesmo pela epigen�tica, quando o estresse traum�tico altera materialmente uma heran�a gen�tica (embora as pesquisas nesse campo ainda estejam em est�gio inicial).

Estudos com abor�genes australianos, por exemplo, relacionaram disparidades e baixos resultados na conclus�o da educa��o, emprego, mortalidade infantil e outras m�tricas sociais a ondas de traumas hist�ricos.

Talvez o maior problema do trauma coletivo seja a quantidade. Quando as mentes de milhares (no caso da covid-19, possivelmente dezenas de milh�es) de pessoas em todo o mundo s�o traumatizadas em uma r�pida sucess�o, isso coloca uma enorme press�o na infraestrutura de sa�de mental e, n�o menos importante, entre os tipos de press�o social e econ�mica que geralmente se seguem a um choque sist�mico.

O "como e para que" de uma resposta puramente psiqui�trica exigiria um artigo em si. Abordar o trauma coletivo tamb�m exigir� mais do que a psiquiatria, sugere Basoglu.

A dimens�o do problema significa que as ferramentas de cria��o de significado "devem ser fornecidas por meio de canais de m�dia: por escrito, em livretos e v�deos, canais infantis, canais de TV, jornais, todas as vias de informa��o, qualquer canal de informa��o, a internet".

Os efeitos dos traumas coletivos s�o mais do que psicol�gicos, diz Basoglu, mas se espalham para impactar a sociedade de forma mais ampla.

Uma vez que um grande n�mero de pessoas est� traumatizado seus relacionamentos alterados, sua conex�o com sistemas sociais mais amplos rompida, sua fun��o como cidad�os prejudicada , "h� efeitos sociais, efeitos econ�micos, efeitos pol�ticos".

Um estudo com sobreviventes de trauma coletivo na China, por exemplo, mostrou que sua participa��o pol�tica diminuiu permanentemente. O trauma coletivo pode at� gerar uma �nsia coletiva por l�deres fortes, acelerando o autoritarismo e fomentando as condi��es para rea��es pol�ticas precipitadas e aparentemente decisivas.

E, como fen�meno que afeta um grupo, o trauma coletivo altera e ativa as formas mais sutis pelas quais os grupos se unem: em outras palavras, os pilares da constru��o de significado, a vari�vel independente do trauma, a n�vel de grupo.

Grupos vs indiv�duos

Os psic�logos sociais os chamam de "tecidos b�sicos da vida social": hist�rias de origem comum, expectativas de conduta, rituais, institui��es e espa�os sociais compartilhados, senso de destino, sua rela��o com "o outro", quem "o outro" pode ser .

Paralelamente ao indiv�duo traumatizado, cujos pr�prios tecidos ps�quicos s�o dilacerados por um evento, o trauma coletivo arrisca um golpe nos tecidos sociais do grupo, t�o forte que seu interior pode ser comprometido.

Jeffrey Alexander, um soci�logo de Yale, notou o impacto da covid-19 de maneiras sutis e prejudiciais. Segundo ele, os tecidos sociais dos Estados Unidos, por exemplo, s�o consumidos por uma "sensa��o de caos, de descontrole, como se o pa�s estivesse se desintegrando" provocada pela pandemia.

E o trauma coletivo dos Estados Unidos foi um golpe duplo, sugere Alexander.

Os protestos do movimento Black Lives Matter em maio, combinados com a crescente consci�ncia das fortes desigualdades raciais em mortes que viralizaram, levaram a covid-19 a cruzar com traumas hist�ricos mais antigos a respeito da ra�a.

As evid�ncias sugerem que as pessoas negras enfrentam traumas intergeracionais de racismo e discrimina��o. Esses eventos levantaram temores de um trauma coletivo em cascata com implica��es mais nocivas.

Em alguns casos de trauma coletivo, os tecidos sociais do grupo podem se adaptar e regenerar.

Se um trauma coletivo est� explicitamente ligado � identidade do grupo, ele pode, ap�s algum tempo de destrui��o e deslocamento, fornecer um ingrediente insubstitu�vel para uma nova rodada de constru��o de significado.

Usando o exemplo do Holocausto, Hirschberger escreveu que a rela��o do grupo com o trauma, e seu empenho para transcender, processar e incorpor�-lo em rituais e conversas, "se torna o epicentro da identidade do grupo".

Claramente, no entanto, a covid-19 n�o � uma amea�a existencial para grupos isolados como o Holocausto foi. Parte de seu perfil traum�tico � a globalidade do v�rus.

No entanto, na nossa luta por significado, a invoca��o de mitos nacionais e regionais tem sido bastante comum.

Na Inglaterra, a experi�ncia da Blitz (chuva de bombas alem�s sobre Londres e outras cidades inglesas) um dos marcos da "mem�ria nacional" � invocada com frequ�ncia, para refor�ar os sentimentos de comunalidade e vizinhan�a t�o necess�rios.

As discuss�es sobre a Segunda Guerra Mundial, talvez nosso ponto de refer�ncia mais compar�vel, tamb�m s�o comuns, assim como a no��o geral de travar uma guerra contra o v�rus.

O ex-presidente americano Donald Trump comparou a covid-19 ao ataque japon�s de 1941 � base naval americana de Pearl Harbor, e responsabilizou a China pela doen�a.

O problema de esquecer

Por�m, talvez mais do que qualquer outra coisa, os perigos sociais prolongados do trauma coletivo consistem no esquecimento. Quando n�o � processado, n�o � discutido, talvez ativamente reprimido, os tecidos sociais do grupo permanecem perturbados e n�o cicatrizam. Traumas individuais se acumulam sem ser reconhecidos e apodrecem sob as rachaduras.

No L�bano, as comunidades afetadas pela guerra foram observadas passando por "traumatiza��o sequencial" ou ciclos de "hiperexcita��o" e "entorpecimento", assim como grupos de refugiados traumatizados na S�ria e na Palestina.

Expostos a lembretes de um trauma n�o processado, os indiv�duos podem se comportar com agressividade e ansiedade. Ou, na esperan�a de evitar a re-exposi��o aos gatilhos, podem agir com "evas�o, apatia ou passividade".

A n�vel de grupo, pode haver epis�dios c�clicos de viol�ncia e agress�o contra outras pessoas, seguidos de abstin�ncia. �s vezes, autoridades podem at� fingir que os eventos traum�ticos originais nunca aconteceram, incluindo a censura de livros escolares.

Na pol�tica delicada de uma nova lideran�a, esse esquecimento uma atra��o fatal para comunidades traumatizadas pode formar um motor especialmente potente de ressentimento e tens�o social.

Com isso em mente, talvez seja surpreendente que a covid-19 seja perigosamente f�cil de esquecer. � o que a hist�ria sugere, pelo menos.

A �ltima pandemia global, de gripe espanhola em 1918, foi t�o sequestrada da mem�ria nacional que os comentaristas a chamaram de "Gripe Esquecida".

Pelo menos 50 milh�es de pessoas sucumbiram ao v�rus em todo o mundo, mas superficialmente parece n�o ter feito nenhum arranh�o na imagem p�blica de nossos tecidos sociais.

Arte e literatura, por exemplo, s�o pilares frequentes para a mem�ria. No entanto, a gripe espanhola n�o pareceu inspirar muita aten��o.

A aten��o da imprensa se esgotou, e os reconhecimentos p�blicos foram escassos. Com exce��o da Nova Zel�ndia, nenhum pa�s instituiu qualquer ato de memorial nacional, sejam est�tuas, pedestais, monumentos, datas em mem�ria, minutos de sil�ncio ou outros instrumentos.

Martin Bayly, cientista social da London School of Economics (LSE), revisou os arquivos do Reino Unido, onde cerca de 250 mil pessoas morreram.

"N�o consegui encontrar nenhuma evid�ncia de qualquer homenagem p�blica", diz ele.

"E a aus�ncia de memoriais fez com que desaparecesse da mem�ria p�blica, na escrita da hist�ria."

Em 1935, os historiadores m�dicos perceberiam alguns compreensivelmente perplexos o esquecimento da gripe espanhola.

D�cadas mais tarde, nos surtos de Aids e ebola, ativistas fariam esfor�os extras de mem�ria, conscientes de que estavam desaparecendo da vis�o hist�rica.

E por que a gripe espanhola foi exatamente "esquecida" � uma quest�o complexa da hist�ria. O impacto da Primeira Guerra Mundial, Bayly reconhece, n�o pode ser subestimado. Mas as pandemias de gripe subsequentes, como as de 1957 e 1968, tamb�m n�o receberam memoriais ou foram rememoradas, apesar de terem ceifado dezenas de milhares de vidas em todo o mundo.

O fato de continuarmos esquecendo as pandemias podem, na verdade, refletir sua pr�pria natureza.

Lembrar e dar significado ao trauma pand�mico � dif�cil, porque, em compara��o com outros tipos de trauma coletivos, as mortes por doen�as simplesmente n�o s�o "cont�veis" ou "narrativizadas".

Elas t�m alguma "raz�o", como as mortes na guerra? Quem � o advers�rio que derrotamos quando o inimigo est� internamente? Que hist�ria iminente uma pandemia evoca na mente das pessoas? Qual � a moral da hist�ria do "nunca mais"?

Em outras palavras, as pandemias raramente s�o "problemas de comiss�o", quando o trauma surge de decis�es claras e maliciosas de certos indiv�duos e grupos.

Isso torna a resposta ao "como, quem e por qu�" por tr�s do trauma ainda mais desafiadora. Embora a a��o humana tenha desempenhado um papel ineg�vel em sua dissemina��o, "ningu�m est� tentando infectar todo mundo com covid-19", diz Hirschberger.

"� apenas algo que � um produto de como vivemos e de toda a humanidade."

Por mais dif�cil que seja de implementar, n�o rememorar � uma decis�o em si. E, desde o in�cio, torna o esquecimento com os riscos inerentes � sa�de mental individual e � coes�o social mais prov�vel.

N�o relembrar pode at� afetar nossa prepara��o para crises futuras. Em meio � pandemia de 1957, analistas destacaram que "falhamos completamente em aprender as li��es de 1918", diz Bayly.

E, como a gripe de 1957 tamb�m foi esquecida, ele sugere que nossa consci�ncia do risco de pandemia e nossa resposta � covid-19 teriam sido muito melhores se tiv�ssemos tentado ativamente lembrar nosso pr�prio passado.

A mem�ria nacional � mais importante ainda. Ao oferecer a constru��o de significado e um canal para o luto, ela processa o trauma coletivo em sua pr�pria escala.

Uma homenagem imposta de cima para baixo s� � refor�ada quando combinada com abordagens de baixo para cima arte, memoriais locais, arquivos digitais e simplesmente lembran�as pessoais de cada um agora mais compartilh�veis do que nunca com as redes sociais.

Os esfor�os de mem�ria da covid-19 est�o em andamento e j� parecem promissores. No Reino Unido, em meio � complexidade e ao car�ter turvo da pandemia, a narrativa nacional parece centrada no papel do NHS, servi�o p�blico de sa�de, e dos trabalhadores essenciais: uma estrutura de constru��o de significado interpartid�ria, profundamente simb�lica e rica em li��es sociais.

Para al�m das homenagens em tempo real dos aplausos para os profissionais de sa�de, foi feito um minuto de sil�ncio na noite de 4 de julho, v�spera do anivers�rio do NHS.

Houve pedidos de um monumento para o "999" (n�mero para emerg�ncias) no centro de Londres; um monumento para os profissionais do NHS no National Arboretum; e um memorial para os trabalhadores da �rea de transporte mortos na Victoria Station.

Junto com Katharine Millar e Yuna Han na LSE, Bayly deseja que os "mortos comuns" da covid-19, a maior extens�o do trauma nacional, sejam explicitamente reconhecidos tamb�m.

Eles recomendaram ao Reino Unido que seja institu�do um dia de mem�ria nacional da covid-19 no pr�ximo ano, como uma "�rea chave para a pol�tica governamental".

"Queremos muito que seja um dia em que n�o se espere que as pessoas trabalhem", diz Millar.

O acionamento do bot�o de pausa nacional pelo governo "seria uma forma eficaz de manter formalmente a base da conversa p�blica e da experi�ncia coletiva para reconhecer a perda, o trauma e o sofrimento".

Al�m disso, a pandemia tem sido t�o prolongada, com uma cauda t�o longa, que precisa urgentemente de um "aparador de livros", sugere Millar. Seria um prazo para marcar um horizonte e equilibrar o passado e o futuro.

Um ponto de virada?

A covid-19 � um trauma coletivo como nunca vimos antes. Nossas extens�es sociais mais complexas e os blocos de constru��o de nossas realidades pessoais foram coloridos de forma inapag�vel.

A maneira como vivemos e trabalhamos juntos e nos vemos como cidad�os comuns: tudo significa algo diferente na era viral e com efeitos potencialmente traum�ticos.

Todas as pandemias acabam, no entanto. E esta vai acabar. Mas esquecer o trauma, seguir em frente e n�o se importar com isso, n�o vai ajudar. Seria um desservi�o � hist�ria e �s nossas pr�prias mentes. Talvez para o futuro tamb�m.

Leia a vers�o original desta reportagem (em ingl�s) no site BBC Future.


J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)