Voc� entra no YouTube e come�a a assistir um v�deo qualquer sobre ci�ncia e sa�de. Do nada, um apresentador passa a falar repetidamente o termo "racoon", que parece n�o fazer sentido algum naquele contexto.
Mas para os f�s e seguidores daquele canal, esse � apenas mais um codinome para se referir ao coronav�rus "racoon" � um anagrama (uma mistura das letras) da palavra "corona".
Essa � apenas uma de nove estrat�gias principais usadas por produtores de conte�do para seguir disseminando not�cias falsas e teorias da conspira��o sobre a pandemia, apesar das recentes limita��es e restri��es impostas pelo YouTube e outras redes.
Em sua tese de doutorado, a jornalista Dayane Machado faz justamente o monitoramento desses v�deos. A meta dela � entender os comportamentos e as t�ticas usadas por influenciadores para levar desinforma��o sobre as vacinas (e outros temas) para milh�es de pessoas nos �ltimos meses.
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"Come�amos a trabalhar com 20 canais do YouTube e depois expandimos para 50. Nos seis primeiros meses de pandemia no Brasil, analisamos 3.318 v�deos, fizemos uma peneira e selecionamos 1.760 deles para entender como funcionam", destrincha a pesquisadora, que conduz seu projeto no Departamento de Pol�tica Cient�fica e Tecnol�gica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Machado avalia que a pandemia configurou o cen�rio perfeito para que a desinforma��o ganhasse terreno. "Em primeiro lugar, as pessoas tiveram mais tempo livre em casa e muitas passaram a lidar agora com as redes sociais", avalia.
O segundo ponto detectado pela especialista � uma pressa generalizada para compartilhar informa��es num momento de tantas incertezas. "Nesse contexto, aparece algu�m na internet dizendo que existe uma cura milagrosa, uma solu��o para essa crise, e muitos acreditam por causa dessa vulnerabilidade toda", comenta a jornalista.
Confira a seguir os nove macetes e como identific�-los.
1. YouTube como dep�sito
Quando a covid-19 come�ou a se espalhar pelo mundo, uma das primeiras atitudes adotadas pelo Google (que � dono do YouTube) foi priorizar fontes oficiais de informa��o em seus mecanismos de busca.
Pode reparar: se voc� pesquisar na internet qualquer coisa sobre o coronav�rus, os primeiros resultados sempre trar�o os conte�dos de institui��es como a Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS), o Centro de Preven��o e Controle de Doen�as dos Estados Unidos (CDC), o Minist�rio da Sa�de ou links de ve�culos de imprensa tradicionais e respeitados.
A gigante de tecnologia chega a "esconder" ou proibir a veicula��o de v�deos com informa��es suspeitas, que n�o est�o de acordo com a evid�ncia cient�fica e o consenso de especialistas ou n�o podem ser confirmadas.
De acordo com informa��es enviadas pela assessoria de imprensa do YouTube � BBC News Brasil, desde fevereiro de 2020 a plataforma removeu mais de 800 mil v�deos relacionados � covid-19 que violavam de alguma maneira as pol�ticas da empresa.
Para completar, muitos conte�dos sobre a pandemia tamb�m foram "desmonetizados". Na pr�tica, isso significa que eles n�o estar�o vinculados � propagandas ou n�o ganhar�o dinheiro de acordo com a quantidade de visualiza��es obtidas, que podem ser uma boa fonte de renda para alguns canais.
Mas, assim como o v�rus se adapta �s adversidades do ambiente e surgem as novas variantes, os produtores de desinforma��o tamb�m souberam criar mecanismos para sobreviver �s adversidades.
"Muitos produtores passaram a dizer para seus seguidores entrarem em grupos privados do Telegram ou no Patreon, onde eles dizem que podem falar 'a verdade' sem 'censura'", explica Machado.
O YouTube, ent�o, passa a ser apenas um dep�sito, sem relev�ncia na dissemina��o direta daqueles conte�dos.
Os links dos v�deos s�o compartilhados em espa�os virtuais mais restritos, onde h� pouqu�ssima regula��o e as teorias da conspira��o podem correr livres e soltas.
2. Celebridades que mordem a isca
Outra t�tica frequente dos canais de desinforma��o menores e com poucos seguidores � tentar chamar a aten��o de famosos, pol�ticos ou jornalistas.
"�s vezes, uma ideia est� restrita a um grupo fervoroso e � amplificada para um p�blico gigantesco quando � compartilhada por algu�m com muitos seguidores nas redes sociais", diz Machado.
A pesquisadora lembra de uma mentira que circulou muito no primeiro semestre de 2020: a de que a covid-19 era uma farsa e os hospitais estavam fechados e vazios, ao contr�rio do que era noticiado pela imprensa.
"Essa hist�ria surgiu nos Estados Unidos e foi mencionada pelo presidente Jair Bolsonaro numa transmiss�o ao vivo em junho de 2020. A partir da�, foram v�rios os registros de pessoas que decidiram invadir enfermarias e UTIs para filmar o que acontecia l� dentro", relata.
Algumas dessas grava��es geraram grande como��o e viraram at� caso de pol�cia.
3. V�timas de censura?
Em muitos casos, o limite entre a liberdade de express�o e a divulga��o de not�cias potencialmente danosas � t�nue.
Quando um influenciador declara a milh�es de pessoas que uma vacina pode matar (sem ter nenhuma prova disso), ele est� cometendo um crime? Como coibir o compartilhamento de desinforma��o e punir ou limitar o alcance desses indiv�duos, que podem indiretamente influenciar um seguidor a n�o se proteger e ficar sob risco de pegar uma doen�a potencialmente fatal?
Em seu trabalho, Machado detectou que muitos canais no YouTube se aproveitam dessas d�vidas e zonas cinzentas para adotar uma postura de v�tima.
"Eles dizem que h� uma censura a todo mundo que n�o apoia a vis�o mainstream da medicina'", observa.
Num cen�rio de pandemia, em que a ci�ncia costuma demorar um tempo para oferecer respostas, esse discurso conspirat�rio ganhou ainda mais for�a e audi�ncia.
4. Codinomes criativos (e preconceituosos)
Muitos criadores j� entenderam que n�o podem usar termos como "covid-19", "coronav�rus" e "vacina" no t�tulo ou na descri��o de seus v�deos para n�o chamar a aten��o dos sistemas de vigil�ncia do YouTube.
"Alguns acham que n�o podem nem falar essas palavras, pois acreditam que existe uma tecnologia para analisar em detalhes todo o �udio", acrescenta Machado.

Para driblar esses mecanismos, uma pr�tica comum � o uso de codinomes. Um dos casos mais emblem�ticos � o "racoon", que explicamos no in�cio da reportagem.
Entre outros termos comuns, alguns fazem uma alus�o xen�foba ao fato de o coronav�rus ter sido detectado pela primeira vez na China influenciadores se referem a "flango flito" ou "pa�s do yakisoba", por exemplo.
Um terceiro grupo � mais gen�rico e prefere descrever a covid-19 com frases do tipo "essa doen�a que est� a�".
5. Recursos gr�ficos
Os codinomes n�o s�o a �nica sacada dos influenciadores da desinforma��o.
Seguindo esse mesmo racioc�nio de que o �udio dos v�deos � "vigiado", alguns preferem escrever as palavras "coronav�rus" ou "covid-19" em lousas, plaquinhas de papel, telas ou letreiros.
Da� basta apontar para o que est� escrito, ou deixar esse recurso gr�fico no cen�rio, para dar o contexto do debate sem falar abertamente nele.
Uma terceira sa�da s�o os emojis. Em vez de mencionar diretamente as vacinas, basta colocar o desenho de uma seringa para que boa parte do p�blico compreenda o que est� sendo dito.
6. An�lise de performance
A veia conspirat�ria de muitos produtores de conte�do n�o se limita � medicina e � ci�ncia: muitos acreditam piamente que s�o vigiados de perto pelas gigantes da tecnologia.
Para comprovar suas teorias, eles criam canais secund�rios no YouTube e postam os mesmos v�deos em diferentes contas.
"Eles usam t�tulos e descri��es diferentes, para medir o desempenho em v�rios ambientes. Pode ser que o canal antigo tenha seu alcance limitado e consiga menos visualiza��es e coment�rios em compara��o com aqueles que s�o mais novos, n�o t�m hist�rico e ainda n�o est�o no radar do YouTube", explica Machado.
Se o influenciador percebe essa diferen�a de performance, ele acaba usando isso a seu favor, refor�ando mais uma vez o seu papel de "v�tima do sistema".
7. Camuflado na est�tica gamer
Um dos maiores sucessos do YouTube brasileiro e mundial s�o os canais gamers.
Eles re�nem profissionais e amadores, que compartilham telas do computador ou do videogame enquanto jogam Minecraft, League of Legends, Fifa, Counter-Strike e outras produ��es de enorme sucesso.
Em meio a uma partida e outra, esses indiv�duos fazem coment�rios, interagem com outros competidores e at� respondem perguntas da audi�ncia.
Alguns produtores que compartilham desinforma��o sobre as vacinas encontraram uma oportunidade de ouro nesse nicho.
"Eles perceberam que os canais gamers recebem menos aten��o do YouTube. Ent�o eles abrem qualquer jogo no computador e, enquanto jogam, ficam espalhando um monte de informa��o falsa sobre sa�de", destrincha Machado.

Um exemplo c�lebre de desinforma��o sobre a pandemia dentro do mundo dos videogames aconteceu com Renan Bolsonaro, um dos filhos mais jovens do presidente.
Em maio de 2020, ele estava fazendo uma transmiss�o ao vivo na Twitch, uma plataforma de v�deos focada nos jogos eletr�nicos, quando disse: "Que pandemia? Isso � hist�ria da m�dia a�, para trancar voc� dentro de casa, para achar que o mundo est� acabando. � s� uma gripezinha, irm�o".
Logo na sequ�ncia, a Twitch baniu a conta de Bolsonaro para sempre.
Ele criticou a decis�o numa postagem no Twitter, dizendo que foi uma "piada fora de contexto" e deveria ter sua liberdade de express�o respeitada: "Interessante � que a rede social mant�m perfis que disseminam claramente a misandria (�dio, o desprezo ou o preconceito contra homens ou meninos), mas n�o suportam uma brincadeira, por mais pesada que fosse".
8. Vencer pelo cansa�o
Uma funcionalidade muito utilizada no YouTube s�o as lives, ou transmiss�es ao vivo.
O site permite agendar dias e hor�rios, convidar as pessoas e aproveitar uma s�rie de recursos para estreitar o relacionamento com o p�blico (falaremos sobre essas possibilidades no pr�ximo t�pico).
Uma estrat�gia usada por muitos produtores � fazer lives longu�ssimas, com mais de tr�s horas de dura��o.
"Como elas s�o enormes, fica dif�cil fazer um monitoramento cont�nuo por tanto tempo", constata Machado.
Esses conte�dos ao vivo viram uma boa fonte de renda para os produtores: na pr�pria transmiss�o, eles veiculam propagandas de empresas pequenas, que aproveitam o espa�o para promover seus produtos e servi�os.
Depois, essas lives s�o editadas em trechos menores e viram novos conte�dos, que muitas vezes alcan�am ainda mais pessoas.
9. Seguidores especiais
Para os canais com um n�mero maior de f�s, as transmiss�es ao vivo trazem mais uma vantagem: o Super Chat e os Super Stickers.
Os espectadores podem pagar um valor (que varia de R$ 2 a R$ 500) para ter o seu coment�rio ou sua figurinha em destaque durante a live por um per�odo quanto maior o valor, mais tempo a mensagem permanece nas primeiras posi��es.
A maior parte desse dinheiro vai direto para o produtor, mas o YouTube fica com uma parcela tamb�m.
"N�s encontramos alguns canais que est�o desinformando sobre as vacinas e a covid-19 que t�m acesso a essas funcionalidades", aponta Machado.
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O outro lado
Procurada pela BBC News Brasil, a assessoria de imprensa do YouTube enviou uma nota com esclarecimentos a respeito do tema.
Entre os pontos apresentados, a plataforma afirma que, nos �ltimos anos, investiu "em pol�ticas, recursos e produtos necess�rios para cumprir o compromisso de proteger a comunidade contra conte�do duvidoso".
Ainda de acordo com a resposta, o site atua em tr�s pilares: "remover conte�do que viola as pol�ticas da empresa, refor�ar o aumento de conte�dos confi�veis e reduzir a dissemina��o de conte�dos duvidosos".
O YouTube parece apostar bastante na inform�tica para lidar com informa��es enganosas. "Em 2020, dos 34,7 milh�es de v�deos removidos, mais de 32 milh�es foram identificados pelos nossos sistemas automatizados destes, 44% foram removidos antes de receber uma �nica visualiza��o".
Durante a pandemia, foram criadas na plataforma algumas playlists com conte�dos verificados sobre a covid-19 e quadros e bot�es que direcionam o usu�rio para o site do Minist�rio da Sa�de.
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O que fazer a mais?
Ainda que o YouTube tenha mudado e refor�ado algumas de suas pol�ticas, Machado refor�a que encontra problemas e gargalos que permitem a dissemina��o de informa��es falsas na plataforma.
"V�rios v�deos denunciados por transmitir desinforma��o continuam dispon�veis e, pior, seguem vinculados a an�ncios", revela.
Como solu��o para o problema, a jornalista e pesquisadora segue um conselho defendido pela cientista social americana Joan Donovan, da Universidade Harvard.
"Precisamos de um ex�rcito de bibliotec�rios. Eles representam uma m�o de obra capacitada para categorizar e monitorar a plataforma com efici�ncia", sugere.
� preciso pensar tamb�m em como classificar o que � desinforma��o e liberdade de opini�o. "Podemos aliar os filtros autom�ticos baseados em intelig�ncia artificial com a modera��o feita por seres humanos", completa a especialista.
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