
Em seus 85 anos de hist�ria, a Livraria S�o Jos� passou por seis endere�os, uma guerra mundial e duas ditaduras. Considerada a mais antiga ainda em atividade do Rio de Janeiro, a livraria, no entanto, n�o sobreviveu � pandemia do coronav�rus.
Com o encerramento do neg�cio, tamb�m deixa o of�cio o homem considerado o mais antigo livreiro em atividade no Rio de Janeiro, Jos� Germano da Silva.
Hoje com 83 anos, Germano come�ou a trabalhar na loja aos 12, como faxineiro e entregador, e virou propriet�rio. Com quase 70 anos de livraria, enfrentou nos �ltimos anos uma dura redu��o das vendas, que ca�ram a zero em meio �s restri��es impostas pela crise sanit�ria.
"J� estava ruim. Quando entrou a pandemia, acabou de matar", diz Germano.
Ele mesmo � um sobrevivente: passou 39 dias neste in�cio de ano internado com 70% dos pulm�es comprometidos pela covid-19, 11 deles em um leito de UTI.
De volta � fam�lia, e reaprendendo aos poucos a andar, vive para contar a hist�ria da livraria, que vai ela mesma virar livro.

A livraria e os locais que n�o existem mais
N�o se sabe a data ao certo, mas a Livraria S�o Jos� foi criada em algum momento de 1935, tendo sido registrada no Departamento Nacional de Com�rcio apenas em 1939, j� em plena ditadura do Estado Novo de Get�lio Vargas.
Seu primeiro endere�o foi a Rua S�o Jos�, no centro da capital fluminense.
"A Rua S�o Jos� era a rua do centro do Rio de Janeiro que arregimentava o maior n�mero de sebos, como s�o chamadas as livrarias de livros usados", conta Adriano Gomes Filho, pesquisador que est� trabalhando na obra sobre a hist�ria da empresa.
"O lado �mpar da rua n�o existe mais. Foi todo demolido nos anos 1950, por conta das obras de remodela��o do centro", acrescenta.
Em 1936, a livraria mudou do 35 para o n�mero 38 da mesma rua, que seria seu endere�o mais c�lebre. "Esse local tamb�m j� n�o existe, foi demolido nos anos 1970."
A primeira tarde de aut�grafos do Brasil
A partir de 1947, quando os empres�rios Carlos Ribeiro e Walter Alves da Cunha compraram a livraria, teria in�cio sua fase �urea.

No primeiro dos "Anos Dourados", como ficou conhecida a d�cada de 1950, al�m de livraria, a casa passou a ser tamb�m editora. E em 1954, Ribeiro trouxe uma inova��o ao mercado editorial nacional: as tardes de aut�grafos com autores.
"Por incr�vel que pare�a, at� essa �poca, n�o existia o h�bito no Brasil de os escritores fazerem uma tarde ou noite de aut�grafos. Havia um distanciamento entre a figura do escritor e o p�blico", diz Gomes Filho, acrescentando que a novidade foi sugerida ao dono da livraria pela jornalista Eneida de Moraes, que participou desse tipo de evento em uma viagem a Paris, no p�s-Segunda Guerra.
Eneida � descrita em um artigo do jornal paraense O Liberal como "jornalista comunista e feminista", "vanguardista revolucion�ria na literatura, na pol�tica e no Carnaval".
A primeira das tardes de aut�grafos por ela inspiradas foi com Manuel Bandeira, que assinou exemplares da sua autobiografia Itiner�rio de Pas�rgada - nela, o poeta do Pneumot�rax conclui, cotejando versos, "que a poesia � feita de pequeninos nadas".

Festa Discos e a livraria como ponto de encontro
As tardes de aut�grafos se tornaram frequentes, atra�ram outros escritores e jornalistas, e levaram a S�o Jos� �s p�ginas de jornais e revistas.
Em 1956, Carlos Ribeiro se associou ao jornalista, escritor e tradutor Irineu Garcia e eles criaram juntos a gravadora Festa Discos, que passaria a lan�ar discos de poesia, em que os pr�prios autores declamavam seus versos.
O �lbum de estreia tinha Carlos Drummond de Andrade de um lado e Bandeira do outro. A cole��o contou ainda com nomes como Paulo Mendes de Campos, Vinicius de Moraes, Cec�lia Meireles, Murilo Mendes, Jo�o Cabral de Melo Neto e Pablo Neruda.
"At� 1955, a livraria mais importante do Rio era a Jos� Olympio, que ficava na Rua do Ouvidor", conta Gomes Filho.
Ponto de encontro dos intelectuais da �poca, a loja da editora de mesmo nome fechou naquele ano, quando os propriet�rios do im�vel onde ela estava instalada interromperam o contrato de aluguel para demolir o pr�dio e construir um novo.
"Quando houve o fechamento da Jos� Olympio, a S�o Jos� passou a ser a livraria mais importante do Rio de Janeiro e, n�o � exagero nenhum dizer, a livraria mais importante do Brasil, por conta das tardes de aut�grafos, eventos de lan�amento, da gravadora Festa e da edi��o de livros importantes", diz o pesquisador, acrescentando que, � �poca, o sucesso era tanto que a livraria se estendeu para os n�meros 40 e 42 da Rua S�o Jos�.
"Fora isso tudo, ela se tornou um ponto de encontro", afirma.
"Por exemplo, o Drummond trabalhava no Minist�rio da Educa��o e Cultura no centro do Rio e, invariavelmente, na hora do almo�o ou no final do dia, ele podia ser encontrado na S�o Jos�", conta Gomes Filho, lembrando ainda que v�rias elei��es da Academia Brasileira de Letras foram decididas ali.

Mas veio o Golpe Militar de 1964
A �poca de gl�rias da livraria chegaria ao fim com o golpe militar de 1964.
Em 30 de abril daquele ano, um m�s depois de o presidente eleito Jo�o Goulart ser removido do cargo pelos militares, Carlos Ribeiro foi detido por agentes do Dops (Departamento de Ordem Pol�tica e Social) no interior da loja.
A pris�o durou apenas uma noite, mas chamou aten��o porque o livreiro n�o mantinha liga��es com partidos ou grupos pol�ticos organizados, nem editava obras pol�ticas.
"Provavelmente foi uma forma de press�o dos militares, j� que a S�o Jos� era um dos mais importantes pontos de encontro de escritores, jornalistas e intelectuais, muitos deles de esquerda e filiados ao PCB [Partido Comunista Brasileiro]", avalia Gomes Filho.
Ap�s o golpe, essas reuni�es se tornaram menos frequentes e passou a dominar o medo dos agentes infiltrados da Pol�cia do Ex�rcito, que andavam disfar�ados pelos corredores da livraria, para ouvir a conversa dos simpatizantes da esquerda.
Em 1967, em meio a esse clima pol�tico pesado, tamb�m avan�a o processo de especula��o imobili�ria no centro do Rio de Janeiro, e Ribeiro e seu s�cio vendem os sobrados da Rua S�o Jos� para uma construtora. Esses sobrados hist�ricos foram demolidos, para dar lugar a um pr�dio comercial, que est� l� at� hoje.
A livraria se mudou para a Rua S�o Jos�, 70, mas j� n�o era a mesma, em meio ao avan�o da repress�o, da censura e com a edi��o do AI-5 (Ato Institucional nº 5), que endureceu o regime e tornou ainda mais dif�cil a conviv�ncia p�blica dos intelectuais.
De funcion�rios a donos
Em 1975, o sobrado da Rua S�o Jos� foi novamente vendido, para a mesma empresa de engenharia que levou ao ch�o seu endere�o mais c�lebre. A livraria ent�o se mudaria para um im�vel alugado, na Rua do Carmo, 61.
"O Carlos, que era livreiro na Rua S�o Jos� desde 1921 - ele come�ou trabalhando na Livraria Quaresma -, com a mudan�a para a Rua do Carmo fica muito abatido, depressivo e triste", conta Gomes Filho. "E a�, a livraria volta a ser s� sebo e entra num processo de decad�ncia."
As tardes de aut�grafo no centro deram lugar a noites de aut�grafos nas livrarias da Zona Sul. E ent�o Ribeiro, j� muito doente, decidiu passar o neg�cio para tr�s de seus funcion�rios: Carlos Vieira, Jos� Germano da Silva e Adelbino Esp�nola.
"Entrei na livraria em 1952, mas s� fui registrado em 1954, porque em 1952 eu n�o tinha idade para tirar Carteira de Trabalho de Menor", conta Germano.

O faxineiro de 12 anos
Morador ent�o da Pavuna, bairro da Zona Norte do Rio, distante cerca de 30 km do centro, Germano perdeu o pai aos 5 anos. Seu padrasto era capataz de um grileiro, tomando conta de um canavial na regi�o.
Contratado como faxineiro e entregador, o menino de 12 anos sa�a de casa �s 4h da manh�, tomava o trem Maria Fuma�a at� a Pra�a da Bandeira, que atravessava para pegar o bonde at� a Pra�a XV.
Germano virou Germano porque quando entrou para a Livraria S�o Jos�, na Rua S�o Jos�, j� trabalhavam l� outros tr�s Jos�s. "Quando o patr�o gritava 'seu Jos�', todo mundo respondia 'eu, eu'. A� passei a ser Germano", conta o livreiro.
Ao fim da d�cada de 1960, o funcion�rio que entrou menino virou atendente do balc�o. E, ao longo da d�cada seguinte, tomou gosto pela se��o jur�dica, muito prestigiada devido � proximidade da livraria com o F�rum de Justi�a do Rio e a Faculdade Nacional de Direito da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
Entre os clientes famosos estiveram os ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) Jos� Carlos Moreira Alves, aposentado em 2003, e Luiz Fux.
Germano lembra ainda do juiz Eli�zer Rosa, da 8a. Vara Criminal do Rio ("Primeiro que o criminoso, buscava no infrator o homem, que a este era mister recuperar e restituir ao conv�vio social", diz um texto de elogio ao magistrado).
"Eu tinha amigos que diziam 'Poxa, Germano, voc� � formado em direito? Vejo voc� a�, conversando com juiz, com ministro, como se fosse um advogado'. Eu dizia 'n�o, � que gosto de ler as orelhas dos livros'", conta o livreiro, entre risos.
A luta contra o aluguel
Com a doen�a de Carlos Ribeiro, seus filhos decidiram se desfazer do neg�cio. Germano, Vieira e Adelbino se organizaram ent�o para comprar a livraria. A venda foi feita por 1 milh�o de cruzeiros, com cada funcion�rio dando 150 mil de entrada, com dinheiro dos seus fundos de garantia.
O restante foi pago em suaves presta��es mensais a perder de vista.
Carlos Ribeiro morreu em 1993, mas a S�o Jos� permaneceu na Rua do Carmo, tocada por seus antigos funcion�rios, durante 30 anos. Em 2004, com o aumento do aluguel, a loja se mudou novamente, para um im�vel menor, na Rua Primeiro de Mar�o, onde funcionou at� 2014.
"Ent�o, mais uma vez, veio a quest�o imobili�ria", conta Gomes Filho. "O Rio de Janeiro ficou muito caro, por causa de Copa do Mundo, de Olimp�ada, tudo encareceu."
�ltimo s�cio remanescente da loja, Germano ent�o se mudou para uma sala comercial, no quarto andar de um edif�cio da Rua da Quitanda, contando com a venda online pelo site Estante Virtual.
"O movimento de loja � uma coisa, o de sala � outra. Quem � que vai saber que a livraria estava no quarto andar da Rua da Quitanda? Ningu�m sabia, mesmo a gente botando no site, pagando an�ncio", lamenta Germano.
"Come�ou a ficar ruim o neg�cio para mim, eu ia l� de manh�, ficava at� umas 16h, era eu sozinho, n�o vendia nada. S� gastando, pagando aluguel. A� eu disse � minha filha: 'Melhor a gente acabar com isso aqui e eu viver da aposentadoria, porque a livraria agora n�o est� dando mais nada'."
E ent�o veio a pandemia
O que j� estava ruim, ficou ainda pior com a crise do coronav�rus. "Eu n�o vendi mais nada. Durante 30 dias, eu n�o vendi um livro", conta Germano.
E ent�o, no come�o deste ano, o livreiro caiu doente, v�tima do v�rus. "Fiquei 39 dias internado, com 70% do meu pulm�o tomado. S� no CTI, eu fiquei 11 dias, entre l� e c�", lembra. "Mas o homem l� de cima disse: 'N�o, ainda n�o est� na hora de voc� vir para c�, vamos deixar voc� sofrer mais um pouco a� embaixo'. Ent�o eu tive alta e vim para casa."
Enquanto Germano se recuperava, coube � filha vender o acervo restante e entregar a sala da Rua da Quitanda, pondo fim � hist�ria de 85 anos da Livraria S�o Jos�.
Para o pesquisador Adriano Gomes Filho, a hist�ria da Livraria S�o Jos� foi uma hist�ria de sobreviv�ncia em meio ao avan�o da especula��o imobili�ria no Rio de Janeiro.
"Em nenhum dos endere�os onde ela funcionou, sobrou o pr�dio original. Foi tudo demolido", diz Gomes Filho. "Todas as mudan�as de local da livraria foram relacionadas � especula��o imobili�ria ou ao aumento dos alugu�is. Foi assim em 2004, quando ela sai da Rua do Carmo. E em 2014, quando o Rio se tornou impratic�vel, e ela foi reduzida a uma sala comercial."
"O fim da Livraria S�o Jos� tem uma carga simb�lica muito grande", avalia o pesquisador. "� o fim da �ltima remanescente aqui no Rio de Janeiro dessas livrarias mais tradicionais. E � uma pena, porque as novas gera��es n�o t�m ideia da import�ncia que ela teve."
"Eu ia fazer quase 70 anos de Livraria S�o Jos�", lamenta Germano.
"Minha vida toda foi ali na livraria. Ent�o eu tenho saudade. Mas n�o posso abaixar a cabe�a, n�o. Tenho que ficar bem orgulhoso, porque o que eu fiz pela Livraria S�o Jos� � coisa muito rara, entrar como faxineiro e chegar a dono da livraria. E uma livraria que era mundialmente famosa. Eu n�o vou dizer a voc� que eu n�o tenho saudade, claro que eu tenho."
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