Quando o m�dico intensivista Bruno Nunes fala que tem trabalhado "sem descanso" h� pelo menos um ano, n�o � for�a de express�o.
Ele coordena a Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Santa Marcelina, hospital de refer�ncia no extremo leste da cidade de S�o Paulo, que atende a uma popula��o de cerca de 5 milh�es de pessoas, tanto pelo SUS quanto por meio de conv�nios e particulares.
Desde que a pandemia come�ou, n�o tirou um dia de folga.
O colapso do sistema de sa�de no Brasil criou m�rbidas filas de doentes que precisam de leitos nos hospitais. Do outro lado dessa equa��o est�o m�dicos, enfermeiros e t�cnicos de enfermagem pressionados, exaustos.
"Nunca vimos antes tanto burnout, tanta s�ndrome do p�nico, tantos afastamentos laborais, tantas f�rias como agora nesse �ltimo ano. Os profissionais est�o desgastados, n�o se sentem valorizados pela pol�tica de sa�de", diz ele.
A m�dia de plant�es por m�s entre os m�dicos da UTI subiu de 4,6 para 7,9 e o absente�smo m�dico (percentual dos plant�es feitos por coberturas, e n�o pelo profissional oficialmente na escala) saltou de 2,5% para 16%.
Nunes trabalha h� 8 anos no hospital. Nunca membros da equipe pediram para sair tanto quanto agora. E n�o apenas m�dicos, mas tamb�m enfermeiros e t�cnicos de enfermagem, que em geral t�m uma remunera��o mais baixa, t�m preferido ficar algum tempo sem trabalhar do que voltar para o que tem sido o dia a dia da UTI.
Entre a equipe m�dica foram 41 desligamentos nesse per�odo. Dos 115 que hoje fazem parte do grupo, 39 est�o ali h� um ano ou menos.

O n�mero de profissionais por ala segue os par�metros estipulados pela vigil�ncia sanit�ria, mas antes havia mais enfermeiros "e, a depender, at� mais m�dicos" para cada grupo de pacientes.
De um ano para c�, o n�mero de leitos quase dobrou: eram 73 camas de unidades cr�ticas, hoje s�o 168, entre unidades cr�ticas e semi-cr�ticas, 130 apenas para covid.
"E todas as vezes que a gente come�a a atender mais doentes, a abrir mais leitos, a gente se pergunta se vai ter condi��es de cuidar desses pacientes", diz ele, referindo-se n�o apenas aos profissionais de sa�de, mas tamb�m � estrutura e materiais necess�rios para atender os casos graves.
N�o chegaram a faltar medicamentos e oxig�nio, mas esse foi um risco concreto algumas semanas atr�s, antes de as medidas de restri��o implementadas no Estado reduzirem a demanda por atendimento.
"Isso bateu na nossa porta, sim, o que gerou bastante ansiedade do ponto de vista do cuidado da sa�de."
Por ser um hospital de alta complexidade, o Santa Marcelina atende especialmente pacientes graves, que demoram at� apresentar alguma melhora. Hoje, cerca de 80% est�o intubados. Com a pandemia atingindo pessoas cada vez mais jovens, a idade m�dia dos pacientes caiu de 68 para 54 anos.
Al�m dos pulm�es, a doen�a ataca diversas outras �reas do corpo. Muitos apresentam fal�ncia renal e precisam de hemodi�lise. H� casos de trombolismo pulmonar e de tromboses perif�ricas, como acidente vascular cerebral.
O acometimento do sistema nervoso central faz com que, de forma geral, os pacientes fiquem mais tempo sedados, "o que faz com que o despertar deles da ventila��o mec�nica seja muito agitado".
Os mais jovens passam mais tempo no hospital e, com a interna��o mais longa, v�m uma s�rie de outros problemas, como as infec��es.
"� muito falso uma pessoa imaginar que um profissional de sa�de que foi formado para isso se habitua a esse tipo de ocorr�ncia. Ver um paciente falecer, isso n�o � agrad�vel para ningu�m em momento algum da nossa hist�ria profissional - e a letalidade � mais alta entre os pacientes de covid", afirma.
"A gente v� pacientes jovens hoje com agravos sist�micos por muito tempo, e em algum momento a gente precisa sentar e rever onde � que a gente est� naquele tratamento. Mas at� onde vai a nossa atua��o? A partir de dado momento, o sofrimento � grande demais - e quando a gente decide isso? Essa � uma pergunta pra qual a gente n�o tem resposta, mas com que nos deparamos todos os dias."
Os m�dicos intensivistas passam por quatro anos de forma��o depois da faculdade. S�o treinados para tomar decis�es dif�ceis e trabalhar sob press�o. Mas muitas das cenas produzidas pela pandemia ser�o dif�ceis de apagar da mem�ria.
Para Nunes, uma delas � do ano passado, o momento em que os m�dicos tiveram que passar a atender os familiares de pacientes no estacionamento, dado o n�mero elevado de doentes e a probabilidade alta de contamina��o.
"Eu olhei pela janela e vi os residentes, os m�dicos assistentes conversando com centenas de familiares no estacionamento", recorda.
"A� voc� imagina: como que o governante, como que as pessoas respons�veis pela pol�tica de sa�de n�o s�o sens�veis �quilo? Familiares sendo acolhidos no estacionamento. Os profissionais que acabaram de se desparamentar, vendo [logo antes] pacientes graves que v�o falecer. Pessoas chorando no estacionamento, fora do hospital. Isso n�o pode ser tido como normal."
"Esse dia realmente me perguntei: o que ser� desse sistema? O que vai acontecer? N�s estamos tentando fazer o melhor. A gente entende que o hospital est� tentando fazer o melhor. Os governantes... espero que estejam tentando fazer o melhor. Mas a pol�tica de sa�de n�o inclui essas pessoas? Nossa clientela � humilde. Essas pessoas humildes estavam num estacionamento conversando com os m�dicos. Centenas de pessoas. O que est� acontecendo? Isso n�o pode ser normal. Eu n�o acho que um ano depois eu tenha recolhido os meus cacos do que eu vi."

De um ano para c�, o ambiente de trabalho tem se tornado cada vez mais silencioso.
"O in�cio da pandemia foi marcado por muita conversa", diz ele.
"A rotina de trabalho deles mudou abruptamente, o perfil do doente mudou, era uma doen�a nova, que n�o sab�amos como tratar. Isso causava muito p�nico no profissional de sa�de."
Com o tempo, a preocupa��o e o medo foram dando espa�o para o cansa�o e o estresse.
"Isso gera hoje um ambiente muito mais tenso. Por mais que os profissionais tentem conversar e se apoiar, eles est�o muito cansados."
Com a piora da situa��o e a marca de 4 mil mortes por dia, "� muito dif�cil fazer com que aqueles profissionais n�o se sintam tristes e deprimidos com o que est� acontecendo".
Especialmente por sentirem que a trag�dia poderia ter sido evitada.
"Existem duas formas de a gente resolver isso: o distanciamento social e o uso de m�scaras de um lado e a vacina do outro. A gente teve uma pol�tica de sa�de que n�o fez isso, n�o planejou isso h� um ano. Tudo bem, n�o evitaria todas as mortes, eu entendo isso. Mas poderia ser muito menos", diz o m�dico.
"N�o tem l�gica. Agora a gente est� pagando caro por isso com vidas."
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