(none) || (none)
UAI
Publicidade

Estado de Minas

A int�rprete que descobriu na aula de Libras que pastor abusava de adolescente

Homem casado pagava uma mensalidade aos pais da garota para que deixassem ela dormir na casa dele por alguns dias na semana.


20/04/2021 20:15 - atualizado 20/04/2021 23:47

Intérprete disse ter identificado abuso após estudante confiar nela durante aulas de libras(foto: Getty Images)
Int�rprete disse ter identificado abuso ap�s estudante confiar nela durante aulas de libras (foto: Getty Images)
Em seu primeiro dia de aula, a menina de 13 anos chega acompanhada de um homem � escola nova, em um bairro de S�o Paulo, em 2016. Ele se apresenta como respons�vel pela adolescente e faz uma s�rie de imposi��es.

 

"Eu sou pastor e cuido dos interesses da fam�lia dela. Estou conversando porque quero que voc� me conte caso algum garoto se aproximar dela. Quero saber se tem menino mandando carta, essas coisas. Como ela foi abusada em outra escola, eu tenho essa preocupa��o", disse. A escola � um col�gio regular que possui alunos de inclus�o, entre eles os que aprendem a L�ngua Brasileira de Sinais.

 

A int�rprete J�lia* conta que estranhou a abordagem e respondeu de forma protocolar. "Em primeiro lugar, sou int�rprete e n�o me reporto a voc�. Se voc� tiver alguma d�vida, pode procurar a dire��o da escola". O homem desconversou, mas tentou abord�-la sobre o assunto outras vezes.

 

"Mas eu n�o dei abertura", disse a educadora em entrevista � BBC News Brasil.

Um m�s depois, ela descobriu durante uma aula de libras que o homem abusava, quase diariamente, da garota. Ele pagava uma mensalidade de R$ 1.500 aos pais da adolescente para que ela dormisse na casa dele alguns dias por semana. Tudo revelado pela menina, segundo J�lia, em poucas semanas de aula.

 

Um levantamento organizado pelo Instituto Liberta, uma ONG que atua h� quatro anos no combate � explora��o sexual de crian�as e adolescentes, aponta que o Brasil registra cerca de 500 mil casos de explora��o sexual infantil por ano — quando um adolescente de 14 a 18 anos faz sexo com um adulto em troca de algo. O pa�s s� tem menos casos que a Tail�ndia.

 

Mais de quatro meninas s�o estupradas por hora no Brasil, segundo os dados do �ltimo balan�o do F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica, divulgado em 2019.

Sinais

Mas at� ter certeza do que ocorria, a int�rprete ficou atenta a uma s�rie de sinais. Especialistas em educa��o e psicologia infantil disseram � reportagem que tal atitude � essencial para descobrir abusos. J�lia relatou que logo percebeu que a adolescente apresentava uma profunda tristeza desde os primeiros dias de aula, chamando a aten��o pela fala desconexa e uma aparente ang�stia.

 

"Ela era uma adolescente muito bonita. Chamava muito a aten��o dos meninos, mas por ser muda e estar num ambiente de maioria ouvinte, ocorre uma abertura maior com o int�rprete, que precisa ter essa sensibilidade e construir um elo de confian�a com o aluno", conta.

 

Aos poucos, a int�rprete se aproximou da menina e identificou alguns desvios de comportamento. Ela lembra ter notado que a garota mentia em algumas situa��es, por exemplo ao justificar aus�ncias, e dava sinais de que queria contar algo. Durante um m�s, a adolescente registrou mais faltas do que presen�as na escola.

 

Questionada, ela justificou as aus�ncias dizendo que dormia muito tarde por conta de cerim�nias religiosas que participava na igreja, na qual o homem que a levava para a escola era pastor.

 

Com mais intimidade, a adolescente ent�o perguntou para a professora o que ela achava de um homem se relacionar com uma garota. E logo revelou que costumava dormir na casa do pastor, lembra J�lia. A s�s, pois a mulher do l�der religioso dormia no quarto ao lado.

 

"Aquilo mexeu muito comigo porque era a mesma religi�o que a minha. Comecei a entrar em parafuso. Eu desconfiava desde o come�o, mas gradativamente ela come�ou a me contar que ele a levava para passear, como um casal", contou J�lia.

 

O homem, enquanto isso, continuava insistindo para que a professora fizesse relat�rios do comportamento da estudante.


Abuso infantil atinge milhares de crianças por ano no Brasil(foto: Getty Images)
Abuso infantil atinge milhares de crian�as por ano no Brasil (foto: Getty Images)

 

"Ele queria saber cada passo dela, como um gavi�o. � diferente de um pai ou respons�vel preocupado. Por que uma menina que tem pai e m�e precisa de um homem para lev�-la para cortar o cabelo, levar para viajar?", questiona.

 

J�lia disse � BBC que ent�o avisou o diretor da escola e eles descobriram que o documento de tutela que o pastor tinha entregue na escola era falso.

 

Certo dia, conta a int�rprete, o pastor levou a mulher dele � escola. A esposa parecia uma pessoa abatida, que olhava sempre para o ch�o, era inexpressiva e tinha uma postura corporal submissa ao marido.

 

A menina come�ou a confiar cada dia mais na int�rprete e contar detalhes da rotina com o pastor.

 

"Ela queria me dizer algo de forma indireta, mas sem dizer claramente: 'Eu transo com ele'. A inten��o era pedir socorro, mas por outro lado deixava claro que gostava do conforto proporcionado por aquela situa��o. Ela ganhava roupas e dinheiro, e isso fazia diferen�a na vida dela porque tinha irm�os e era pobre. Isso criava um conflito na mente dela", relata.

 

A int�rprete disse que a garota era levada de carro todos os dias pelo pastor. Ao ser questionada sobre a mulher dele, a garota respondia que ela praticamente n�o existia para o marido e que a via chorar frequentemente.

 

A gota d'�gua para J�lia foi quando a aluna revelou que, al�m de acompanhar a garota � consulta m�dica como se eles formassem um casal, o homem ainda orientava a adolescente sobre como ela poderia se prevenir de uma gravidez indesejada e manter cuidados �ntimos. No mesmo dia, J�lia acionou o Conselho Tutelar.

 

A m�e da garota foi chamada e, segundo a int�rprete, ficou indignada com a den�ncia e tentou agredi-la. "Disse que eu estava inventando. A menina tamb�m negou tudo para a delegada, que percebeu e pediu exames de corpo de delito que comprovaram o abuso."

Xingada e culpada

"Ela (a m�e) me xingou, gritou e disse para n�o acreditarem em mim porque o pastor s� queria ajudar a fam�lia. Fomos para a delegacia fazer o exame de corpo de delito no mesmo dia e foi constatado que a menina tinha sido estuprada", afirmou a professora.


Em depoimento a uma delegada, a garota negou tudo o que tinha contado à professora, inclusive que o homem a tinha levado ao médico(foto: Getty Images)
Em depoimento a uma delegada, a garota negou tudo o que tinha contado � professora, inclusive que o homem a tinha levado ao m�dico (foto: Getty Images)

 

Em depoimento a uma delegada, a garota negou tudo o que tinha contado � professora, inclusive que o homem a tinha levado ao m�dico.

 

A int�rprete se afastou da escola por alguns dias. Quando voltou, soube que o caso estava sendo investigado e que a fam�lia se mudaria.

Um problema frequente

Desde ent�o, J�lia diz que n�o tem not�cias do caso.

 

Procurada pela BBC News Brasil, a Secretaria da Seguran�a P�blica de S�o Paulo informou em nota que o caso foi investigado por uma delegacia da mulher e depois foi encaminhado � Vara da Inf�ncia junto com os laudos periciais.

 

"Posteriormente, o processo administrativo e a A��o Judicial Civil foram arquivados pelo Judici�rio", encerra a nota enviada pela assessoria de imprensa do �rg�o.

 

A int�rprete, por�m, disse que esse n�o foi o primeiro caso de abuso que ela descobriu.

 

"Em 2002, uma menina me contou que dormia com papai e a mam�e dela e que ele fazia 'carinho' nela. Depois, ela me perguntou se � normal sentir dor quando faz xixi. Eu disse que n�o. Ela foi levada para o Conselho Tutelar e exames apontaram que ela estava com HPV, contra�do do pr�prio pai", afirmou.

 

A presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, diz que o papel da escola � muito importante para identificar casos de abuso.

 

"Quando voc� tem uma informa��o de que mais de 70% dos casos acontecem dentro da pr�pria resid�ncia, o papel da escola � muito importante. Se voc� est� nesse ambiente de seguran�a comprometido, qual outro lugar a crian�a pode buscar ajuda? Na pandemia, sem esse contato pessoal com o professor, isso ficou ainda mais comprometido", afirmou.

 

Ela disse que a tend�ncia � de um aumento no n�mero de abusos durante a pandemia. Segundo o F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica, entre mar�o e abril deste ano foram registrados 22% mais casos de feminic�dio no pa�s em rela��o ao mesmo per�odo do ano anterior — subindo de 117 para 143.

 

Mas toda essa carga emocional absorvida pela int�rprete tamb�m tem um pre�o.

 

Durante esses anos ap�s o abuso da aluna dela, a professora fez tratamento psicol�gico e recebeu apoio dos amigos para lidar com tanta informa��o. E, ao lembrar do caso do pastor abusador, ela disse ter sentido uma sensa��o de miss�o cumprida. "Penso que ele n�o vai fazer mal pelo menos para essa fam�lia."

 

Por�m, ela conta ter se afastado do caso.

 

"Com a terapia, eu entendi que estou nesse ambiente, mas n�o sou dele. Eu s� sou um canal e entendo minha fun��o de fazer parte dessa intermedia��o entre o aluno e os �rg�os respons�veis. N�o me aproprio mais daquilo. Quando fiz isso, eu adquiri uma �lcera e pensei que fosse morrer. N�o que isso n�o me machuque ou afete, mas eu tento passar uma r�gua", conta a int�rprete.

 

A BBC News Brasil entrou em contato com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos, respons�vel pelos conselhos tutelares, mas a pasta disse que cada conselho � independente e que n�o obteve mais detalhes sobre o caso.

A BBC News Brasil tamb�m entrou em contato com um conselheiro que atendeu o caso, mas ele preferiu n�o conversar com a reportagem.

Melhor amigo

Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, entre professores, acad�micos e conselheiros tutelares disseram que o professor � a pessoa de maior confian�a da crian�a e do adolescente para denunciar casos de abuso e explora��o.

 

O Instituto Liberta lan�ou h� tr�s anos um desafio para que os profissionais da educa��o estadual de S�o Paulo fizessem projetos que denunciassem a viol�ncia sexual. Os vencedores tiveram a oportunidade de apresent�-lo na Universidade de Columbia (NY), parceira do Instituto, e conhecer experi�ncias de outras escolas.

 

Seis meses ap�s as rodas de conversa promovidas pelo grupo do Estado de S�o Paulo, com a inten��o de promover a identifica��o desses casos, houve um aumento de 300% no registro de ocorr�ncias escolares de viol�ncias sexuais no sistema da de educa��o.


Na plataforma desenvolvida pelas professoras, o estudante escolhe um docente em quem ele confia e se identifica para conversar reservadamente duas vezes por semana(foto: Getty Images)
Na plataforma desenvolvida pelas professoras, o estudante escolhe um docente em quem ele confia e se identifica para conversar reservadamente duas vezes por semana (foto: Getty Images)

 

Um dos projetos vencedores do concurso Instituto Liberta foi uma plataforma de bate-papo desenvolvida pelas professoras Bruna Danielle Guimar�es Zafani e L�via Aparecida Alves, ambas de 32 anos. Elas d�o aulas para alunos do ensino m�dio em Ribeir�o Preto, no interior paulista.

 

Na plataforma desenvolvida pelas professoras, o estudante escolhe um docente em quem ele confia e se identifica para conversar reservadamente duas vezes por semana. A inten��o � falar n�o apenas da vida acad�mica, do ambiente escolar, mas tamb�m revelar situa��es que os incomodam fora da escola.

 

"Eles fazem relatos pessoais. Falam sobre o relacionamento com os pais e at� viola��o sexual. Em um ano, recebemos relatos de abusos cometidos por padrasto, amigo do pai, tio e cunhado", conta Bruna.

 

Elas dizem que a inten��o � dar o exemplo para que outras escolas criem canais de comunica��o entre professores e alunos. Para isso, Bruna e L�via criaram o canal "Anjos do Sol" no YouTube para orientar outros professores a lidar com casos de abuso e explora��o infantil.

 

O pr�ximo passo das professoras � criar um aplicativo para que os alunos tenham uma ferramenta ainda mais f�cil, r�pida e sigilosa para fazer a den�ncia. Elas j� est�o em conversa com programadores para desenvolv�-lo.

 

A inten��o � fazer uma interface amig�vel, com desenhos e informa��es para a v�tima. Haver� a op��o para o aluno mandar uma mensagem pelo WhatsApp e at� Instagram.

 

"Durante a visita � universidade Columbia, encontramos v�rias ONGs que combatem o abuso e viol�ncia infantil. O principal ponto que elas indicam � seguir a Lei da Escuta Ativa, que � fazer a crian�a ou adolescente relatar apenas uma vez o que ocorreu com ela para evitar revitimiza��o", afirmou L�via Alves.

 

A diretora do Instituto Liberta, Cristina Cordeiro, disse que contar diversas vezes um caso de abuso pode causar traumas.

 

"H� casos em que as crian�as contam a situa��o diversas vezes: para a professora, depois a um m�dico, delegada, e isso gera um grande desgaste emocional, que pode se tornar permanente. Para piorar, muitas vezes a fam�lia n�o enxerga o abuso e imagina que � algo bom para a filha de 13 anos ter um relacionamento com um fazendeiro rico", afirma Cordeiro.

 

O instituto criou uma cartilha para orientar os profissionais de educa��o sobre como tratar sobre o tema da explora��o sexual na escola. O documento ensina como conversar com as v�timas e ainda quais condutas tomar a partir do momento em que recebem a den�ncia.

 

A professora Bruna Zafani diz que elas atenderam casos em que n�o apenas a fam�lia apoiava, mas em que a v�tima tamb�m se apaixonou pelo abusador.

 

"Ela n�o entendia que era um abuso. Aprendeu que aquilo era uma rela��o de carinho normal e inclusive ganhava presentes. Informar � o primeiro passo. As v�timas muitas vezes n�o sabem o que � um abuso, que est�o sendo sexualmente exploradas", afirma.

Ambiente seguro

Luciana Temer conta que, em uma parceria com a Prefeitura de S�o Paulo, o Instituto Liberta criou nos �ltimos meses um site interativo com uma intelig�ncia artificial para identificar quando o aluno da rede p�blica est� deprimido. Ao chegar num n�vel de tristeza estabelecido, ele pergunta se o adolescente gostaria de conversar com um professor e aciona um plantonista.

 

"Identificamos 51 casos de viol�ncia sexual e 200 casos de outros tipos de viol�ncia nesse per�odo. Isso demonstra a import�ncia �bvia de a escola ser um espa�o onde a crian�a possa pedir socorro. Sem escola, criamos uma solu��o virtual e a gente gostaria que isso pudesse ser expandido", afirmou.

 

Temer afirma que, ao inv�s de contar aos plantonistas, muitos alunos preferiam falar com seu pr�prio professor, com quem tem mais intimidade. Ela explica que o aluno costuma falar sobre os abusos quando encontra um docente de confian�a.

 

"A escola precisa estar aberta para ouvir esses alunos. O mais importante � que a escola fale sobre viol�ncia sexual e sexualidade com crian�as e adolescentes.

 

No Reino Unido, isso � uma pol�tica p�blica e evita casos. Quando fala sobre o corpo do aluno e ele percebe alguma viola��o nesse sentido, ele fala 'n�o'. E nesse o adulto recua. Porque muitas vezes o adulto se usa da ignor�ncia da crian�a para atac�-la. Quando ela sabe que aquilo n�o � um carinho e incomoda, ela resiste".

 

*O nome da int�rprete foi alterado para preservar sua identidade


J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!


receba nossa newsletter

Comece o dia com as not�cias selecionadas pelo nosso editor

Cadastro realizado com sucesso!

*Para comentar, fa�a seu login ou assine

Publicidade

(none) || (none)