
"Eu sou pastor e cuido dos interesses da fam�lia dela. Estou conversando porque quero que voc� me conte caso algum garoto se aproximar dela. Quero saber se tem menino mandando carta, essas coisas. Como ela foi abusada em outra escola, eu tenho essa preocupa��o", disse. A escola � um col�gio regular que possui alunos de inclus�o, entre eles os que aprendem a L�ngua Brasileira de Sinais.
A int�rprete J�lia* conta que estranhou a abordagem e respondeu de forma protocolar. "Em primeiro lugar, sou int�rprete e n�o me reporto a voc�. Se voc� tiver alguma d�vida, pode procurar a dire��o da escola". O homem desconversou, mas tentou abord�-la sobre o assunto outras vezes.
"Mas eu n�o dei abertura", disse a educadora em entrevista � BBC News Brasil.
Um m�s depois, ela descobriu durante uma aula de libras que o homem abusava, quase diariamente, da garota. Ele pagava uma mensalidade de R$ 1.500 aos pais da adolescente para que ela dormisse na casa dele alguns dias por semana. Tudo revelado pela menina, segundo J�lia, em poucas semanas de aula.
Um levantamento organizado pelo Instituto Liberta, uma ONG que atua h� quatro anos no combate � explora��o sexual de crian�as e adolescentes, aponta que o Brasil registra cerca de 500 mil casos de explora��o sexual infantil por ano — quando um adolescente de 14 a 18 anos faz sexo com um adulto em troca de algo. O pa�s s� tem menos casos que a Tail�ndia.
Mais de quatro meninas s�o estupradas por hora no Brasil, segundo os dados do �ltimo balan�o do F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica, divulgado em 2019.
Sinais
Mas at� ter certeza do que ocorria, a int�rprete ficou atenta a uma s�rie de sinais. Especialistas em educa��o e psicologia infantil disseram � reportagem que tal atitude � essencial para descobrir abusos. J�lia relatou que logo percebeu que a adolescente apresentava uma profunda tristeza desde os primeiros dias de aula, chamando a aten��o pela fala desconexa e uma aparente ang�stia.
"Ela era uma adolescente muito bonita. Chamava muito a aten��o dos meninos, mas por ser muda e estar num ambiente de maioria ouvinte, ocorre uma abertura maior com o int�rprete, que precisa ter essa sensibilidade e construir um elo de confian�a com o aluno", conta.
Aos poucos, a int�rprete se aproximou da menina e identificou alguns desvios de comportamento. Ela lembra ter notado que a garota mentia em algumas situa��es, por exemplo ao justificar aus�ncias, e dava sinais de que queria contar algo. Durante um m�s, a adolescente registrou mais faltas do que presen�as na escola.
Questionada, ela justificou as aus�ncias dizendo que dormia muito tarde por conta de cerim�nias religiosas que participava na igreja, na qual o homem que a levava para a escola era pastor.
Com mais intimidade, a adolescente ent�o perguntou para a professora o que ela achava de um homem se relacionar com uma garota. E logo revelou que costumava dormir na casa do pastor, lembra J�lia. A s�s, pois a mulher do l�der religioso dormia no quarto ao lado.
"Aquilo mexeu muito comigo porque era a mesma religi�o que a minha. Comecei a entrar em parafuso. Eu desconfiava desde o come�o, mas gradativamente ela come�ou a me contar que ele a levava para passear, como um casal", contou J�lia.
O homem, enquanto isso, continuava insistindo para que a professora fizesse relat�rios do comportamento da estudante.

"Ele queria saber cada passo dela, como um gavi�o. � diferente de um pai ou respons�vel preocupado. Por que uma menina que tem pai e m�e precisa de um homem para lev�-la para cortar o cabelo, levar para viajar?", questiona.
J�lia disse � BBC que ent�o avisou o diretor da escola e eles descobriram que o documento de tutela que o pastor tinha entregue na escola era falso.
Certo dia, conta a int�rprete, o pastor levou a mulher dele � escola. A esposa parecia uma pessoa abatida, que olhava sempre para o ch�o, era inexpressiva e tinha uma postura corporal submissa ao marido.
A menina come�ou a confiar cada dia mais na int�rprete e contar detalhes da rotina com o pastor.
"Ela queria me dizer algo de forma indireta, mas sem dizer claramente: 'Eu transo com ele'. A inten��o era pedir socorro, mas por outro lado deixava claro que gostava do conforto proporcionado por aquela situa��o. Ela ganhava roupas e dinheiro, e isso fazia diferen�a na vida dela porque tinha irm�os e era pobre. Isso criava um conflito na mente dela", relata.
A int�rprete disse que a garota era levada de carro todos os dias pelo pastor. Ao ser questionada sobre a mulher dele, a garota respondia que ela praticamente n�o existia para o marido e que a via chorar frequentemente.
A gota d'�gua para J�lia foi quando a aluna revelou que, al�m de acompanhar a garota � consulta m�dica como se eles formassem um casal, o homem ainda orientava a adolescente sobre como ela poderia se prevenir de uma gravidez indesejada e manter cuidados �ntimos. No mesmo dia, J�lia acionou o Conselho Tutelar.
A m�e da garota foi chamada e, segundo a int�rprete, ficou indignada com a den�ncia e tentou agredi-la. "Disse que eu estava inventando. A menina tamb�m negou tudo para a delegada, que percebeu e pediu exames de corpo de delito que comprovaram o abuso."
Xingada e culpada
"Ela (a m�e) me xingou, gritou e disse para n�o acreditarem em mim porque o pastor s� queria ajudar a fam�lia. Fomos para a delegacia fazer o exame de corpo de delito no mesmo dia e foi constatado que a menina tinha sido estuprada", afirmou a professora.

Em depoimento a uma delegada, a garota negou tudo o que tinha contado � professora, inclusive que o homem a tinha levado ao m�dico.
A int�rprete se afastou da escola por alguns dias. Quando voltou, soube que o caso estava sendo investigado e que a fam�lia se mudaria.
Um problema frequente
Desde ent�o, J�lia diz que n�o tem not�cias do caso.
Procurada pela BBC News Brasil, a Secretaria da Seguran�a P�blica de S�o Paulo informou em nota que o caso foi investigado por uma delegacia da mulher e depois foi encaminhado � Vara da Inf�ncia junto com os laudos periciais.
"Posteriormente, o processo administrativo e a A��o Judicial Civil foram arquivados pelo Judici�rio", encerra a nota enviada pela assessoria de imprensa do �rg�o.
A int�rprete, por�m, disse que esse n�o foi o primeiro caso de abuso que ela descobriu.
"Em 2002, uma menina me contou que dormia com papai e a mam�e dela e que ele fazia 'carinho' nela. Depois, ela me perguntou se � normal sentir dor quando faz xixi. Eu disse que n�o. Ela foi levada para o Conselho Tutelar e exames apontaram que ela estava com HPV, contra�do do pr�prio pai", afirmou.
A presidente do Instituto Liberta, Luciana Temer, diz que o papel da escola � muito importante para identificar casos de abuso.
"Quando voc� tem uma informa��o de que mais de 70% dos casos acontecem dentro da pr�pria resid�ncia, o papel da escola � muito importante. Se voc� est� nesse ambiente de seguran�a comprometido, qual outro lugar a crian�a pode buscar ajuda? Na pandemia, sem esse contato pessoal com o professor, isso ficou ainda mais comprometido", afirmou.
Ela disse que a tend�ncia � de um aumento no n�mero de abusos durante a pandemia. Segundo o F�rum Brasileiro de Seguran�a P�blica, entre mar�o e abril deste ano foram registrados 22% mais casos de feminic�dio no pa�s em rela��o ao mesmo per�odo do ano anterior — subindo de 117 para 143.
Mas toda essa carga emocional absorvida pela int�rprete tamb�m tem um pre�o.
Durante esses anos ap�s o abuso da aluna dela, a professora fez tratamento psicol�gico e recebeu apoio dos amigos para lidar com tanta informa��o. E, ao lembrar do caso do pastor abusador, ela disse ter sentido uma sensa��o de miss�o cumprida. "Penso que ele n�o vai fazer mal pelo menos para essa fam�lia."
Por�m, ela conta ter se afastado do caso.
"Com a terapia, eu entendi que estou nesse ambiente, mas n�o sou dele. Eu s� sou um canal e entendo minha fun��o de fazer parte dessa intermedia��o entre o aluno e os �rg�os respons�veis. N�o me aproprio mais daquilo. Quando fiz isso, eu adquiri uma �lcera e pensei que fosse morrer. N�o que isso n�o me machuque ou afete, mas eu tento passar uma r�gua", conta a int�rprete.
A BBC News Brasil entrou em contato com a Secretaria Municipal de Direitos Humanos, respons�vel pelos conselhos tutelares, mas a pasta disse que cada conselho � independente e que n�o obteve mais detalhes sobre o caso.
A BBC News Brasil tamb�m entrou em contato com um conselheiro que atendeu o caso, mas ele preferiu n�o conversar com a reportagem.
Melhor amigo
Especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, entre professores, acad�micos e conselheiros tutelares disseram que o professor � a pessoa de maior confian�a da crian�a e do adolescente para denunciar casos de abuso e explora��o.
O Instituto Liberta lan�ou h� tr�s anos um desafio para que os profissionais da educa��o estadual de S�o Paulo fizessem projetos que denunciassem a viol�ncia sexual. Os vencedores tiveram a oportunidade de apresent�-lo na Universidade de Columbia (NY), parceira do Instituto, e conhecer experi�ncias de outras escolas.
Seis meses ap�s as rodas de conversa promovidas pelo grupo do Estado de S�o Paulo, com a inten��o de promover a identifica��o desses casos, houve um aumento de 300% no registro de ocorr�ncias escolares de viol�ncias sexuais no sistema da de educa��o.

Um dos projetos vencedores do concurso Instituto Liberta foi uma plataforma de bate-papo desenvolvida pelas professoras Bruna Danielle Guimar�es Zafani e L�via Aparecida Alves, ambas de 32 anos. Elas d�o aulas para alunos do ensino m�dio em Ribeir�o Preto, no interior paulista.
Na plataforma desenvolvida pelas professoras, o estudante escolhe um docente em quem ele confia e se identifica para conversar reservadamente duas vezes por semana. A inten��o � falar n�o apenas da vida acad�mica, do ambiente escolar, mas tamb�m revelar situa��es que os incomodam fora da escola.
"Eles fazem relatos pessoais. Falam sobre o relacionamento com os pais e at� viola��o sexual. Em um ano, recebemos relatos de abusos cometidos por padrasto, amigo do pai, tio e cunhado", conta Bruna.
Elas dizem que a inten��o � dar o exemplo para que outras escolas criem canais de comunica��o entre professores e alunos. Para isso, Bruna e L�via criaram o canal "Anjos do Sol" no YouTube para orientar outros professores a lidar com casos de abuso e explora��o infantil.
O pr�ximo passo das professoras � criar um aplicativo para que os alunos tenham uma ferramenta ainda mais f�cil, r�pida e sigilosa para fazer a den�ncia. Elas j� est�o em conversa com programadores para desenvolv�-lo.
A inten��o � fazer uma interface amig�vel, com desenhos e informa��es para a v�tima. Haver� a op��o para o aluno mandar uma mensagem pelo WhatsApp e at� Instagram.
"Durante a visita � universidade Columbia, encontramos v�rias ONGs que combatem o abuso e viol�ncia infantil. O principal ponto que elas indicam � seguir a Lei da Escuta Ativa, que � fazer a crian�a ou adolescente relatar apenas uma vez o que ocorreu com ela para evitar revitimiza��o", afirmou L�via Alves.
A diretora do Instituto Liberta, Cristina Cordeiro, disse que contar diversas vezes um caso de abuso pode causar traumas.
"H� casos em que as crian�as contam a situa��o diversas vezes: para a professora, depois a um m�dico, delegada, e isso gera um grande desgaste emocional, que pode se tornar permanente. Para piorar, muitas vezes a fam�lia n�o enxerga o abuso e imagina que � algo bom para a filha de 13 anos ter um relacionamento com um fazendeiro rico", afirma Cordeiro.
O instituto criou uma cartilha para orientar os profissionais de educa��o sobre como tratar sobre o tema da explora��o sexual na escola. O documento ensina como conversar com as v�timas e ainda quais condutas tomar a partir do momento em que recebem a den�ncia.
A professora Bruna Zafani diz que elas atenderam casos em que n�o apenas a fam�lia apoiava, mas em que a v�tima tamb�m se apaixonou pelo abusador.
"Ela n�o entendia que era um abuso. Aprendeu que aquilo era uma rela��o de carinho normal e inclusive ganhava presentes. Informar � o primeiro passo. As v�timas muitas vezes n�o sabem o que � um abuso, que est�o sendo sexualmente exploradas", afirma.
Ambiente seguro
Luciana Temer conta que, em uma parceria com a Prefeitura de S�o Paulo, o Instituto Liberta criou nos �ltimos meses um site interativo com uma intelig�ncia artificial para identificar quando o aluno da rede p�blica est� deprimido. Ao chegar num n�vel de tristeza estabelecido, ele pergunta se o adolescente gostaria de conversar com um professor e aciona um plantonista.
"Identificamos 51 casos de viol�ncia sexual e 200 casos de outros tipos de viol�ncia nesse per�odo. Isso demonstra a import�ncia �bvia de a escola ser um espa�o onde a crian�a possa pedir socorro. Sem escola, criamos uma solu��o virtual e a gente gostaria que isso pudesse ser expandido", afirmou.
Temer afirma que, ao inv�s de contar aos plantonistas, muitos alunos preferiam falar com seu pr�prio professor, com quem tem mais intimidade. Ela explica que o aluno costuma falar sobre os abusos quando encontra um docente de confian�a.
"A escola precisa estar aberta para ouvir esses alunos. O mais importante � que a escola fale sobre viol�ncia sexual e sexualidade com crian�as e adolescentes.
No Reino Unido, isso � uma pol�tica p�blica e evita casos. Quando fala sobre o corpo do aluno e ele percebe alguma viola��o nesse sentido, ele fala 'n�o'. E nesse o adulto recua. Porque muitas vezes o adulto se usa da ignor�ncia da crian�a para atac�-la. Quando ela sabe que aquilo n�o � um carinho e incomoda, ela resiste".
*O nome da int�rprete foi alterado para preservar sua identidade
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