
Certa manh�, em abril de 1920, a Fran�a e o Reino Unido deram in�cio a uma confer�ncia em uma pequena cidade na Riviera italiana, com o objetivo de formalizar a divis�o do Oriente M�dio otomano.
Essa divis�o entre as duas grandes pot�ncias coloniais da �poca havia sido acertada quatro anos antes, em uma reuni�o secreta na qual, com o consentimento da R�ssia, o franc�s Fran�ois Georges-Picot e o brit�nico Sir Mark Sykes negociaram o famoso Acordo de Sykes-Picot.
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Naquela semana de primavera italiana foi apenas lan�ada a base n�o s� para as atuais fronteiras do Oriente M�dio, mas tamb�m para muitos problemas que continuam at� hoje.
"As consequ�ncias do que aconteceu em San Remo s�o profundas e n�o apenas pelo que aconteceu naquela confer�ncia. Por muitos anos a Fran�a e a Gr�-Bretanha tomaram decis�es que acabaram criando Estados sem na��es, porque as na��es n�o tinham o direito de se expressar", afirmou � BBC News Mundo (servi�o em espanhol da BBC) Jean-Paul Chagnollaud, professor de ci�ncia pol�tica da Universidade de Cergy-Pontoise e especialista em Oriente M�dio.
"Muitos dos problemas que vemos hoje na Palestina, no L�bano, no Iraque ou na S�ria est�o obviamente ligados ao que aconteceu em 1920 e depois em 1921, 1922 e 1923", diz Chagnollaud, que � tamb�m diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos do Mediterr�neo e o Oriente M�dio (iReMMO).
O centen�rio da assinatura do tratado Sykes-Picot em 2016 despertou grande interesse da imprensa. No entanto, os cem anos da Confer�ncia de San Remo passaram, na maior parte, sem destaque.
Isso talvez se deva ao fato de que o primeiro acordo foi feito de forma sigilosa entre Fran�ois Georges-Picot e Sir Mark Sykes, dois aristocratas que acreditavam na ideia de que as pessoas no Oriente M�dio estariam melhor sob o dom�nio europeu.
Promessas brit�nicas
Os �rabes ignoraram por muitos anos que a Fran�a e o Reino Unido estavam tramando um tratado que enterraria uma promessa feita a eles pelos brit�nicos. O Reino Unido havia dito que, se os �rabes se rebelassem contra os otomanos (advers�rios dos brit�nicos na Primeira Guerra Mundial), a queda daquele imp�rio os tornaria livres e independentes.
A vit�ria dos Aliados no Oriente M�dio durante a Primeira Guerra Mundial foi um dos gatilhos para a desintegra��o do Imp�rio Otomano.
Ap�s esse evento, o mandato franc�s para a S�ria e os mandatos brit�nicos no Iraque e na Palestina foram criados, conforme planejado, todos sob a supervis�o da Liga das Na��es (�rg�o que antecedeu a ONU).
"Os brit�nicos ajudaram os �rabes da regi�o a se rebelarem contra o dom�nio otomano, mas durante a guerra eles fizeram promessas a diferentes grupos", disse Priya Satia, historiadora especialista em Imp�rio Brit�nico e professora da Universidade de Stanford, � BBC Mundo.
"Eles prometeram aos �rabes que poderiam governar independentemente a Palestina, prometeram aos franceses que dividiriam alguns dos territ�rios com eles e h� ainda a promessa que fizeram com a Declara��o de Balfour", disse ele.
'Eles n�o estavam prontos para a independ�ncia'
Mas na Confer�ncia de San Remo, o ent�o primeiro-ministro brit�nico David Lloyd George, o ex-primeiro-ministro franc�s Alexandre Millerand, o primeiro-ministro italiano Francesco Nitti e o embaixador japon�s Keishir%u014D Matsui concordaram que nem toda a regi�o estava pronta para a independ�ncia.
"Em San Remo, as conversas se concentraram especialmente nos mandatos dos territ�rios que a Fran�a e o Reino Unido j� haviam dividido. Em particular, houve um longo debate que durou v�rias horas sobre o tema da Palestina e a Declara��o de Balfour", disse Jean -Paul Chagnollaud.
Assinada em 2 de novembro de 1917, em plena Primeira Guerra Mundial, a Declara��o Balfour era um documento no qual o governo brit�nico prometia ao povo judeu um "lar" na regi�o da Palestina.
Os brit�nicos e os franceses planejavam dividir a regi�o do Levante, tamb�m conhecida como Levante Mediterr�neo, de maneira sect�ria.
O L�bano foi concebido como um ref�gio para os crist�os (especialmente os maronitas) e os drusos.

A Palestina seria o lar de uma comunidade judaica consider�vel, enquanto o Vale do Beca, pr�ximo � fronteira entre o L�bano e a S�ria, seria para os mu�ulmanos xiitas.
A S�ria, por sua vez, seria para os mu�ulmanos sunitas.
Fronteiras feitas 'com l�pis e r�gua'
Embora a geografia ajudasse a justificar em parte essas fronteiras, a maioria dos especialistas concorda que elas foram feitas basicamente "com um l�pis e uma r�gua", sem um maior conhecimento da regi�o, e que as linhas tra�adas por franceses e brit�nicos n�o correspondiam �s divis�es sect�rias, tribais ou �tnicas do Oriente M�dio.
Tamb�m houve diverg�ncias na Confer�ncia de San Remo. O franc�s Alexandre Millerand e o brit�nico David Lloyd George n�o concordaram totalmente em alguns pontos.
"Os franceses apoiaram a inclus�o da Declara��o Balfour no mandato, mas tamb�m queriam que os direitos pol�ticos do povo palestino fossem garantidos. Toda essa quest�o gerou muito debate", explica Chagnollaud.

Antes havia d�vidas se haveria um �nico mandato brit�nico ou uma �rea controlada pelos americanos, mas ap�s meses de discuss�es diplom�ticas, os brit�nicos concordaram em incluir os franceses na reorganiza��o do territ�rio.
O papel dos EUA
"Os brit�nicos aceitaram o mandato franc�s porque simplesmente perceberam que n�o tinham os meios financeiros para controlar todo o Oriente M�dio", detalha Henry Laurens, professor de Hist�ria Mundial �rabe Contempor�nea no Coll�ge de France e autor de um grande n�mero de obras sobre a hist�ria europeia e otomana nos s�culos 19 e 20.
Os americanos, por sua vez, se retiraram das negocia��es depois que seu Senado rejeitou o Tratado de Versalhes, que marcou o fim da Primeira Guerra Mundial.
A confer�ncia tamb�m abordou a quest�o da Arm�nia e de como seriam suas fronteiras (os EUA haviam rejeitado a cria��o de um mandato para a Arm�nia). Tamb�m foram discutidas a possibilidade de um estado curdo e o destino final de certos territ�rios do Imp�rio Otomano.
Com o Tratado de S�vres, assinado quatro meses depois, em agosto de 1920, os otomanos cederam oficialmente as �reas acordadas, aceitando a cria��o dos mandatos brit�nico e franc�s.
Foi mais um passo para a queda do Imp�rio Otomano e a cria��o da Turquia, que ocorreria tr�s anos depois.
Foi em San Remo que as cl�usulas desse tratado foram redigidas.
Tr�s princ�pios da reparti��o
Inicialmente, o Acordo Sykes-Picot planejava dividir o Oriente M�dio em Estados independentes, sujeitos a Londres e Paris, e estabelecer �reas de controle no Iraque.

Mas esse plano foi abandonado com o surgimento em 1919 da ideia de criar mandatos.
Uma vez que isso fosse decidido, a �nica coisa que faltaria fazer era definir as fronteiras desses mandatos — saber onde terminava a Palestina e come�ava a S�ria.
Em San Remo, as pot�ncias coloniais definiram tr�s princ�pios para criar as fronteiras.
O primeiro defendia uma liga��o entre a Palestina e a B�blia. Lloyd George utilizou o Atlas da Geografia Hist�rica da Terra Santa, publicado em 1915 pelo reverendo escoc�s George Adam Smith, para definir os limites da regi�o.
"Um segundo princ�pio era que os franceses n�o queriam que seu mandato tivesse col�nias judaicas", explica Henry Laurens, do Coll�ge de France.
"� assim que o pequeno territ�rio entre a S�ria e o L�bano, chamado Galileia, acabou sendo inclu�do no mandato brit�nico da Palestina e n�o no mandato franc�s da S�ria, porque ali havia assentamentos judeus", diz o especialista em mundo �rabe.
E, finalmente, o Reino Unido queria que houvesse continuidade territorial entre seus mandatos palestino e iraquiano.
"Isso explica o tipo de corredor que vemos hoje que vai da Jord�nia ao Iraque, se virmos em um mapa, o que significa que a S�ria n�o tem uma fronteira comum com a Ar�bia Saudita", diz Laurens.
'Paris e Londres desenharam o mapa e os �rabes o coloriram'
Para Henry Laurens, os franceses e os brit�nicos definiram as fronteiras, mas foram as elites locais que se encarregaram de tomar o poder.
"A imagem que costumo usar � a de que franceses e ingleses desenharam o mapa e os �rabes coloriram", diz.
"� por isso que as fronteiras que foram estabelecidas nos anos 20 do s�culo passado perduram at� hoje: as elites pol�ticas de Jerusal�m assumiram o controle da Palestina, as elites pol�ticas de Beirute assumiram o controle do L�bano, as de Damasco assumiram o controle da S�ria, e Bagd� assumiu o controle do Iraque. "
Mas isso, segundo o historiador, n�o foi feito em um dia, mas sim ao longo de v�rias d�cadas.
Hoje essas fronteiras s�o frequentemente usadas como exemplo dos "grandes males do Ocidente" na regi�o, mas Laurens ressalta que ningu�m realmente as questionou e "os locais as adotaram muito rapidamente".

"Desde muito cedo, quem emigrava de outras regi�es era considerado estrangeiro. J� na d�cada de 1930, um s�rio nascido no Iraque era tratado como estrangeiro. E quando refugiados palestinos chegaram � S�ria, L�bano ou Jord�nia em 1948, eles tamb�m foram tratados como estrangeiros. "
"Isso mostra que apenas um quarto de s�culo ap�s a defini��o das fronteiras, elas existiam de verdade e haviam sido internalizadas."
A outra confer�ncia de San Remo
Ao mesmo tempo, naquela semana, uma segunda confer�ncia sobre a distribui��o de recursos petrol�feros foi realizada em San Remo.
A grande demanda por energia durante a guerra mostrou �s grandes pot�ncias que era importante que elas tivessem suas pr�prias fontes de petr�leo.
Laurens lembra que, ao oficializar os mandatos, franceses e brit�nicos tamb�m realizaram conversas sobre o destino do "ouro negro" da regi�o, algo que haviam come�ado a negociar no in�cio de 1919.

Conforme acordado, a Fran�a receberia um quarto do capital da Turkish Petroleum Company, que mais tarde se tornaria a Iraq Petroleum Company.
"Depois o percentual foi reduzido por motivos t�cnicos, mas a verdade � que esta distribui��o do petr�leo teve consequ�ncias tremendas. Uma delas � que deu origem � Compagnie fran�aise des p�troles (CFP) que hoje se chama Total."
Alguns ganharam, a maioria perdeu
Jean-Paul Chagnollaud, da Universidade de Cergy-Pontoise, diz que alguns na regi�o ficaram satisfeitos com a cis�o.
"Os libaneses ficaram, em sua maior parte, felizes com seu mandato, embora isso lhes tenha causado muita dor e sofrimento."
"Os israelenses tamb�m ficaram muito felizes com a Declara��o de Balfour e o estabelecimento de uma 'casa nacional' na Palestina. Acho que eles foram, de fato, os grandes vencedores."
No entanto, o especialista ressalta que em outros lugares as divis�es arbitr�rias causaram "muitos problemas".
Ap�s a funda��o de Israel, em 14 de maio de 1948, a tens�o mudou de uma quest�o local para uma quest�o regional. Para os palestinos, come�ou a chamada Nakba ("destrui��o" ou "cat�strofe"). E a viol�ncia entre os palestinos, que continuam reivindicando seu Estado, e os israelenses continua at� hoje.
Enquanto isso, no Iraque persiste uma luta entre os xiitas, que s�o a maioria, os sunitas — aos quais o ex-presidente Saddam Hussein pertencia — e os curdos, que exigem uma na��o independente.
A S�ria de hoje, que pertencia ao mandato franc�s, � composta por uma maioria sunita, seguida por minorias alauitas — �s quais pertence a fam�lia governante de Assad — mas tamb�m � habitada por comunidades crist�s, drusas e judaicas.
Em 2011, os s�rios come�aram — inspirados pela Primavera �rabe — um levante pac�fico contra o presidente Bashar al-Assad que rapidamente tomou uma guinada violenta e terminou em uma guerra civil brutal e sangrenta que arrastou pot�ncias regionais e internacionais.
101 anos depois, as consequ�ncias da Confer�ncia de San Remo (e a subsequente divis�o do Oriente M�dio) s�o vistas em toda parte no que se tornou uma das regi�es mais tumultuadas do mundo.
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