Uma decis�o judicial que obrigou uma empresa a indenizar e pagar e pens�o � vi�va de um motorista que morreu de covid-19 ap�s ser infectado em maio de 2020 trouxe � tona uma disputa que se intensifica nos tribunais do Brasil. A covid-19 pode ser considerada uma doen�a ou mesmo acidente de trabalho?
Para responder a essa pergunta, a BBC News Brasil analisou regras, pareceres, decis�es judiciais e opini�es de especialistas. Em resumo, enquanto Cortes superiores como o Supremo Tribunal Federal n�o tomarem decis�es que sirvam de par�metro para as demais, cada magistrado decidir� distintamente, sem ter um fundamento �nico.
E a dificuldade atual � como determinar com certeza se um trabalhador que n�o atua em hospitais, por exemplo, contraiu coronav�rus durante o expediente. No caso citado acima, a Justi�a do Trabalho em Minas Gerais reconheceu neste ano como acidente de trabalho a morte por covid-19 do motorista de uma transportadora, e determinou o pagamento de uma indeniza��o por danos morais de R$ 200 mil para a filha e a mulher do funcion�rio, al�m do pagamento de pens�o.
Ele era a �nica fonte de renda da casa.
A empresa, em resposta, disse � Justi�a ter adotado todas as medidas de seguran�a, como m�scaras e orienta��es sobre os riscos envolvidos. Mas o magistrado entendeu que o funcion�rio ficou suscet�vel � contamina��o em pontos de parada e p�tios de carregamento durante o trajeto interestadual, por exemplo, e que a empresa n�o informou a quantidade de m�scaras e �lcool em gel entregues e nem comprovou um treinamento sobre riscos e cuidados.
H� v�rios casos do tipo, que nem sempre chegam � Justi�a. Ao todo, dados da Previd�ncia, obtidos e compilados pela reportagem, mostram que a covid-19 gerou no ano passado 19 mil notifica��es de doen�a ou acidente de trabalho no Brasil.
As dez profiss�es mais atingidas foram: t�cnico de enfermagem, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, abatedor, auxiliar de escrit�rio, assistente administrativo, magarefe (que mata e esfola reses nos matadouros), fisioterapeuta, agente comunit�rio e recepcionista.
E j� prevendo problemas trabalhistas decorrentes da pandemia, o governo federal publicou em mar�o de 2020, m�s em que o Brasil registrou oficialmente a primeira morte por covid-19, uma medida provis�ria que flexibilizava as regras trabalhistas em meio � pandemia. O artigo 29 do texto afirmava que "os casos de contamina��o pelo coronav�rus (covid-19) n�o ser�o considerados ocupacionais, exceto mediante comprova��o do nexo causal".
STF e a prova diab�lica
O trecho da medida provis�ria que barrava na pr�tica o enquadramento como doen�a ocupacional acabaria revogado um m�s depois pelo Supremo Tribunal Federal, ap�s pedidos de partidos pol�ticos, como PDT, Rede Sustentabilidade e PT, e entidades sindicais.
"Considerar ex vi legis (em virtude da lei) que os casos de contamina��o pelo coronav�rus n�o s�o considerados ocupacionais salvo a comprova��o nexo causal se exige uma prova diab�lica. Eu penso que a maior parte das pessoas que desafortunadamente contra�ram a doen�a n�o s�o capazes de dizer com precis�o onde e em que circunst�ncia adquiriram a doen�a. Acho que � irrazo�vel exigir-se que assim seja", afirmou o ministro Lu�s Roberto Barroso no julgamento em plen�rio.
Para o ministro Edson Fachin, "� importante deixar claro que o �nus de comprovar que a doen�a n�o foi adquirida no ambiente de trabalho e/ou por causa do trabalho deve ser do empregador, e, n�o, do empregado, como estabelece a norma impugnada".
Prova diab�lica, ou Probatio diabolica, � um conceito jur�dico oriundo do direito romano que trata de uma prova considerada extremamente dif�cil ou at� imposs�vel de ser produzida para comprovar um fato. No caso da covid-19, como dito acima, o ponto �: como determinar com certeza se um trabalhador contraiu-a durante o expediente?
E como um empregador poderia provar o oposto, por exemplo? Isso, segundo casos judiciais em tramita��o no pa�s, passa por mostrar � Justi�a que, por exemplo, a empresa distribuiu m�scaras, treinou seus funcion�rios sobre riscos e medidas de seguran�a, adotou distanciamento no ambiente de trabalho e afastou de fun��es presenciais quem estivesse com sintomas (leia mais abaixo).

O fato � que cada caso � decidido individualmente, e as disputas judiciais v�o al�m de provar que contraiu-se covid-19 durante o exerc�cio do trabalho, j� que o STF deixou claro que seria imposs�vel provar onde o v�rus foi contra�do.
Mas parte dos ju�zes trabalhistas nega pedidos de empregados justamente por n�o terem provado que ficaram doentes trabalhando. E a quest�o est� longe de ser pacificada.
"Toda atividade econ�mica hoje � considerada de risco, mas algumas s�o essenciais para a manuten��o da pr�pria vida em sociedade. Esses trabalhadores n�o t�m como se evadir do risco, e o risco ali � presumido. Esse � o entendimento que tem sido constru�do, mas que infelizmente ainda est� longe de pacifica��o", explica a procuradora do trabalho Marcia Kamei, coordenadora nacional de defesa do meio ambiente do trabalho do Minist�rio P�blico do Trabalho (MPT).
Segundo ela, uma possibilidade de resolu��o das disputas judiciais em torno das atividades consideradas essenciais (como motoristas e professores) seria o STF aplicar para o contexto da pandemia uma decis�o de repercuss�o geral (828040) tomada anteriormente pela Corte. Essa decis�o garante ao trabalhador que atua em atividade de risco o direito a indeniza��o em raz�o de danos decorrentes de acidente de trabalho, independentemente da comprova��o de culpa ou dolo do empregador (a quem cabe arcar com os custos). Ou seja, tendo ou n�o mitigado os riscos de contamina��o.
Essa repercuss�o geral, inclusive, foi central na decis�o do Supremo de derrubar no in�cio da pandemia um artigo da medida provis�ria do governo federal que n�o caracterizava a covid como doen�a ocupacional. "Ela pode ser sim uma doen�a ocupacional, mas quais ser�o os limites? A jurisprud�ncia ainda est� em evolu��o, infelizmente, porque existem v�rias situa��es de dissenso envolvendo o �rg�o previdenci�rio, o �rg�o de inspe��o do trabalho etc."
Para Kamei, a pacifica��o do tema deve levar em conta que uma parcela da sociedade "est� sendo sacrificada" durante a pandemia sem margem de escolha, e os dados de cont�gio t�m comprovado o excesso de risco do trabalho de profissionais de sa�de, de limpeza urbana e de frigor�ficos, por exemplo. "N�s dever�amos tratar essa quest�o com mais sensibilidade, com algo que v� al�m dos aplausos. Temos que dar suporte social, previdenci�rio e tudo mais. Um colch�o de cobertura para esse trabalhador que tem que se lan�ar na atividade e n�o tem escolha. H� uma situa��o de inseguran�a muito grande."
Um dos indicadores disso � o n�mero de den�ncias sobre riscos de contamina��o por covid-19 no ambiente de trabalho. Em um ano, foram mais de 40 mil, principalmente envolvendo a administra��o p�blica, o atendimento hospitalar, as empresas de teleatendimento, o setor varejista (mercados, principalmente) e o segmento de bares e restaurantes. Foram abertos mais de 11 mil inqu�ritos civis, firmados 443 termos de ajuste de conduta e 468 a��es civis p�blicas.
No Brasil, as empresas s�o obrigadas por lei a registrarem e comunicarem � Previd�ncia Social todos os casos de doen�as ligadas ao trabalho e de acidentes envolvendo seus funcion�rios no exerc�cio da fun��o ou no trajeto.
Um acidente de trabalho, segundo a lei brasileira, � uma les�o ou perturba��o funcional que causa a morte ou a perda, parcial ou total, da capacidade para o trabalho. Por outro lado, doen�a profissional e doen�a do trabalho s�o, com ligeiras diferen�as, adquiridas durante o exerc�cio do trabalho.
Se o afastamento durar at� duas semanas, o custo � absorvido pelo empregador. Acima desse per�odo, passa a ser arcado pela Previd�ncia Social. Nesse caso, uma per�cia avaliar� se o trabalhador poder� receber o aux�lio por incapacidade tempor�ria acident�ria (antigo aux�lio-doen�a acident�rio) ou at� se aposentar por invalidez (hoje chamado de aux�lio por incapacidade permanente). Em m�dia, o valor gira em torno de R$ 1.000 por m�s.
M�scaras, treinamentos e fotos em redes sociais
Nem toda comunica��o de acidente de trabalho resulta no pagamento de algum benef�cio previdenci�rio, j� que muitos voltam antes de completar 14 dias de afastamento e o caso se encerra.

E muitos recebem o aux�lio-doen�a previdenci�rio, sem a necessidade de associar ao exerc�cio do trabalho. Em julho de 2019, foram concedidos 189 mil benef�cios desse tipo e 17 mil por acidente de trabalho. Em julho de 2020, no pico da pandemia, foram 270 mil aux�lios-doen�a sem rela��o com trabalho e 507 por acidente de trabalho, segundo dados do boletim estat�stico da Previd�ncia Social.
N�o est� claro por que houve essa mudan�a nos n�meros, mas duas das hip�teses s�o: h� menos pessoas trabalhando presencialmente ou � burocraticamente mais "f�cil" ou "pr�tico" obter o aux�lio-doen�a por 15 dias sem precisar envolver responsabilidades do empregador.
Disputas entre funcion�rios e empresas surgem, por exemplo, quando os empregadores se recusam a registrar o acidente ou a doen�a ligada ao trabalho (ambos s�o comunicados ao governo pelo mesmo instrumento, o CAT, ou comunicado de acidente de trabalho) por negarem que a infec��o ocorreu durante o trabalho ou no trajeto at� l�. Por extens�o, recusam tamb�m arcar com eventuais consequ�ncias trabalhistas da covid-19, como indeniza��es morais e materiais e estabilidade de 12 meses para funcion�rios que recebem aux�lio-doen�a acident�rio.
Al�m disso, a empresa pode acabar pagando mais seguro de acidente de trabalho (SAT) e ser alvo de uma a��o da Previd�ncia Social para ressarcir os cofres p�blicos.
Como � quase imposs�vel provar onde ocorreu o cont�gio, parte das a��es trata da responsabilidade do empregador em rela��o �s possibilidades de cont�gio, como no caso da fam�lia do caminhoneiro de Minas Gerais que morreu de covid durante o percurso at� dois estados do Nordeste. O �nus da prova recai sobre o empregador. Ou seja, houve treinamento? Qu�o seguro era o ambiente de trabalho? Foram fornecidas m�scaras? Funcion�rios com suspeita da doen�a foram afastados?

"Tendo em conta o cont�gio na mesma �poca (de seis empregados), aliado ao fato de a r� n�o ter tomado todas as cautelas para preven��o da contamina��o da doen�a, � muito prov�vel que o cont�gio se deu em raz�o do labor da reclamada, tendo em conta a maior exposi��o ao risco, podendo-se presumir o nexo causal em raz�o das especiais condi��es de trabalho dos empregados", escreveu o juiz Willian Alessandro Rocha, da Vara de Trabalho de Po� (Grande S�o Paulo), num caso movido contra os Correios pelo sindicato da categoria.
O magistrado determinou ainda que a empresa fizesse testes nos funcion�rios, desinfectasse o ambiente de trabalho, afastasse quem estivesse com suspeita da doen�a, entre outras medidas.
Em sua decis�o que reconhece a covid-19 como doen�a ocupacional, ratificada posteriormente na segunda inst�ncia, Rocha afirma: "Nenhuma das partes teria condi��o de fazer prova da exist�ncia ou da inexist�ncia do nexo causal, raz�o pela qual a decis�o deve ser tomada a partir dos elementos indici�rios existentes no processo".
Mas que elementos poderiam ser esses?
A per�cia m�dica seria um caminho, segundo nota t�cnica do governo federal. Mas at� fotos em redes sociais durante a pandemia poderiam ser usados por empregadores para provar que um empregado se exp�s e pode ter contra�do o v�rus fora do ambiente de trabalho, explica o advogado Rafael Gabarra, especializado em direito previdenci�rio.
"O nexo causal precisa ficar caracterizado para que seja imputado como uma doen�a do trabalho. Mas nessa situa��o de incerteza, dessa chuva de medidas e decis�es, nada � mais seguro do que voc� deixar muito bem documentado e caracterizado o fato, com as datas em que a pessoa come�ou a ter sintomas, por exemplo."
Em Diadema, outra cidade da Grande S�o Paulo, uma funcion�ria de uma cl�nica m�dica foi � Justi�a para obrigar a empresa a emitir um comunicado de acidente de trabalho por covid-19, mas o magistrado negou o pedido de estabilidade provis�ria e indeniza��o por danos morais.
No processo, por exemplo, h� men��o ao contato dela, antes de se infectar, com o sogro que acabaria morrendo em decorr�ncia da doen�a. "A prova documental � contundente no sentido de que a demandante n�o contraiu o coronav�rus da S�ndrome Respirat�ria Aguda Grave 2 (Sars-Cov-2) em fun��o das suas atividades laborais", escreveu o juiz Rodrigo Acuio.
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