"Um pesadelo dentro da pandemia". Essa foi a frase usada por alguns m�dicos para descrever o crescimento vertiginoso de casos de mucormicose na �ndia, uma infec��o provocada por fungos que j� acometeu quase 9 mil pacientes com covid-19 nesse pa�s do Sudeste Asi�tico.
Conhecido popularmente como "fungo negro", o quadro mata mais de 50% dos acometidos. Muitos precisam passar por cirurgias mutilantes, que retiram partes do corpo afetadas pelo micro-organismo, como os olhos.
- 5 perguntas-chave sobre a mucormicose, infec��o rara que mutila e mata pacientes de covid na �ndia
- Fungo negro: Uruguai tem caso de mucormicose confirmado em paciente com covid
Embora os relatos vindos da �ndia sejam preocupantes e precisem ser acompanhados de perto, especialistas ouvidos pela BBC News Brasil entendem que eles n�o s�o motivo de grande alarme e � improv�vel que um cen�rio parecido se repita no Brasil ou em outros lugares do mundo.
"Essa situa��o local n�o constitui uma amea�a � sa�de p�blica global", tranquiliza o infectologista Alessandro Comar� Pasqualotto, professor da Universidade Federal de Ci�ncias da Sa�de de Porto Alegre.
"A mucormicose n�o � algo que vai se espalhar pelo mundo", concorda o tamb�m infectologista Fl�vio de Queiroz Telles Filho, professor da Universidade Federal do Paran�.
E esse baixo potencial de perigo pode ser explicado por dois motivos.
Em primeiro lugar, esses fungos s�o conhecidos e estudados desde o final do s�culo 19.
Segundo, eles j� circulam livremente por boa parte do mundo, inclusive no Brasil.
Um reino diverso e fascinante
"Os fungos n�o s�o assassinos", defende Pasqualotto, que tamb�m � membro da Confedera��o Europeia de Micologia Medicinal (micologia � a especialidade da biologia que estuda os fungos).
Ao lado dos animais, dos vegetais, dos protistas e das bact�rias, os fungos constituem um dos reinos da natureza, como costumamos aprender na escola.
As esp�cies que fazem parte dessa turma s�o muito diversas e podem ser encontradas nos mais diferentes formatos e tamanhos.
Os cogumelos s�o um tipo de fungo, bem como aquele bolor cinza ou verde que se forma na superf�cie de frutas, verduras e p�es em estado de decomposi��o.
Os fungos tamb�m foram grandes parceiros da humanidade ao longo da hist�ria: a esp�cie Saccharomyces cerevisiae, por exemplo, � a levedura que faz o p�o crescer e a cerveja fermentar.
J� o primeiro antibi�tico, a penicilina, foi obtido em 1928 a partir de uma subst�ncia secretada pelo fungo Penicillium.

Muitos desses micro-organismos vivem dentro de nosso pr�prio corpo, numa rela��o amistosa e sem causar problema algum. Partes do nosso sistema respirat�rio e digestivo, inclusive, s�o colonizadas por diversas esp�cies de fungos.
A quest�o � quando acontece algum desequil�brio no nosso organismo ou no ambiente ao redor: disfun��es no sistema imune, tratamentos medicamentosos e at� uma condi��o sanit�ria ruim podem servir de pretexto para esses seres microsc�picos sa�rem do controle.
E isso pode levar �s chamadas infec��es oportunistas. Elas podem ser menos s�rias, como uma micose na unha ou na pele, ou evolu�rem para quadros graves e potencialmente mortais, como uma infec��o sangu�nea ou pulmonar.
Por que o 'fungo negro' ganhou terreno?
No atual momento, a �ndia re�ne uma s�rie de condi��es que ajudam a explicar o aumento dos casos de mucormicose.
"Os agentes causadores da doen�a est�o no ar e tiram vantagem da umidade alta e da temperatura quente daquele pa�s", contextualiza Pasqualotto.
Vale refor�ar que os fungos que provocam essa condi��o, conhecidos como Rhizopus, Rhizomucor e Mucor, est�o presentes em muitos pa�ses (incluindo o Brasil) e podem ser observados no bolor do p�o e das frutas, por exemplo.
Mas se eles s�o t�o comuns assim, por que s� causam estragos em algumas poucas pessoas, enquanto outras sequer s�o afetadas?
A explica��o est� na condi��o de sa�de de cada um.
Telles Filho explica que existem tr�s situa��es que facilitam o desenvolvimento da mucormicose: ter diabetes descontrolado, ser portador de doen�as oncohematol�gicas (como a leucemia), que requerem transplante de medula �ssea, ou fazer uso de altas doses de rem�dios da classe dos cortic�ides, que possuem a��o anti-inflamat�ria.
"A �ndia � um dos pa�ses com maior quantidade de diab�ticos do mundo e vive atualmente um descontrole da pandemia de covid-19, com um alto n�mero de pacientes internados que necessitam tomar corticoides", diz o m�dico, que tamb�m coordena o Comit� de Micologia da Sociedade Brasileira de Infectologia.
Para completar, em muitos locais mais afastados desse pa�s, as condi��es sanit�rias dos hospitais e das enfermarias n�o s�o as ideais, o que facilita o risco de contamina��o por fungos.
Ou seja, falamos de uma situa��o que re�ne uma s�rie de pacientes vulner�veis, com o sistema imunol�gico combalido pela covid-19, que muitas vezes apresentam doen�as pr�vias (como o diabetes) e precisam de rem�dios que afetam ainda mais o funcionamento das c�lulas de defesa (caso dos cortic�ides). E eles s�o mantidos em locais que podem n�o apresentar a higiene adequada.
Esse � o cen�rio perfeito para que fungos como Rhizopus, Rhizomucor e Mucor tomem conta.
E o que isso representa para o Brasil?
Na quinta-feira (27/05), o Uruguai confirmou oficialmente o primeiro caso de mucormicose em seu territ�rio.
Isso alarmou ainda mais os brasileiros: ser� que esse fungo poderia pular a fronteira e agravar ainda mais a crise sanit�ria que acomete o pa�s?
Esse temor, que � absolutamente compreens�vel quando pensamos em novos v�rus e suas variantes, n�o faz sentido algum no caso dessas infec��es f�ngicas: falamos de micro-organismos que j� est�o aqui e at� podem causar problemas se alguns cuidados b�sicos n�o forem tomados.
"Quando a covid-19 chegou, n�s j� antecip�vamos que doen�as s�rias provocadas por fungos poderiam aumentar", conta Pasqualotto.
At� o momento, o Brasil n�o possui registros de pacientes com mucormicose durante ou ap�s uma infec��o pelo coronav�rus.
Mas h� relatos publicados de brasileiros que foram acometidos por outras esp�cies de fungos durante o per�odo que ficaram internados com covid-19.
"No Hospital de Cl�nicas de Curitiba, onde trabalho, acompanhei nos �ltimos meses alguns casos de aspergilose em pessoas que estavam na Unidade de Terapia Intensiva (UTI)", relata Telles Filho.
"Mas isso n�o � uma coisa alarmante: n�s temos meios para diagnosticar e tratar essa complica��o", completa.
A aspergilose mencionada pelo m�dico � provocada pelo fungo Aspergillus, que costuma brotar e se desenvolver em pacientes que fazem tratamentos para tumores hematol�gicos e est�o com a imunidade enfraquecida.
Outra figurinha preocupante no ambiente hospitalar � a Candida voc� j� deve ter ouvido falar dela como a causadora de uma infec��o muito frequente na regi�o genital das mulheres, a candid�ase.
Uma das integrantes dessa fam�lia � a temida Candida auris, que teve seus primeiros casos detectados no Brasil em dezembro de 2020, em dois pacientes com covid-19 internados num hospital de Salvador (BA).
Portas de entrada
Mas como esses seres microsc�picos invadem o corpo humano?
No geral, eles podem ser aspirados pelo pr�prio paciente ou entrar atrav�s dos tubos e cateteres que ficam ligados nas veias.
Outra origem � o intestino: como os fungos colonizam boa parte do sistema digestivo junto com as bact�rias, eles podem aproveitar um desequil�brio na microbiota (causada pelo uso de antibi�ticos, por exemplo) para ganhar terreno ali mesmo ou at� invadir a circula��o sangu�nea.
Cada um desses fungos pode afetar uma parte espec�fica do organismo: a mucormicose, que ganhou destaque nos �ltimos tempos, costuma entrar pelo nariz e logo invade os vasos sangu�neos do rosto, criando manchas escuras por onde passa (da� a alcunha "fungo negro").
Numa situa��o normal, � bem prov�vel que o sistema imunol�gico consiga lidar com esses avan�os f�ngicos para evitar repercuss�es maiores.
Mas, num momento de fragilidade causado pela covid-19, esse mecanismo natural de defesa pode n�o funcionar t�o bem e permitir que Mucor, Aspergillus, Candida e companhia limitada causem estragos.
"� como se o coronav�rus come�asse o servi�o e os fungos completassem a tarefa", compara Pasqualotto.
E como evitar isso?
Tudo come�a com a preven��o. "As equipes de sa�de precisam ter muito cuidado com a higiene e a lavagem das m�os, principalmente quando v�o mexer nos cateteres e demais dispositivos que est�o pr�ximos do paciente", orienta Telles Filho.
Desse modo, j� � poss�vel evitar a contamina��o desses materiais e a entrada de fungos pela respira��o ou pelos vasos sangu�neos.
Outra t�tica usada em hospitais, especialmente nas alas que recebem os pacientes com sistema imune muito comprometido (como aqueles que passaram por um transplante de medula �ssea, por exemplo) � a instala��o de filtros Hepa nos sistemas de ventila��o.
Esse material tem fibras capazes de reter part�culas muito pequenas entre elas, esporos de Aspergillus que poderiam invadir o organismo das pessoas mais debilitadas.
Uma terceira estrat�gia � lan�ar m�o de rem�dios antif�ngicos de forma profil�tica, para evitar que uma infec��o oportunista apare�a.
"Isso vale para alguns casos de c�ncer, mas n�o se encaixaria em quadros de covid-19", entende Telles Filho.
Do ponto de vista individual, vale sempre tomar cuidado com a pr�pria sa�de e manter doen�as cr�nicas, como o diabetes, sob controle.
"Tamb�m precisamos pensar no ambiente em que vivemos. Hoje em dia, passamos boa parte de nosso tempo em lugares fechados, ent�o precisamos nos preocupar com a umidade e a ventila��o", recomenda Pasqualotto.
O m�dico chama a aten��o para o ac�mulo de �gua e mat�ria org�nica em decomposi��o na geladeira e na despensa e diz que precisamos ficar atentos ao aparecimento de mofo nas paredes ou dentro de arm�rios na cozinha e no banheiro.
"Precisamos tirar o alimento para que os fungos n�o se desenvolvam", observa.
Demora na detec��o
Pasqualotto tamb�m destaca a necessidade de aumentar a disponibilidade de m�todos para o diagn�stico dessas mol�stias.
"Mesmo em grandes cidades, ainda lidamos com a falta de equipamentos e materiais para fazer a detec��o desses casos", lamenta.
Sem a identifica��o adequada, perde-se um tempo valioso em que o paciente j� poderia ser tratado com os antif�ngicos antes que o quadro evolu�sse para est�gios mais avan�ados.
"As pessoas precisam entender que as enfermidades provocadas por fungos s�o comuns e custam muitas vidas", apela o infectologista.
Infelizmente, o Brasil n�o possui registros oficiais sobre o n�mero de casos dessas doen�as.
Mas um trabalho publicado em 2016 calcula que mais de 3,8 milh�es de brasileiros sofram de infec��es f�ngicas s�rias, "a maioria deles pacientes com c�nceres malignos, asma, tuberculose, portadores de HIV, transplantados e aqueles que vivem em �reas end�micas de fungos patog�nicos", escrevem os autores.
"A comunidade cient�fica e as ag�ncias governamentais precisam trabalhar em conjunto para reduzir o fardo dessas doen�as, de diagn�stico complexo e dif�ceis de tratar", completam.
A culpa � das tulipas
Do ponto de vista do tratamento, h� uma enorme preocupa��o mundial sobre o aumento da resist�ncia f�ngica.
A exemplo das bact�rias, que desenvolveram m�todos para "driblar" o efeito dos antibi�ticos, muitos fungos se tornaram resistentes aos antif�ngicos.
Sem esses rem�dios, as op��es para combater essas infec��es ficam escassas, ou praticamente deixam de existir.
A Candida, encontrada naqueles pacientes de Salvador, � uma das esp�cies que mais se adaptaram e conseguiram escapar das op��es terap�uticas dispon�veis hoje.
Talles Filho explica que esse fen�meno est� associado ao uso maci�o e indiscriminado de fungicidas nas lavouras.
Essas subst�ncias t�m princ�pios ativos muito similares �queles que s�o usados na medicina, para tratar seres humanos.
"Na Europa, o Aspergillus j� se mostra resistente e isso se deve ao uso dos tais fungicidas na agricultura, especialmente para proteger as planta��es de tulipas na Holanda", revela.
Para evitar que esse problema cres�a ainda mais, � preciso seguir por dois caminhos: incentivar o uso consciente desses f�rmacos e investir na pesquisa e no desenvolvimento de novas solu��es.
A prop�sito, os fungos que atualmente causam o problema da mucormicose na �ndia tamb�m j� se mostram resistentes aos rem�dios e sinalizam um problema que pode afetar toda a humanidade nas pr�ximas d�cadas.
J� assistiu aos nossos novos v�deos no YouTube? Inscreva-se no nosso canal!