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Estado de Minas

Patentes de vacinas: que li��es tiramos das experi�ncias passadas na aids e na gripe

Cientistas e profissionais da sa�de concordam que uma eventual libera��o global dos imunizantes seria uma conquista hist�rica, mas n�o resolveria imediatamente a escassez de doses para controlar a pandemia no planeta inteiro.


12/06/2021 16:38

A distribuição desigual das doses de vacinas contra a covid-19 escancarou uma realidade inevitável: a pandemia só acabará de verdade quando todos estiverem protegidos(foto: Getty Images)
A distribui��o desigual das doses de vacinas contra a covid-19 escancarou uma realidade inevit�vel: a pandemia s� acabar� de verdade quando todos estiverem protegidos (foto: Getty Images)

Se a quebra de patentes das vacinas contra a covid-19 for realmente aprovada, isso representar� um feito hist�rico e poder� diminuir a desigualdade global de acesso aos servi�os de sa�de no futuro.

Mas uma medida do tipo certamente n�o resolver� nosso problema de falta de doses no curto prazo.

Essa � a principal constata��o feita por cinco especialistas em imuniza��o ouvidos pela BBC News Brasil durante as �ltimas semanas.

A an�lise deles acontece ap�s alguns eventos importantes, como a mudan�a de posicionamento dos Estados Unidos sobre a quest�o: no dia 5 de maio, o presidente americano Joe Biden anunciou que seu governo apoiaria a quebra de patentes dos imunizantes nos debates que ocorrem na Organiza��o Mundial do Com�rcio (OMC).

Alguns dias depois, em 17/05, foi a vez da China tamb�m se mostrar favor�vel � demanda.

A discuss�o sobre o tema come�ou ainda no final de 2020, quando �ndia e �frica do Sul defenderam essa ideia na OMC, entidade que regula o com�rcio internacional.

� �poca, a proposta encontrou forte resist�ncia dos pa�ses-membros, que preferiram proteger a propriedade intelectual de farmac�uticas e dos institutos de pesquisa.

Mas a evolu��o das campanhas de vacina��o em alguns pa�ses confirmou um conceito importante: a pandemia s� ir� acabar de verdade quando o mundo inteiro estiver protegido.

Em outras palavras, enquanto o coronav�rus circular livremente em algum lugar do planeta, a amea�a continua a ser real para todos, pois o surgimento de novas variantes mais transmiss�veis e com capacidade de "driblar" a resposta imune coloca em xeque todos os esfor�os feitos at� o momento.

Mas da� vem um problema importante: os laborat�rios que fabricam as vacinas j� testadas e aprovadas contra a covid-19 n�o possuem capacidade de produzir bilh�es e bilh�es de doses de uma hora para outra. N�o h� estrutura, material ou equipe que sejam suficientes para suprir essa necessidade.

Para piorar, os �ltimos meses escancararam que a distribui��o global de vacinas � absolutamente desigual: at� abril, os pa�ses ricos j� haviam vacinado uma a cada quatro pessoas.

Nas na��es mais pobres, apenas um a cada 500 indiv�duos havia recebido as doses contra a covid-19.

O diretor-geral da Organiza��o Mundial da Sa�de (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, chegou a classificar essa situa��o de "chocante" e "grotesca".

Na �ltima quarta-feira (09/06), os pa�ses-membros da OMC aceitaram iniciar formalmente as negocia��es para aumentar o suprimento global de vacinas contra a covid-19.

E h� duas propostas principais na mesa: a primeira, defendida por �ndia, �frica do Sul e outras na��es em desenvolvimento, pede a suspens�o pelos pr�ximos tr�s anos das patentes dos imunizantes que barram o coronav�rus.

A segunda, encampada por Uni�o Europeia, Su��a e Reino Unido, entende ser poss�vel aumentar a quantidade de doses dispon�veis por meio de acordos de licenciamento e transfer�ncia de tecnologia com outros produtores capacitados, que possuem f�bricas espalhadas pelo mundo.

'Epis�dio hist�rico'

Independentemente de qual caminho seja acatado pela OMC, o simples fato de existir essa discuss�o j� � algo a ser destacado, avaliam os especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.

O m�dico sanitarista Paulo Buss, professor em�rito da Funda��o Oswaldo Cruz (Fiocruz), destaca o impacto trazido pela mudan�a de posi��o dos Estados Unidos.

"N�s estamos vivendo um epis�dio hist�rico. Quando as patentes adquiriram uma dimens�o central no com�rcio internacional, os Estados Unidos sempre foram o pa�s que mais defendia a preserva��o dessa propriedade", avalia.

"O apoio americano � uma fissura importante nessa coura�a r�gida que protege as patentes e isso vai ter impacto nas negocia��es internacionais a partir de agora", completa o professor, que escreveu dois livros sobre diplomacia da sa�de e � membro titular da Academia Brasileira de Medicina.

Buss sente falta de uma participa��o mais ativa do Brasil nessas discuss�es.

"Isso � uma decep��o para n�s. A hist�ria do nosso pa�s sempre esteve ligada � coopera��o internacional, � busca constante por melhorar o acesso a vacinas, medicamentos e ferramentas de diagn�stico", lamenta. "O Brasil est� na contram�o de sua pr�pria hist�ria."

'Claras em neve' da imunologia

Apesar do simbolismo dos debates, � preciso ter em mente que a quebra de patentes n�o soluciona a quest�o mais urgente: a falta imediata de doses para proteger bilh�es de pessoas.

Mesmo num cen�rio em que a propriedade intelectual fosse completamente neutralizada, nenhum lugar do mundo teria capacidade para iniciar a fabrica��o de novos imunizantes de uma hora para outra.

E isso � ainda mais complicado quando pensamos em produtos modernos, que utilizam tecnologias desenvolvidas nos �ltimos anos.

"Algumas das vacinas dispon�veis atualmente, caso daquelas de mRNA [como a de Pfizer/BioNTech] e as de vetor viral n�o replicante [como a de AstraZeneca/Universidade de Oxford], s�o dif�ceis de fazer. S�o poucos os lugares que teriam capacidade de estruturar uma planta produtiva dessas rapidamente", conta o m�dico sanitarista Jos� Gomes Tempor�o, que foi ministro da Sa�de entre 2007 e 2010.

Para entender a dificuldade em fabricar doses desses compostos mais modernos, a epidemiologista Denise Garrett, vice-presidente do Instituto Sabin de Vacinas, organiza��o sediada nos Estados Unidos que trabalha para aumentar o acesso global aos imunizantes, faz uma compara��o com a culin�ria.

Seguindo a linha de racioc�nio dela, quebrar as patentes para ter acesso �s "receitas" das vacinas de mRNA sem suporte algum para a fabrica��o � compar�vel a "pedir para uma pessoa sem experi�ncia na cozinha fazer um prato que exige bater claras em neve e uma s�rie de outras t�cnicas mais avan�adas".

E, mesmo se forem produzidas, essas vacinas "gen�ricas" ainda precisariam passar por todas aquelas etapas de pesquisa e aprova��o pelas ag�ncias regulat�rias, o que certamente acrescentaria alguns meses de espera (e de muito trabalho).

A especialista entende que duas a��es imediatas poderiam aumentar a disponibilidade de doses nos pr�ximos meses.

"Para responder � urg�ncia mundial, os pa�ses que t�m unidades de vacinas a mais precisam compartilhar esse excedente com mecanismos como o Covax Facility, para que elas sejam distribu�das", diz.

"A segunda estrat�gia � realizar acordos de produ��o para que outros centros e laborat�rios possam fabricar mais unidades das vacinas j� testadas e aprovadas", pontua Garrett.

Para resolver a falta de doses no curto prazo, Denise Garrett sugere a doação das doses extras compradas por países ricos e a transferência de tecnologia para ampliar a fabricação dos imunizantes(foto: CRISTY PARRY/ARQUIVO PESSOAL)
Para resolver a falta de doses no curto prazo, Denise Garrett sugere a doa��o das doses extras compradas por pa�ses ricos e a transfer�ncia de tecnologia para ampliar a fabrica��o dos imunizantes (foto: CRISTY PARRY/ARQUIVO PESSOAL)

Esse modelo, ali�s, j� acontece na pr�tica: a AZD1222, de AstraZeneca e Universidade de Oxford, por exemplo, foi licenciada para ser produzida pelo Serum Institute, da �ndia, e pelo Instituto BioManguinhos da Fiocruz, no Brasil.

A ideia, ent�o, seria expandir esse modelo de transfer�ncia de tecnologia assim, as farmac�uticas poderiam ensinar todo o passo a passo, permitindo que parceiros certificados aprendam a fabricar as vacinas nos seus m�nimos detalhes.

Uma parceria na pr�tica

O imunologista Jorge Kalil Filho, professor titular da Faculdade de Medicina da Universidade de S�o Paulo (USP), teve uma oportunidade �nica: acompanhar todo o processo de transfer�ncia de tecnologia de um imunizante para o Brasil.

"No final dos anos 1990, eu era assessor do ent�o ministro da Sa�de, o Dr. Adib Jatene. � �poca, comecei as conversas para convencer os diretores da Pasteur, farmac�utica detentora da patente da vacina contra a gripe", lembra o m�dico.

Negocia��es conclu�das e contratos assinados, o Instituto Butantan ficou respons�vel por montar a f�brica e receber os materiais necess�rios para dar in�cio � produ��o.

Isso tudo aconteceu em etapas e demorou um tempo para toda a fabrica��o acontecer sem percal�os.

"� preciso ajustar os sistemas de controle de qualidade, de envase, de distribui��o", lista Kalil.

Em 2012, o imunologista j� era diretor do Instituto Butantan, cargo que ocupou at� 2017, e viu os primeiros lotes 100% brasileiros da vacina contra a gripe ficarem prontos.

"Come�amos com 20 milh�es de doses, depois subimos para 60 milh�es e h� proje��o para 100 milh�es nos pr�ximos anos", calcula.

No Ministério da Saúde e no Instituto Butantan, Jorge Kalil Filho iniciou e finalizou o processo de transferência de tecnologia da vacina contra a gripe no Brasil(foto: Arquivo pessoal)
No Minist�rio da Sa�de e no Instituto Butantan, Jorge Kalil Filho iniciou e finalizou o processo de transfer�ncia de tecnologia da vacina contra a gripe no Brasil (foto: Arquivo pessoal)

Atualmente, o Instituto Butantan tem capacidade para entregar 80 milh�es de unidades desse imunizante ao Minist�rio da Sa�de a cada nova temporada.

A campanha de vacina��o anual contra a gripe, portanto, n�o depende mais da importa��o de insumos ou outros materiais.

Essa experi�ncia recente traz um aprendizado importante: a transfer�ncia de tecnologia � mais complicada do que se imagina.

� claro que, durante uma pandemia, n�o � poss�vel aguardar 12 anos para que os processos estejam dentro dos conformes.

Mas, mesmo com o empenho de todos os envolvidos, completar as etapas necess�rias leva alguns meses.

E um exemplo disso � a pr�pria AZD1222, licenciada para a Fiocruz: o acordo de transfer�ncia de tecnologia foi anunciado em agosto de 2020, mas a assinatura do contrato e a remessa do material biol�gico necess�rio para dar in�cio � produ��o aconteceram agora em junho de 2021, cerca de dez meses depois.

Durante esse per�odo, os t�cnicos da Fiocruz correram para montar as instala��es, treinar os funcion�rios e garantir todas as certifica��es expedidas pelas ag�ncias regulat�rias.

"Isso exigiu dias e noites de trabalho ininterrupto tanto do lado brasileiro quanto da farmac�utica que nos deu apoio necess�rio", detalha Buss.

O planejamento � que as primeiras doses 100% nacionais da AZD1222 sejam entregues a partir de outubro deste ano.

Risco de retalia��es?

O hematologista Dimas Covas, atual diretor do Instituto Butantan, � contr�rio � quebra das patentes das vacinas.

Al�m de n�o resolver o problema no curto e m�dio prazo, o especialista cr� que medidas do tipo podem dificultar o relacionamento com as farmac�uticas.

"As empresas detentoras dessas propriedades intelectuais s�o multinacionais, que possuem uma s�rie de outros insumos, subst�ncias e medicamentos. A quebra de patentes, ent�o, faz com que elas se sintam prejudicadas e fa�am at� retalia��es aos governos", interpreta.

"As companhias podem, por exemplo, dificultar o acesso dos pa�ses que fizerem a quebra das patentes ao mercado farmac�utico. � poss�vel que elas pensem: por que vou trazer os medicamentos para esse lugar, se eles t�m essa fama de piratear nossos produtos? Toda vez que voc� ignora uma patente, cria-se um ambiente de desconfian�a e retalia��o", completa o diretor do Butantan.

Dimas Covas teme que a quebra de patentes prejudique as propriedades intelectuais dos próprios institutos de pesquisa brasileiros(foto: Governo do Estado de São Paulo)
Dimas Covas teme que a quebra de patentes prejudique as propriedades intelectuais dos pr�prios institutos de pesquisa brasileiros (foto: Governo do Estado de S�o Paulo)

Covas tamb�m pensa que o feiti�o pode virar contra o feiticeiro e as propriedades intelectuais dos pr�prios pa�ses acabam desrespeitadas.

"O Butantan, por exemplo, possui a patente da vacina contra a dengue, que est� em testes cl�nicos. Ser� que algu�m pode vir e quebrar essa nossa propriedade tamb�m?", questiona.

Experi�ncias anteriores

Vale destacar, no entanto, que essa discuss�o � absolutamente nova. Como n�o h� experi�ncias iguais no passado, n�o � poss�vel prever os poss�veis desdobramentos e repercuss�es caso uma quebra de patentes de vacinas vire realidade.

Uma medida similar no universo da sa�de aconteceu em 2007, quando o Brasil quebrou a patente do Efavirenz, um medicamento usado no tratamento da aids produzido pela farmac�utica americana MSD.

Tempor�o, que era o ministro da Sa�de � �poca, se lembra bem das incertezas daquele per�odo e da dualidade entre as negocia��es financeiras e as necessidades da sa�de p�blica.

"O laborat�rio detentor dos direitos resistiu, n�o queria que isso acontecesse. Ouvimos at� especula��es que aconteceriam retalia��es, que os investimentos seriam prejudicados. Na pr�tica, nada disso aconteceu e tivemos at� um crescimento do mercado farmac�utico no pa�s", rememora.

José Gomes Temporão lembra que a quebra da patente de um medicamento contra a aids não prejudicou o Brasil(foto: ABR)
Jos� Gomes Tempor�o lembra que a quebra da patente de um medicamento contra a aids n�o prejudicou o Brasil (foto: ABR)

O m�dico sanitarista, que tamb�m � pesquisador da Fiocruz, entende que o risco de repres�lias fica ainda menor se uma decis�o do tipo acontecer n�o por iniciativa de um �nico pa�s, mas, sim, num organismo internacional, como � a OMC.

"Uma decis�o pol�tica internacional deixaria pouco espa�o para que qualquer tipo de retalia��o ou postura hostil viesse a acontecer", avalia.

Amea�a � inova��o

Kalil destaca outro poss�vel preju�zo que a quebra unilateral de patentes pode trazer: diminuir os est�mulos � pesquisa e ao desenvolvimento de novos produtos.

"As empresas costumam demorar anos e investem bilh�es de d�lares para criar uma nova vacina. � �bvio que elas n�o v�o ficar contentes se ficarem sem sua propriedade", raciocina.

A cria��o de um novo imunizante envolve riscos enormes: as chances de uma candidata n�o ir bem nos testes cl�nicos � relativamente alta. Do ponto de vista financeiro, isso pode representar um preju�zo enorme �s companhias.

"� preciso ponderar, no entanto, que na pandemia de covid-19 muitas farmac�uticas que foram bem-sucedidas nesse processo j� lucraram bastante e poderiam exercer esse ato altru�sta de liberar suas patentes para aumentar a disponibilidade de doses", completa o imunologista.

H� ainda um segundo ponto que deve ser levado em conta nesse contexto: alguns dos imunizantes j� dispon�veis contaram com investimento p�blico para ficarem prontos.

A farmac�utica Moderna, por exemplo, recebeu mais de US$ 6 bilh�es do governo americano para desenvolver sua vacina.

E todo esse dinheiro, colhido a partir dos impostos pagos pelos cidad�os, sinaliza que a discuss�o entre propriedade privada ou p�blica pode ficar mais nebulosa em certas situa��es.

Quest�es estrat�gicas para o pa�s

Os especialistas s�o reticentes em rela��o �s implica��es pr�ticas de uma eventual quebra de patentes para a pandemia atual, mas antecipam que uma medida dessas abriria um caminho mais justo e acess�vel para as crises de sa�de p�blica que vir�o pela frente.

"Isso pavimenta um futuro com menos desigualdade na distribui��o das vacinas entre pa�ses ricos e pobres", antev� Garrett.

Para ser independente na produção de vacinas e outros insumos da área de saúde, Brasil precisa investir mais em biotecnologia, avaliam especialistas(foto: Getty Images)
Para ser independente na produ��o de vacinas e outros insumos da �rea de sa�de, Brasil precisa investir mais em biotecnologia, avaliam especialistas (foto: Getty Images)

Diante de todas as dificuldades com a covid-19, o mundo pode (e deve) ficar mais preparado para as pr�ximas pandemias: isso envolve criar mecanismos para a pesquisa, a aprova��o e a distribui��o de novas vacinas de uma maneira mais r�pida, efetiva e justa.

Tempor�o avalia que toda essa discuss�o traz benef�cios ao Brasil, que pode aproveitar a oportunidade para aprimorar setores estrat�gicos em sa�de p�blica.

"Esse debate pode nos ajudar a queimar etapas, internalizar novas tecnologias e ampliar a nossa capacidade produtiva nessa �rea", diz.

Mas o sanitarista acredita que, para que isso realmente aconte�a, � preciso pensar em pol�ticas p�blicas de longo prazo, com investimentos maci�os na �rea de biotecnologia.

"Precisamos de uma vis�o estrat�gica e de uma pol�tica de Estado que construam uma base tecnol�gica para a produ��o de insumos, rem�dios e vacinas", opina o ex-ministro.

"Somente com essa estrutura vamos conseguir romper nossa depend�ncia dos produtos vindos de outros pa�ses."


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